Guia de leitura | Minha carne | ADC#2

Minha carne: diário de uma prisão
Preta Ferreira

Guia de leitura / Armas da crítica #02

No dia 24 de junho de 2019, Preta Ferreira e seus familiares foram surpreendidos pela manhã por dois homens, uma mulher e um mandado de busca e apreensão. A artista ficou presa injustamente até 10 de outubro de 2019.

Minha carne: diário de uma prisão narra os longos dias de cárcere, os processos pelos quais passou, as etapas do sistema prisional, os trâmites jurídicos, as emoções que viveu e o que ouviu de outras mulheres com quem compartilhou esse tempo. Com oscilações de humor – como medo, raiva e também inspiração –, Preta escreve e mescla sua rotina e seus pensamentos com poemas e músicas.

Engana-se, contudo, quem se aproxima desse livro esperando encontrar um diário qualquer. Como adverte Juliana Borges, no prefácio, mais do que um relato individual, Minha carne é fundamentalmente um livro sobre o Brasil. “As prisões e os sistemas punitivos são espelhos das sociedades. É possível dissecar problemas sociais, desmitificar senso comum e compreender funcionamento de engrenagens institucionais ao nos debruçarmos sobre a realidade das prisões no país. Ao lê-lo, saiba que mergulhará em uma profunda reflexão sobre o país que somos e o tipo de país que devemos lutar para ser.”

autor Preta Ferreira
prefácio Juliana Borges
orelha Erica Malunguinho
capa três design, com foto de Thiago Santos
edição Thais Rimkus
páginas 224

Extra! A caixa de dezembro traz também a edição mais recente da revista da Boitempo. Com dossiê de capa sobre crítica do valor, a Margem Esquerda deste semestre traz uma entrevista exclusiva com Luiza Erundina, além de inéditos de Walter Benjamin, poesia de Angela Davis, e muito mais…

Quem é Preta Ferreira?

Janice Ferreira Silva nasceu na Bahia e veio para São Paulo em 1999, com quinze anos. Foi morar na Ocupação 9 de Julho, movimento ao qual sua mãe, Carmen Silva, se juntou após ter fugido do marido violento em Salvador e passado noites na rua e em albergues. Janice ainda não sabia o que significava “ocupação”, mas foi lá, no movimento, que a menina que sonhava com bailes de debutante cresceu, se fortaleceu e aprendeu que “todos têm direito a moradia digna, saúde, educação e lazer”.

Hoje Preta é uma mulher preta potente, uma multiartista que encanta. Atua como produtora de filmes e clipes, atriz, cantora, ativista, feminista – e, agora, autora. No entanto, ainda que sua trajetória seja toda interessante e sua presença exale firmeza, seu nome ficou marcado desde junho de 2019, quando foi presa num processo de criminalização do movimento por moradia. Passou mais de cem dias na cadeia, vivendo na pele as péssimas condições do sistema carcerário brasileiro e acompanhando histórias de outras mulheres que sofrem com a desigualdade social, o machismo, o racismo. Com a falta de justiça.

Sua história virou notícia e mobilizou muita gente do lado de fora da cadeia; enquanto isso, outra narrativa era registrada: o diário de sua prisão, agora lançado como livro. Preta pôde voltar à ocupação e segue ajudando as mulheres que conheceu no período que passou encarcerada.

“Um dos pontos altos da minha primeira viagem a São Paulo, em 2019, foi uma inspiradora visita à casa de Preta Ferreira. Eu tinha conhecimento de sua atuação fundamental na liderança do movimento de moradia e fiz coro às pessoas que gritaram por sua libertação.

Preta representa o Brasil do futuro e é um dos grandes exemplos de uma vida toda dedicada à justiça, à igualdade e à liberdade.”

ANGELA DAVIS

Cem dias de uma prisão injusta

O caso de Preta Ferreira tem quase tudo o que um processo criminal não deveria ter: começou com uma investigação parcial, enviesada e dirigida para, depois, se apresentar como uma prisão-espetáculo, ilegal por várias razões, mas, principalmente, pelo grau de injustiça.

Os absurdos não pararam por aí. Depois da prisão, veio uma acusação feita pelo Ministério Público – mais uma vez, completamente divorciada da realidade e da própria prova produzida na investigação. Uma acusação com evidente viés ideológico e com uma nítida tentativa de criminalizar um movimento social.

Foram várias petições, cartas de apoio de pessoas e entidades do mundo todo, alguns habeas corpus em São Paulo, em Brasília, e, depois de cem dias de uma prisão ilegal, hoje Preta está livre, mas seu processo – que está apenas no começo – segue, perseguindo, constrangendo e acusando uma pessoa que não só não cometeu crime algum, como tentou viabilizar o básico: que homens, mulheres e crianças tenham, ao menos, um teto para viver.

Augusto de Arruda Botelho
Advogado criminalista, integra a equipe de defesa de Preta Ferreira.

“Nos relatos de Preta observamos um retrato complexo sobre o sistema prisional e a política criminal brasileira, em que grupos sociorraciais são selecionados para ter suas condutas, culturas e existências criminalizadas.”

JULIANA BORGES

Vozes vazam grades

(Para Preta Ferreira)

A braveza dos dias incide sobre
a Preta mulher, mas a mulher preta
mesmo ferida no corpo e n’alma
indaga as injustiças do tempo.
E, quando a mulher preta dança
os passos de sua secular dor
e canta os infinitos acordes
de sua longa angústia,
a sua voz rouca e trêmula
denuncia a aridez dos mandos.

E não há quem faça dormir
a teimosia de sua esperança,
a sua voz se funde a outras,
repercutindo repetidos brados.
E não é uma solitária litania,
um coletivo clamor se ergue
desde os fundos dos tempos
em petição de reparos.
Vozes dos escombros
dos navios e das prisões
se levantam em gritos:
— que se decrete a justiça
para ontem, para hoje
e para sempre.

CONCEIÇÃO EVARISTO

nov. 2019

“Eu cresci sem teto e não morrerei sem um lar. Só quem já sentiu e sente na pele o desprezo de uma sociedade hipócrita e desumana sabe o que representa a conquista da casa própria.

Mas não paro por aqui: vou lutar até o fim, até que os filhos dos pobres comam melhor que os cães dos ricos.”

PRETA FERREIRA

[“Eu cresci sem teto, não morrerei sem um lar“, 2015]

Quem tem medo de Preta Ferreira?

Conheci Preta Ferreira durante a pré-produção do primeiro longa de ficção que dirigi, Cidade pássaro. Observar seu trabalho, sua dedicação, o compromisso enorme que ela estabeleceu não só com o filme, mas, mais importante, com cada ator e figurante que estava sob sua responsabilidade, foi um privilégio para mim. A todos Preta tratava com afeto, com equanimidade, muitas vezes sendo a primeira a chegar e a última a sair do set, sempre disposta a estender a mão a quem precisasse.

Ficamos amigos, então descobri a Preta cantora, a Preta ativista, a Preta compositora, a Preta atriz, a Preta comunicadora. Descobri que a postura que ela tivera no filme era a mesma que mantinha em todos os âmbitos da vida. Acompanhei sua prisão. Nos comunicamos por cartas. Em dado momento, escrevi para ela uma frase que não era minha, mas de Eric Hoffer: “Você pode descobrir o que seu inimigo mais teme observando os modos que ele tenta te amedrontar”.

Por que o governo de São Paulo tinha, e tem, tanto medo de Preta Ferreira? Por que a sociedade racista – para a qual todos nós, brancos, contribuímos, consciente ou inconscientemente – tem tanto medo da Preta? Suspeito que seja pelos pedaços dela que ela mesma coloca em tudo que ela faz. Na arte, no ativismo, no trabalho cultural. Tudo que ela faz tem muito dela. E isso assusta. Isso causa mudanças.

Matias Mariani
produtor, diretor e roteirista de cinema.

“Foi-se a chibata, implantou-se a lei
Ambas sob a tutela das mesmas mãos
Mãos dos senhores de engenho

Sinhôzinho, não me toque
Mesmo lavando minha alma
As marcas não sairão”

PRETA FERREIRA

[“Minha Carne”, 2019]

Voz do livro, Voz da Preta

É uma honra ser das primeiras pessoas a ter lido o diário que Preta escreveu nos dias em que esteve presa, ter ajudado a transformar em livro um relato tão íntimo e tão forte e ter conhecido essa mulher. Foi um trabalho que mexeu comigo, que já tinha, meses antes, acompanhado o caso pelas notícias e por amigos que conheciam Preta Ferreira.

Editar um diário como esse implica (ainda mais que para outros textos) não alterarmos, em momento nenhum, a voz de quem escreveu. No caso, ótimo, porque a Preta tem essa voz amplificada, de cantora, roteirista, ativista – traço que fica também evidente para quem lê Minha carne, grito por justiça entremeado de letras de música, histórias de outras mulheres, poemas.

Eu e Preta começamos a trocar ideias sobre o diário já na pandemia, sem podermos fazer reunião presencial; ainda assim, desde o início funcionou muito bem: ela aberta a ideias e considerações, sempre pura disposição, e eu a conhecendo para seguir bem com o livro. Conversamos sobre cada acréscimo ou exclusão, sobre cada foto, rimos sobre a importância de ela ter recebido uma correspondência do papa, fomos atrás das participações de Angela Davis, Juliana Borges, Conceição Evaristo, Carmen Silva, Allyne Andrade, Maria Gadú. E sei que o resultado reflete essas alegrias: que livro!

Thais Rimkus
editora da Boitempo e da Boitatá que ficou responsável pelo livro Minha carne.

“O Estado tenta criminalizar a luta por moradia, tenta criminalizar os movimentos sociais. Após celebrar a liberdade de Preta Ferreira, devemos nos mobilizar para apoiá-la durante o julgamento. É como a própria Preta sempre diz: liberdade para todas as pretas!

ANGELA DAVIS

[Conferência “A liberdade é uma luta constante“, Auditório do Ibirapuera, 21 out. 2019]

Leituras complementares

Baixe os conteúdos complementares do mês em PDF!

Este mês trazemos dois ensaios de fôlego sobre abolicionismo e questão carcerária, além de um conjunto de manuscritos originais de Preta Ferreira.

Clique nos botões vermelhos abaixo para fazer o download!

Angela Davis

Feminismo e abolicionismo: teorias e práticas para o século XXI


Paulo Arantes

Zonas de espera: uma digressão sobre o tempo morto da onda punitiva contemporânea


Preta Ferreira

Cartas do cárcere

Vídeos

Já viu o clipe de música “Minha Carne”? E o debate de lançamento do livro na TV Boitempo?

Para aprofundar…

Compilação de textos, podcasts e vídeos que dialogam com a obra do mês.

Preta Ferreira Instagram @preferreira
Twitter @pretaferreiraa

Carmen Silva
Instagram @carmensilvamstc
Twitter @carmensilvamstc

MSTC
Instagram @movimentomstc

451 MHz: #30 – Prisões: navios negreiros, com Preta Ferreira e Juliana Borges, 23 nov. 2020.

Justificando: #32A história de Preta Ferreira e a luta por moradia digna, com Preta Ferreira e Vivian Mendes, apresentação de André Zanardo e Mariana Boujikian, 31 out. 2019.

Pela Cidade: #8 – Movimentos de Moradia, Preta Ferreira e Carmen Silva conversam com Raquel Rolnik (LabCidade), nov. 2019.

Guilhotina: #96 – Preta Ferreira, apresentação de Luis Brasilino e Bianca Pyl, 14 dez. 2020.

Preta Ferreira: entrevista no cárcere, com Laryssa Sampaio, Mariana Purpura, Martina Franchini, MídiaNINJA + Bar Das Manas.

Jornalistas Livres entrevistam Preta Ferreira na prisão, Jornalistas Livres.

Preta Ferreira no EntreVistas, com Juca Kfouri, TVT.

Angela Davis encontra Carmen Silva, Preta Ferreira e Erica Malunguinho, Jornalistas Livres.

Tutaméia entrevista Preta Ferreira, com Eleonora e Rodolfo Lucena, Tutaméia.

Painel Haddad com Carmen Silva e Preta Ferreira, Fernando Haddad.

Memórias do cárcere: Ao se apropriarem de suas narrativas, Angela Davis e Preta Ferreira desafiam as hierarquias em torno do poder de escrever a história“, por Ana Gabriela Braga e Barbara Medeiros Veríssimo, Quatro Cinco Um, 1 set. 2020.

Preta Ferreira lança memórias em que descreve os dias de aflição na prisão“, por Adriana Ferreira Silva, Marie Claire, 18 set. 2020.

Preta Ferreira: diário de uma prisão“, por André Alói, Harpers Bazaar Brasil, 8 ago. 2020.