Guia de leitura | Enfrentando o Antropoceno | ADC#36

Enfrentando o Antropoceno
Ian Angus

Guia de leitura / Armas da crítica #36

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Quem é Ian Angus?

Ian Angus nasceu no Canadá, em 1945. Um dos mais conhecidos ativistas ecossocialistas, é editor do Climate & Capitalism, contribui frequentemente com a Mothly Review e fundou a Global Ecosocialist Network.

“são 3h23 da manhã
e eu estou acordado
porque meus tataranetos
não me deixam dormir
meus tataranetos
me perguntam em sonho
o que você fez enquanto o planeta era saqueado?
o que você fez enquanto a terra era destruída?
você fez alguma coisa
quando as estações começaram a se embaralhar, não fez?
quando os mamíferos, os répteis, os pássaros estavam morrendo?
você foi para as ruas protestar
quando a democracia foi roubada?
o que você fez
quando
você soube?”

hieroglyphic stairway,
de Drew Dellinger

O fim do capitalismo como alternativa ao fim do mundo

Enfrentando o Antropoceno foi publicado originalmente em 2016. Nos seis anos seguintes, só a queima de combustíveis fósseis levou à emissão de mais de 200 bilhões de toneladas de CO2, acumulando mais de 14 ppm desse gás na atmosfera e intensificando o efeito estufa. De lá para cá, eventos extremos se multiplicaram, incluindo ondas de calor, secas severas, incêndios, ciclones e tempestades. No momento, vários recordes de temperatura – alguns deles estabelecidos justamente em 2016, por ocasião do mais recente Mega El Niño – estão sendo quebrados mundo afora, incluindo a temperatura média global.

Entre a publicação em inglês e de sua tradução para o português, iniciativa de grande importância da Boitempo, avançou-se na quantificação das nove chamadas “fronteiras planetárias” e constatou-se que ultrapassamos os limites seguros em seis delas: clima, biodiversidade, ciclos biogeoquímicos, mudança no uso do solo, uso de água doce e novas entidades (poluentes). Ao longo desses anos, o livro, ao contrário do que tamanhas mudanças poderiam sugerir, ganhou mais relevância, justamente porque se tornou mais forte e eloquente seu apelo. A profunda crise ecológica em que estamos mergulhados muda e mudará tudo, incluindo a sociedade e a geopolítica, com desafios que mal poderiam ser imaginados algumas décadas atrás.

Alexandre Araújo Costa

Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará, foi um dos autores principais do 1º Relatório de Avaliação do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas.

Enfrentando o Antropoceno pauta e clama por uma conexão viva entre ciência e política, entre o pensamento ecológico e o ideário de esquerda, não temendo expor quão grandes são os desafios postos, tampouco curvando-se ao niilismo, ao derrotismo, ao imobilismo ou ao sectarismo. É uma contribuição fundamental para pensar e – por que não? – agir para o fim do capitalismo como alternativa ao fim do mundo.”

ALEXANDRE ARAÚJO COSTA

Um manifesto eloquente

O capitalismo e o ambiente global alienado que ele produziu constituem hoje nossa “casa em chamas”. Os ambientalistas tradicionais, confrontados com esse dilema monstruoso, em geral optam por apenas contemplá-lo, observando e fazendo pequenos ajustes em seu ambiente interno enquanto as chamas lambem o telhado e toda a estrutura ameaça desabar.

Nosso objetivo, no entanto, é transformá-lo, é reconstruir a casa da civilização a partir de princípios arquitetônicos diferentes, criando um metabolismo mais sustentável entre a humanidade e a Terra. O nome do movimento para alcançar isso, surgido dos movimentos socialistas e ambientalistas radicais, é ecossocialismo, e este livro é seu manifesto mais atual e eloquente.

John Bellamy Foster, na apresentação de Enfrentando o Antropoceno.

 Professor de sociologia na Universidade de Oregon e editor da Monthly Review.

“Temos de reconhecer que é a lógica de nosso modo de produção – o capitalismo – que impede a criação de um mundo de desenvolvimento humano sustentável que transcenda o desastre em espiral que aguarda a humanidade. Para nos salvar, devemos criar uma lógica socioeconômica diferente, que aponte outros fins humano-ambientais: uma revolução ecossocialista da qual participe a grande massa da humanidade.”

JOHN BELLAMY FOSTER

Novo estágio na história do sistema terrestre

Mesmo que o Antropoceno não cumpra os rígidos requisitos da geologia, a ideia de um novo estágio na história do sistema terrestre é agora amplamente aceita por cientistas de outras disciplinas. Em 2023, as temperaturas globais dispararam como resultado direto dos níveis de dióxido de carbono, que estão mais elevados que em qualquer outro momento da história da humanidade. Estudos recentes preveem que, mesmo com os níveis de emissões mais baixos possíveis, até 90% da população mundial enfrentará os efeitos combinados do calor e da seca neste século – e o impacto será desproporcional nas regiões mais pobres do Sul global.

No Norte, incêndios florestais sem precedentes destruíram milhões de hectares de florestas, matando um número incalculável de animais e forçando milhares de pessoas a fugir. As alterações climáticas, o desflorestamento e a disseminação massiva da agricultura industrial baseada em produtos químicos estão levando à extinção de organismos diversos.

[ENFRENTANDO O ANTROPOCENO, p. 10]

“A sobrevivência da civilização depende, como escreveu Marx, de os produtores associados gerirem racionalmente a relação metabólica da sociedade com o mundo natural. Mais que nunca, isso requer uma mudança social e econômica que tire poder dos poluidores e faça da restauração dos sistemas de suporte à vida na Terra a prioridade máxima. Espero que esta edição de Enfrentando o Antropoceno contribua para esse fim.

IAN ANGUS

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Quando começou o Antropoceno?

Sobre a questão de seu início, a análise dos autores é “mais consistente com meados do século XX” que com datas mais antigas propostas. Eles não recomendam uma data específica, mas observam que foi apresentada uma série de opções, com variações entre 1945 e 1964.

Essa questão é complexa, porque, ao contrário de outras subdivisões do tempo geológico, as implicações da formalização do Antropoceno vão muito além da comunidade geológica. Seria não só a primeira ocorrência de uma nova época testemunhada diretamente pelas sociedades humanas avançadas, como seria uma época decorrente da própria ação humana.

[ENFRENTANDO O ANTROPOCENO, p. 65-66]

“Uma premissa básica da geologia era: as cronologias humanas são insignificantes em comparação com a imensidão do tempo geológico; as atividades humanas são insignificantes em comparação com a força dos processos geológicos. Isso já foi verdade, mas não é mais.

NAOMI ORESKES

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Capitalismo fóssil

Nos séculos XVIII e XIX, a necessidade de crescimento do capital impulsionou uma mudança histórica em direção a uma economia baseada em combustíveis fósseis, tornando-se, nas palavras de Engels, um “esbanjador do calor solar do passado”. O uso da energia solar preservada no subsolo por milhões de anos permitiu que a produção superasse as limitações do vento, da água e dos músculos. O custo de obter e usar combustível fóssil era muito menor que os lucros resultantes dele. Como sabemos agora, havia custos enormes ocultos na destruição ambiental, especialmente a ruptura do ciclo do carbono, mas esses custos não entram na contabilidade do capital.

A queima de combustíveis fósseis bombeou dióxido de carbono e outros gases para a atmosfera, levando a uma ruptura do ciclo do carbono que se manifesta na forma de acidificação dos oceanos e mudanças climáticas. A ruptura no metabolismo do carbono da Terra cresceu lentamente ao longo de um século e atingiu um ponto crítico nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial. O Antropoceno, que em retrospecto era uma possibilidade desde o início da Revolução Industrial, tornou-se realidade na segunda  metade do século XX, quando a ruptura no ciclo do carbono subitamente ultrapassou um ponto de não retorno.

[ENFRENTANDO O ANTROPOCENO, p. 143]

“Outra contradição básica do sistema capitalista de controle é que ele não pode separar ‘avanço’ de destruição nem ‘progresso’ de desperdício – ainda que as resultantes sejam catastróficas. Quanto mais o sistema destrava os poderes da produtividade, mais libera os poderes de destruição; quanto mais dilata o volume da produção, tanto mais tem de sepultar tudo sob montanhas de lixo asfixiante.”

ISTVÁN MÉSZÁROS

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Não estamos todos juntos nessa

No século XXI, o capitalismo fóssil se caracteriza não apenas pela desigualdade – que sempre foi uma característica da sociedade de classes –, mas também pela desigualdade grosseira: a acumulação sem paralelo de riqueza nas mãos de poucos e a pobreza em massa que é imposta por todos os recursos econômicos, políticos e militares que os ultrarricos são capazes de reunir.

Muitos estudos, artigos e relatórios documentaram a desproporção da riqueza no topo da pirâmide. Duas estatísticas resumem todos eles: em 2015, o 1% mais rico da população mundial possuía tanto quanto os 99% restantes juntos, e apenas 62 indivíduos possuíam mais que os 3,5 bilhões mais pobres. Essa desigualdade obscena não resulta apenas no consumo de uma proporção imensamente excessiva de recursos mundiais pelos ultrarricos, embora isso aconteça, mas leva a uma concentração de poder político e econômico que torna ridículas as pretensões democráticas do capitalismo.

[ENFRENTANDO O ANTROPOCENO, p. 199]

“Pois é porque somos mantidos na ignorância sobre a natureza da sociedade humana – em oposição à natureza em geral – que agora nos deparamos (assim me asseguram os cientistas envolvidos) com a completa destrutibilidade deste planeta que mal foi adaptado para vivermos nele.”

BERTOLD BRECHT

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O ecossocialismo

O movimento ecossocialista visa a parar e reverter o processo desastroso de aquecimento global, em particular, e o ecocídio capitalista, em geral, e construir uma alternativa prática e radical ao sistema capitalista.

O ecossocialismo se baseia em uma economia transformada a partir dos valores não monetários da justiça social e do equilíbrio ecológico. Critica tanto a “ecologia de mercado” capitalista quanto o socialismo produtivista, que ignorou o equilíbrio e os limites da Terra. Ele redefine o caminho e o objetivo do socialismo a partir de uma estrutura ecológica e democrática.

O ecossocialismo implica uma transformação social revolucionária, com limitação do crescimento e transformação das necessidades a partir do deslocamento dos critérios econômicos qualitativos para critérios qualitativos, ênfase no valor de uso em vez do valor de troca.

[ENFRENTANDO O ANTROPOCENO, p. 229]

“As mudanças físicas são sérias, mas não determinarão por si só como será a vida no Antropoceno – somente a ação (ou inação) humana pode fazer isso. O mundo que nossos filhos e nossos netos herdarão será definido pela maneira como nossa geração responderá à emergência planetária.

IAN ANGUS

Leituras complementares

Baixe os conteúdos complementares do mês em PDF!

Este mês trazemos um artigo de Michael Löwy na Margem Esquerda #28, um capítulo de O patriarcado do salário, de Silvia Federici, e um capítulo de Abundância e liberdade, de Pierre Charbonier.

Clique nos botões vermelhos abaixo para fazer o download!

Michael Löwy

Da Revolução de
Outubro ao ecocomunismo no século XXI


Silvia Federici

Notas sobre Marx e ecologia


Pierre Charbonnier

Crítica da razão ecológica

Vídeos

Este mês trazemos o lançamento antecipado do livro com Ana Rüsche, Alexandre Araújo Costa, Ingrid Sateré Mawé e Murillo van der Laan, além de um vídeo com Michael Löwy sobre o que é ecossocialismo e outro com Silvia Federici comentando uma perspectiva feminista sobre Marx e a ecologia.

Para aprofundar…

Compilação de textos, podcasts e vídeos que dialogam com a obra do mês.

Opera Mundi: Capitalismo verde ou ecossocialismo?, com Michael Löwy, dez. 2022.

Em Movimento: O que é ecossocialismo?, com Michael Löwy, set. 2022.

Podcast Anpof: Antropoceno e colapso ecológico, com Alyne Costa e Susan de Castro, set. 2021.

Tese Onze: Dicas de leitura em ecossocialismo, com Sabrina Fernandes, jun. 2021.

Outras Mamas #11 – Sabrina, ecossocialismo e mundo que queremos, com Sabrina Fernandes, jul. 2018.

Tese Onze: Bem viver e ecossocialismo, com Sabrina Fernandes e Thiago Ávila, jun. 2019.

Filosofia Pop: #054 Ecossocialismo, com Sabrina Fernandes, dez. 2017.

Facing the Anthropocene [em inglês], com Ian Angus e Camilla Royle, SWP TV.

A questão política
decisiva do século XXI,
com Michael Löwy,TV Boitempo.

Feminismo, comuns e ecossocialismo, com Silvia Federici e Sonia Guajajara, TV Boitempo.

Marx e o ecossocialismo, com Kohei Saito e Sabrina Fernandes, TV Boitempo.

Diálogos com Marx – Ecologia, com Michael Löwy, Sabrina Fernandes e Camila Moreno, TV Boitempo.

Catástrofe ambiental e a lógica capitalista, com Virginia Fontes, TV Boitempo.

Marx era ecologista?, com Luis Marques, José Correia Leite, Camila Moreno e Isabel Loureiro, TV Boitempo.

Fundamentos do Ecossocialismo, com Sabrina Fernandes, Tese Onze.

O fim do capitalismo como alternativa ao fim do mundo“, por Alexandre Araújo Costa, Blog da Boitempo, out. 2023.

Ecodecálogo: dez mandamentos para salvar a vida neste planeta“, por Michael Löwy, Blog da Boitempo, jun. 2023.

Por um decrescimento ecossocialisa“, por Michael Löwy, Bengi Akbulut, Sabrina Fernandes e Giorgos Kallis, Blog da Boitempo, maio 2022.

Só um radical ecossocialismo democrático pode mudar o horizonte“, entrevista com Nancy Fraser, Blog da Boitempo, nov. 2021.

Revolução ou ruína“, por Jodi Dean e Kai Heron, Blog da Boitempo, jun. 2021.

A preocupação ecológica de Marx para a superação da ordem capitalista destrutiva“, por Murillo van der Laan, Blog da Boitempo, maio 2021.

A edição de conteúdo deste guia é de Isabella Meucci e as artes são de Victoria Lobo.