A economia política do marxismo do pós-guerra
Tradução inédita de texto de Robert Kurz sobre a morte de Ernest Mandel e o fim de uma era da história da teoria de esquerda.
O economista Ernest Mandel participa de uma reunião da International Communist League. Foto: Giorgio Piredda/Sygma via Getty Images.
No centenário do nascimento de Ernest Mandel, publicamos um texto de Robert Kurz inédito em português, escrito em 1º de agosto de 1995 para o jornal alemão Junge Welt como uma homenagem póstuma a esse que foi um dos principais pensadores marxistas do pós-guerra. Na década de 1990, o veterano Mandel e Kurz, então um desconhecido que fizera parte dos círculos de extrema-esquerda da Baviera, travaram alguns debates. Um deles está documentado no livro Krise – welche Krise? (ID-Archiv, Berlin 1995). Mandel reagiu “bastante alergicamente” à crítica do valor, como lembra o Editorial de Krisis 16-17, mas “ele também foi, desde 1968, um de nossos professores na agora consideravelmente longínqua ‘história da esquerda’”. Na trajetória de Kurz, é perceptível a influencia desse clássico da economia marxista, especialmente nos primeiros textos da crítica do valor, ainda nos anos 1980, como a ênfase na teoria da crise, no internacionalismo e na ruptura com as teorias da “restauração” a propósito da ex-URSS. Ver: “Objetivo socialista e o novo movimento operário”.
Marcos Barreira
A economia política do marxismo do pós-guerra
Com a morte de Ernest Mandel, uma era da história da teoria de esquerda chega ao fim
Por Robert Kurz
Ele se autodenominava um “internacionalista flamengo de origem judaica”. E isso diz muito. Crescendo em Antuérpia, Ernest Mandel juntou-se a um grupo trotskista quando jovem, foi preso pelos nazistas e deportado para a Alemanha, onde viveu durante o final da Segunda Guerra Mundial em um campo de concentração. Mandel não apenas permaneceu leal até o fim da vida à versão do movimento operário marxista ligada ao nome de Leon Trótski; ele também se tornou seu principal teórico. Tudo o que se pode dizer sobre o trotskismo em geral também se aplica a Ernest Mandel e à sua teoria em particular. Ao contrário de um cabeça-dura como Stálin,1 Trótski, que foi derrotado na luta pelo poder, era um verdadeiro intelectual, e assim, involuntariamente “liberado” do fardo do poder, ele pôde se tornar o fundador da corrente teoricamente mais elaborada (reflektiertesten) do antigo marxismo, que não se deixava intimidar em sua teorização nem pelos líderes stalinistas nem pelos líderes do partido socialdemocrata e seus capangas.
Não foi por acaso que, dos marxistas do passado, Ernest Mandel e sua “4ª Internacional” (além da teoria crítica de Horkheimer e Adorno, que era mais filosófica do que econômico-política) eram quase os únicos que tinham a oferecer aos jovens intelectuais do grande movimento de 1968 um alimento teórico comestível e reflexão político-econômica. Enquanto o pouco que era teoricamente aproveitável do imenso volume da produção carreirista do socialismo estatal permaneceu quase desconhecido no Ocidente, os livros de Mandel alcançaram grandes tiragens. Sua pequena Introdução à Teoria Econômica Marxista, de 1967, tornou-se o manual oficial de treinamento da “terrível” Liga dos Estudantes Socialistas (SDS), e foi por meio da sua robusta Teoria econômica marxista, publicada em 1968, de seu livro Origem e desenvolvimento da doutrina econômica de Karl Marx, publicado no mesmo ano, e não menos importante pelo seu conceito de “capitalismo tardio”, de 1972, que a geração de 68 “descobriu” a obra de Marx.
É claro que mesmo Mandel e seus adeptos não podiam pular sobre a sombra de sua época, que terminou para sempre em 1989. Mandel, no entanto, foi um dos poucos velhos teóricos marxistas que não amputaram e suprimiram aquele momento estranho, “chocante” e “esotérico” da teoria de Marx, mas que tentou levá-lo até onde isso era possível no contexto do antigo movimento operário e do seu horizonte conceitual. Nos livros de Mandel, deparamo-nos com os limites dessa compreensão “positiva” reducionista da economia política e sua crítica radical marxiana, que foi igualmente decisiva para amigos e inimigos no movimento operário em um século de “marxismo sem Marx”.
Havia, acima de tudo, quatro elementos da autêntica e autossuperadora crítica marxiana da economia política, que permaneciam menos assustadores para o trotskismo do que para a adoração estatal dos marxistas do partido, e que, portanto, também fizeram com que os textos de Ernest Mandel parecessem mais frescos do que os empoeirados calhamaços de legitimação estatal-socialista. Primeiro, havia a postura estritamente “antinacional” do trotskismo, como caracterizava Mandel; não só teoricamente, mas também em sua práxis de vida literalmente “internacional”. A indicação sempre presente de que uma transformação da sociedade para além do capitalismo não poderia do modo algum ocorrer no interior de uma estrutura nacional se destacou positivamente da exaltação nacional do marxismo de passo de ganso prussiano. E comparado à exumação sociocientífica por parte da esquerda atual, que, por medo do confuso desenvolvimento histórico-mundial no final do século XX, começa a desenterrar outra vez a ideia nacional apodrecida, o velho antinacionalismo marxista de Mandel ainda parece novo e apetitoso.
Em segundo lugar, havia a adesão à ideia de autodeterminação humana e emancipação social em relação às chamadas “leis econômicas”. Já em sua primeira grande obra sobre a “teoria econômica marxista”, Mandel se opôs a esse “marxismo vulgar” que pretendia prolongar a objetividade das categorias econômicas para além do modo de produção capitalista e torná-la um destino ontológico. É verdade que a economia política crítica de Mandel, como o marxismo do movimento operário em geral (e em certo sentido o próprio Marx), permaneceu presa à falsa objetividade do sistema produtor de mercadorias através da “metafísica de classe” e do ponto de vista do “trabalho” abstrato; mas seu fervor contra a lógica da economia política reificada abalou as grades dessa prisão categorial. O fato de que, a partir de tal posição, ele tendesse a exaltar qualquer “movimento” espontâneo, por mais questionável que fosse, era de qualquer forma menos antipático do que a aplicação de um saber socialista de dominação por parte daqueles administradores da humanidade e autoproclamados “oficiais de justiça do espírito do mundo”, que simplesmente ansiavam por entregar-se a si mesmos e a todos os outros a quaisquer “leis”. A crítica radical dessa forma de pensar é mais atual do que nunca, mesmo que esta se apresente hoje com sinal trocado, como submissão das pessoas às “leis do mercado” para forçá-las a desperdiçar suas vidas preocupadas com a “posição” do seu país na busca por um nicho de mercado.
Em terceiro lugar, Mandel corretamente nunca abandonou o teorema de Marx da “queda tendencial da taxa de lucro”, do caráter objetivo e passível de demonstração da crise capitalista e da possibilidade de colapso capitalista. “Ao contrário de muitos outros teóricos marxistas”, escreveu ele em 1967, “acredito que essa queda na taxa média de lucro pode ser demonstrada com números”. Para ele, como também para Rosa Luxemburgo, a objetividade imanente da crise por meio da autocontradição lógica do capital e a crítica das categorias reais objetivadas deste sistema (forma-mercadoria, dinheiro, rentabilidade, etc.) em nome da emancipação social não eram opostos, mas os dois lados da mesma moeda. Mandel tem sido acusado, não de forma totalmente injustificada, de sobre-estimar cada retração na economia mundial desde a recessão de 1966/67 como uma grande crise econômica; mas isso ainda é preferível que o seu inverso, a inconsciência teórica da crise, que prevalece hoje e até mesmo suprime ou tenta minimizar os sinais reais de crise no sistema de mercado global. Mesmo que a antiga grelha teórica marxista de Mandel já não baste para compreender os novos processos de crise no final da modernidade, é previsível o grande embaraço daqueles que imaginavam de modo precipitado que a crítica de Marx à economia poderia sair de cena sem que seu objeto também fosse superado.
Em quarto e último lugar, Ernest Mandel foi também um dos poucos teóricos do marxismo do pós-guerra a defender a visão de Marx, já amplamente abandonada, de que a abolição do capitalismo era idêntica à abolição da produção de mercadorias e que, portanto, não pode haver nenhuma relação mercadoria-dinheiro no “socialismo”. Essa consequência aparentemente utópica, mas que decorre logicamente da análise de Marx sobre o capital, ainda hoje não pôde ser concretizada; e Mandel também permaneceu vago quanto a isso. De acordo com as formas de pensamento do marxismo do movimento operário, só era possível imaginar uma abolição da mercadoria e do dinheiro de um modo estatista (“Estado operário”). Aqui a teoria de Mandel preservou uma afinidade com a autocompreensão do socialismo de Estado, que ele procurou salvar com o constructo tortuoso de uma “transição para a sociedade de transição” como formação pós-capitalista, ainda que ele não a considerasse “socialista”. Isso, porém já bastava para atrair o ódio dos ideólogos de legitimação do “socialismo real”. Mesmo no Dicionário dos Economistas publicado em 1989 pela editora Dietz, de Berlin Oriental, Mandel foi denunciado em polêmicas bizantinas como “pseudo-esquerdista” e “pseudo-marxista anti-socialista”, etc.
Para o jardim de infância teórico da “Plataforma Comunista” no PDS2, as obras de Mandel, que na República Democrática Alemã podiam ser encontradas apenas em armários para produtos tóxicos, seriam talvez ainda hoje uma pequena revelação e um vislumbre para além do marxismo das hortinhas de quintal. Para o resto do mundo, entretanto, a morte de Ernest Mandel também marcou o fim da história teórica do marxismo do pós-guerra, da qual ele foi um dos representantes mais conhecidos.
A corda arrebentou e ninguém pode continuar intacto de onde Mandel parou. Em vez disso, precisamente aqueles elementos de sua teoria que levaram aos limites do antigo marxismo é que aguardam uma superação crítica. Para um meio acadêmico que não pode mais extrair da teoria de Marx um diploma universitário, esse problema parece tão desinteressante quanto para uma esquerda foucaultiana teoricamente rebaixada que só entende o que está sob a “crítica da economia política”.
É, no entanto, da natureza da economia capitalista que de tempos em tempos ela se faça presente. Pode ser que em um futuro não muito distante, no deserto teórico da economia de mercado total, haja alguma necessidade de água. Quanto a isso, seria talvez uma demonstração de previsão anticíclica se alguma editora decidisse hoje lançar uma série igual à lendária série de economia política “vermelha” da antiga Editora Européia (Europäische Verlagsanstalt); certamente com novos e diferentes padrões, mas sem ignorar os textos históricos. Uma seleção crítica comentada da obra de Ernest Mandel teria seu lugar nessa biblioteca ainda imaginária.
Notas
1 “Betonkopf “, literalmente, uma cabeça de cimento. [NdT]
2 Associação política de partidários da antiga Alemanha Oriental criada em dezembro de 1989, após a queda do Muro de Berlin. [NdT]
Coordenado por Maurilio Botelho, o dossiê de capa da edição #35 da Margem Esquerda procurou oferecer um panorama introdutório dos principais expoentes da “crítica do valor”, com textos de Ernst Lohof, Norbert Trenkle, Tomasz Konicz e Robert Kurz.
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Robert Kurz (1943-2012) foi um filósofo e ensaísta alemão. Um dos principais expoentes da vertente de reinterpretação da obra de Marx denominada “crítica do valor” [Wertkritik], publicava regularmente ensaios em jornais e revistas da Alemanha, Áustria, Suíça e Brasil. Sua obra O colapso da modernização (1991), foi especialmente bem recebida no Brasil.
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