Objetivo socialista e o novo movimento operário
A superação da lei do valor não é o limite superior do socialismo, sua transformação em “comunismo consumado”, mas seu limite inferior, seu ponto de partida. Do ponto de vista econômico, a abolição da lei do valor é idêntica à ruptura do invólucro capitalista.
Por Robert Kurz
O ensaio “Objetivo socialista e o novo movimento operário”, de Robert Kurz, apareceu no jornal alternativo Gemeinsame Beilage, em novembro de 1984, como uma publicação ligada ao grupo Neue Strömung [Nova Corrente] e ao recém-criado Initiative Marxistische Kritik/IMK de Nuremberg. Essa dupla referência já indica o seu caráter de transição, de uma “corrente” ainda pertencente ao processo de dissolução do Movimento-ML alemão aos primeiros passos de uma iniciativa teórica fundamentalmente nova. Essa situação ajuda a compreender a relação entre a “crítica do valor” [Wertkritik] e a teoria marxista. A primeira se originou como uma tentativa, ainda no interior do marxismo, de recolocar a lógica do valor no centro da argumentação teórica, tal como Marx havia definido o capitalismo como um “modo de produção baseado no valor”.
Em alguns aspectos, Kurz ainda se prende aqui ao estilo doutrinário dos K-Gruppen [Grupos Comunistas], com os quais rompeu no final dos anos 1970. Seu primeiro livro, Vanguarda ou retaguarda, de 1978, documenta a polêmica com o KABD, sua antiga organização. Após um longo debate com remanescentes da “Década Vermelha” e do Movimento ML, publicado entre 1980 e 1981, nos quatro números da revista Neue Strömung, Kurz dá início a uma nova etapa da sua elaboração. Em 1984, com a criação da IMK, Kurz vai se dedicar inicialmente a uma crítica dos novos movimentos sociais alternativos, muito fortes na juventude das camadas médias, e elabora em “Objetivo socialista e o novo movimento operário” uma interpretação original do “modo de produção soviético” e do significado histórico da Revolução de Outubro. Nessa época, porém, o ponto de vista crítico do valor ainda não está formulado diretamente como um programa teórico. Isso vai ocorrer progressivamente ao longo da década de 1980. Ainda assim ele está presente em uma forma embrionária. Três pontos merecem destaque: a incompatibilidade entre o socialismo e a lei do valor, o caráter “recuperador” da formação social surgida na antiga URSS, como um processo concentrado de “acumulação originária” de capital e, por fim, a contradição interna desse processo depois de alcançado o seu “objetivo” modernizador. Essa abordagem difere das teorias marxistas anteriores do capitalismo de Estado, pois ela não explica a existência de relações capitalistas a partir da “permanência” ou da “restauração” de relações de exploração ou ainda dos mecanismos de distribuição do mais-produto, mas, em vez disso, explica as relações de exploração e de distribuição a partir da mediação das relações sociais de produção baseadas no valor. Nesse sentido, ela cria uma interpretação inteiramente nova e reconectada com a crítica da economia política de Marx, para além do “politicismo” que dominou o debate marxista do século XX. Mais do que uma análise do modelo soviético a partir da mediação da lógica do valor, já está presente aqui uma primeira elaboração, ainda apenas esboçada, da teoria da crise fundamental do capitalismo. Uma exposição mais desenvolvida dessa teoria apareceu em 1986, no ensaio “A crise do valor de troca”, no primeiro volume da revista Marxistische Kritik.1
Estes são os dois primeiros passos para a nova elaboração que tomou forma no final da década de 1980 como uma “crítica fundamental do valor”, e depois abreviada para “crítica do valor”. O apelo do texto à retomada do “marxismo autêntico” deve ser lido nesse contexto de época. Essa fórmula se mostrou inteiramente datada. As referências a uma “lei geral da economia de tempo” ou ao sujeito revolucionário definido em termos apriorísticos – ambas ligadas a um conceito moderno transistórico de trabalho2 – também fazem parte da herança marxista que ainda cabia superar. Muito rapidamente, a nova elaboração se desembaraçou da velha casca marxista, notadamente após a ruptura de época simbolizada pelo colapso do “socialismo de caserna” (Marx), apresentando-se como uma corrente teórica autônoma. Outro aspecto importante do texto que publicamos aqui é que ele já contém, muito antes de sua formulação mais acabada em O colapso da modernização (1991), uma teoria das contradições internas dos mercados planejados do Leste, que é pensada em conexão com a teoria da crise: “Após alcançar a industrialização, para a qual ela foi realmente funcional, a burocracia capitalista estatal precisava se tornar completamente disfuncional na tarefa de ingressar competitivamente no mercado mundial e iniciar um processo de desenvolvimento intensivo (produção de mais-valia relativa) nas condições do mercado mundial […] A grave crise de todo o bloco do Leste como um capitalismo conduzido, por assim dizer, com o freio de mão puxado, deve evoluir inexoravelmente e é provável que, além disso, leve a graves colisões sociais. Através do mercado mundial, a crise do capitalismo do Leste funde-se com a do Ocidente, que corre sem freios para o precipício de um colapso da lei do valor”.
Tudo isso faz de “Objetivo socialista e o novo movimento operário” um texto pioneiro, ainda que sua linguagem soe atualmente bastante antiquada. Há também elementos especificamente alemães como as referências a contextos teóricos regionais, à ideologia “crítica das forças produtivas”, que está na origem do então influente Partido Verde alemão, ou ao debate sobre a perspectiva pan-europeia em oposição aos movimentos orientados em termos nacionais. Trata-se de contextos muito particulares, o que pode limitar a compreensão de algumas nuances da argumentação, mas, por outro lado, isso também testemunha o engajamento de uma teoria orientada para os problemas da ordem do dia. A referência a um “novo movimento operário”, por sua vez, aponta para as condições sociais que permitiriam um desenvolvimento multilateral dos indivíduos, para além da sua identificação como “produtor”. E por trás da antiga fórmula doutrinária do “marxismo autêntico”, afinal, encontramos duas ideias básicas que permanecem atuais: um retorno a Marx e ao problema da reformulação do objetivo socialista. De certa forma a exigência presente nesse texto, por assim dizer, inaugural, acompanhou toda a elaboração teórica de Kurz, ainda que, no decorrer do seu percurso intelectual, ela tenha sofrido modificações importantes e, ao mesmo tempo, tenha ficado evidente que para formular uma teoria do capitalismo de crise atual não basta voltar a Marx, mas também é preciso ir além dele.
Marcos Barreira
Objetivo socialista e o novo movimento operário
Para uma crítica do modo de produção soviético
Por Robert Kurz
Não apenas na RFA, a esquerda parece ideológica, teórica e politicamente esgotada e desmantelada, isso apesar da crise mundial do capitalismo. A força explicativa e mobilizadora do marxismo autêntico, embora nunca tenha sido tão adequada quanto hoje, já não pode ser realizada. Talvez justamente porque o conjunto da esquerda tenha acolhido com entusiasmo a mal-afamada divisa de E. Bernstein segundo a qual “o movimento é tudo; a meta final, nada”. Em certo sentido, isso também se aplica à ala revolucionária da esquerda, que não se cansou de elaborar inúmeras estratégias para “chegar à revolução”, mas permaneceu sempre particularmente vaga quanto ao conteúdo do objetivo socialista. De maneira irrefletida e inquestionável, a formação social surgida da Revolução de Outubro foi aceita, para o bem e para o mal, como “socialismo real”. A crítica a esse “socialismo real” permaneceu externa, moral ou democrático-burguesa; as posições apologéticas, bem como as críticas se entrincheiraram em décadas de repetidas guerras de posição e estão agora apodrecendo em conjunto. Mas o processo de desenvolvimento social continuou em novos e mais altos níveis, por trás das costas não apenas dos teóricos burgueses, mas igualmente dos teóricos da esquerda. O fato de a crise mundial do capitalismo andar de mãos dadas com a crise mundial do “socialismo real” paralisou a esquerda e levou a uma fuga em massa para as reacionárias e irracionais ideologias de classe média. Mas uma saída real da crise por parte de um novo movimento operário revolucionário só pode ser encontrada mediante a reformulação do objetivo socialista, que deve passar por uma crítica materialista do antigo movimento operário. O que está na agenda não é nem a impotente manutenção da tradição, nem o flerte “tático” com o movimento de classe média hoje dominante na superfície social (ou mesmo a desafortunada união de ambos na forma da NHT),3 mas um esclarecimento impiedoso da questão de por que o comunismo, apesar de um desenvolvimento capitalista para além do seu amadurecimento, ainda não foi capaz de triunfar? Um debate sobre o objetivo socialista é inevitável se a esquerda marxista quiser encontrar o caminho de volta a si mesma.
Economia de tempo e lei do valor
Ao contrário da percepção da crença popular, os fundadores do marxismo extraíram conclusões concretas da crítica da economia política do capital para a “construção do socialismo”. Essencial é a “economia do tempo”, que, segundo Marx, é válida para todas as formações sociais históricas. Uma quantidade limitada de fundos de tempo está sempre à disposição das pessoas, tanto individual quanto socialmente, e deve ser distribuída entre as várias atividades necessárias. Nas sociedades originais, que não produzem mercadorias, com pouca socialização material do trabalho (geralmente pequenas comunidades diretamente geridas), essa distribuição dos fundos de tempo é regulada naturalmente e pelo costume, é “direta”, sem quaisquer instâncias de mediação social. É diferente no nível da produção de mercadorias, o que implica uma divisão social ampliada do trabalho e, portanto, maior conexão social com base em forças produtivas mais desenvolvidas. A distribuição do fundo de tempo social nos variados trabalhos parciais ainda ocorre naturalmente, mas não é mais “direta”, pois a regulação do conjunto do trabalho social, ainda intimamente relacionada ao contexto natural, se divide em trabalhos privados separados que, como se sabe, revelam a divisão social do trabalho apenas como troca no mercado. Como a socialidade da produção não existe diretamente na própria produção, mas só pode existir na troca e, portanto, não há controle social do não obstante desenvolvimento social, surge no intercâmbio de trabalhos privados separados o problema da equivalência. De modo ideal-típico, teriam de ser trocadas quantidades iguais de trabalho médio socialmente necessário (“abstrato”), objetivado nos produtos. Realmente, no entanto, isso acontece apenas na média e por fricções do processo de troca: a proporcionalidade da relação entre o fundo social de tempo e o trabalho social parcial (conhecido na economia como o problema de alocação de recursos) só se estabelece por meio da desproporcionalidade. A razão para isto é que a “economia do tempo” na produção de mercadorias já não aparece diretamente, como nas comunidades naturais, mas apenas indiretamente como um real reflexo das mercadorias umas nas outras. Nem tanto: em uma mesa, por um lado, e duas cadeiras, por outro lado, há duas horas de trabalho social cada, porém: uma mesa “vale” duas cadeiras. Mesmo nos primeiros estágios da produção de mercadorias, essa relação produziu o dinheiro como uma “mercadoria geral” (equivalente geral), e cada rastro da economia de tempo realmente subjacente ao trabalho social foi apagada da consciência (fetichismo da mercadoria). A lei do valor como lei fundamental da produção de mercadorias não é, portanto, idêntica à lei geral da economia de tempo aplicável em todas as sociedades, mas apenas a sua manifestação histórica particular nas sociedades produtoras de mercadorias. A lei do valor não significa apenas que o “valor” é baseado em quantidades de trabalho social humano abstrato (teoria do valor-trabalho), mas que a abstração do trabalho é realmente encarnada como “abstração real”, como um reflexo real das mercadorias entre si e como dinheiro.
O capitalismo é a continuação da produção de mercadorias por outros meios. Dentro das ramificações do trabalho social que existem como trabalhadores privados separados, ele impulsiona um novo nível “interno” de divisão do trabalho que, por um lado, aumenta enormemente a força produtiva do trabalho e, por outro, transforma a própria força de trabalho humana em mercadoria e generaliza o caráter mercantil anteriormente marginal dos produtos (destruição da produção de subsistência, transformação de camponeses em assalariados industriais, capitalização da economia rural). Através do uso da maquinaria mediada pela concorrência, esse processo será impulsionado sobre as bases do capitalismo em formas cada vez mais elevadas. O capital estabelece uma contradição que não pode ser resolvida com base na produção de mercadorias: por um lado, a produção continua a se basear na lei do valor, cujo domínio é até mesmo generalizado; por outro lado, é a condição material desse mesmo processo que mina a lei do valor, dissolve o trabalho privado separado no nível técnico-material e reúne o trabalho social em um nível superior. Esse novo estágio de socialização do trabalho é evidente em três níveis:
- A divisão do trabalho entre ramos individuais de produção é ampliada por meio da divisão do trabalho no interior dos ramos da própria produção.
- Os diversos ramos da produção penetram uns nos outros, os limites claros entre eles (ainda rígidos no sistema de guildas) se embaraçam e se dissolvem.
- A produção total torna-se cada vez mais dependente de uma gigantesca infraestrutura social, cujo desempenho não pode ser compreendido (faβbar) em termos de valor, mas conduz o aumento constante da produtividade do trabalho material (ciência, formação, comunicação, etc.). Assim, a produção baseada no valor tende a colapsar, o capital carrega em si mesmo um limite lógico e histórico que se torna visível em uma escalada de crises devastadoras. O invólucro capitalista deve romper-se.
A essência econômica do socialismo
O socialismo não pode significar outra coisa do que levar em conta também economicamente a socialização material da produção conduzida pelo capital. A socialização técnico-material também deve aparecer como socialização socioeconômica. Isso significa a superação da produção parcial privada ou social, mantida à força e formalmente pelo capital, e sua substituição pela coletividade, como produção coletiva, operada e controlada pela sociedade como um todo. Com isso, no entanto, a lei do valor não mais se sustenta como uma forma histórica particular da economia do tempo. A substituição da produção social indireta (produção de mercadorias) pela produção social direta (materialmente socializada) também exige que a economia do tempo não seja representada indiretamente como “valor”, como um reflexo real das mercadorias entre si, como dinheiro (e, portanto, necessariamente por trás das costas dos produtores), mas que seja tomada diretamente e manejada pelos produtores autoconscientes em sua produção socializada como o que é: distribuição do fundo de tempo social para as diversas atividades de acordo com um plano comum. Desse modo, a lei universal da economia do tempo reaparece imediatamente, embora não mais como nas comunidades naturais e com base no mero contexto natural, mas a partir da própria socialização das pessoas.
Disso se deduz que a lei do valor e o socialismo são completamente incompatíveis. Das duas, uma: ou a produção se torna realmente social, de modo que os produtos não poderiam mais ser representados como “valor”, nem aparecer duplicados de modo fantasmagórico como dinheiro em sua forma de valor, ou a socialização continua indireta, como forma-valor dos produtos, sem que exista qualquer produção social comum ou direta. A superação da lei do valor não é o limite superior do socialismo, sua transformação em “comunismo consumado”, mas seu limite inferior, seu ponto de partida. Do ponto de vista econômico, a abolição da lei do valor é idêntica à ruptura do invólucro capitalista.
Não há dúvida de que tal visão – a única autenticamente marxista – está em flagrante contradição com a “discussão marxista” travada há décadas sob o diktat da formação social que surgiu da Revolução de Outubro. Por mais antagônicas que sejam as posições nesse debate, em um aspecto elas são notavelmente parecidas: a abolição da lei do valor é adiada para um futuro cada vez mais distante, e essa formação é declarada de um modo ou de outro como “sociedade de transição” que se estende por um período para sempre indefinido. Na maior parte, a validade da lei do valor e a existência da produção de mercadorias são consideradas constitutivas de toda a “fase inferior do comunismo”, isto é, do socialismo. Posições grosseiramente revisionistas como essas se afastam do marxismo. Sem dúvida, medidas transitórias são necessárias à transformação econômica da sociedade, que em alguns aspectos levam apenas poucos meses, em outros aspectos talvez um período de alguns anos. No entanto, é completamente ridículo supor que, após quase sete décadas (como na União Soviética) ou depois de quatro décadas (como nos países “democrático-populares”), a lei do valor e o caráter mercantil da produção deveriam ser uma expressão do “socialismo”. À luz da crítica marxiana da economia política, tal ideia é simplesmente grotesca. Essa visão não pode ser justificada mesmo com referência a uma distribuição desigual com base nos “remanescentes do direito burguês” de Marx no período de transição do socialismo (Crítica do programa de Gotha). A distribuição de acordo com a capacidade é perfeitamente possível para o tempo de trabalho, o que não exige minimamente a lei de valor e a produção de mercadorias. Às vezes, por ignorância ou contra melhor juízo, afirma-se que Marx rejeitou a remuneração por desempenho através dos cupons de trabalho (certificados de pagamento por trabalho social) como uma “utopia anarquista”. É exatamente o oposto. Marx está criticando Proudhon, Gray e outros por confundirem os cupons de trabalho socialistas com o “dinheiro” (“dinheiro do trabalho”), porque teoricamente eles não vão além do horizonte da produção de mercadorias. Marx prova que uma medição direta do desempenho social do trabalho em uma troca de trabalhos particulares separados (como Gray tinha em mente e, em seguida, Proudhon, de forma vulgarizada) não é possível; a consequência, entretanto, não é a negação da distribuição por cupons e sim a abolição da produção de mercadorias. Todas as teorias que afirmam a compatibilidade da lei do valor com o socialismo (ou como o astuto Ernst Mandel que, para evitar essa dificuldade, criou o monstrengo teórico de uma “sociedade de transição” para a sociedade de transição do socialismo) não são apenas falsas e ilógicas, mas, ao mesmo tempo, uma ideologia de circunstâncias reais. A vigência real da lei do valor no bloco oriental remete à existência não menos real das relações de exploração. Não é verdade que o caráter geral de mercadoria da produção foi limitado pelo fato de a força de trabalho já não ser uma mercadoria, mas antes o contrário: apenas porque a força de trabalho permaneceu em si uma mercadoria (ou se tornou, como na maior parte da população camponesa do Oriente) é que os produtos aparecem como mercadorias. Se a força de trabalho é privada, a produção não pode ser comum. A transformação da força de trabalho humana em mercadoria e sua utilização com base na produção geral de mercadorias, no entanto, permanece a essência de um modo de produção capitalista, no qual podem ocorrer formas específicas. No entanto, resta esclarecer como esse “capitalismo do Oriente” pôde se desenvolver contrariamente às intenções dos bolcheviques e no que a sua forma difere daquela do capitalismo ocidental.
O dilema da Revolução de Outubro
Depreende-se logicamente da teoria de Marx que, em termos econômicos, a revolução socialista só é possível a partir de certo grau de amadurecimento da socialização capitalista. Por outro lado, em condições específicas, o proletariado pode tomar o poder político (relativo) independentemente desse grau de amadurecimento do processo de socialização material. Nesta relação de tensão, se resolve o dilema da Revolução de Outubro. Lenin e os bolcheviques estavam plenamente conscientes disso. Não poderia haver dúvida de que a Rússia, em seu conjunto, nem sequer havia alcançado o grau mínimo de amadurecimento da socialização capitalista da produção. O que Lenin desenvolveu (e, portanto, sua doutrina era superior à da socialdemocracia ocidental) foi, pela primeira vez, uma estratégia política internacional da revolução, baseada nas condições da Primeira Guerra Mundial imperialista: a revolução russa, dirigida contra um tzarismo totalmente ultrapassado e como elo mais fraco na cadeia das classes inimigas, daria o impulso inicial para a revolução proletária nos países desenvolvidos da Europa Ocidental. Com o apoio econômico de um socialismo ocidental, e somente com esse apoio, o poder proletário no Leste poderia então contar com uma chance econômica de sobrevivência e saltar as etapas essenciais do desenvolvimento do capitalismo. O acerto de contas estava próximo, mas não veio. Lenin havia subestimado a amplitude e a profundidade do reformismo do movimento operário ocidental e superestimado o nível de maturidade do processo de socialização ocidental da produção material, tal como, antes, em parte, os próprios Marx e Engels. Assim, a tragédia da Revolução de Outubro estava anunciada. Tão logo ficou claro que a União Soviética pretendia fazer brotar a acumulação originária (industrialização) com seus próprios esforços, sem apostar mais na revolução dos operários ocidentais, o poder socialista foi condenado à morte. Pois a produção socializada (socialista) significa gestão e controle coletivos da produção, e assim também a superação pelo menos das formas mais grosseiras de divisão capitalista do trabalho; caso contrário, a lei do valor não pode ser superada. No entanto, as forças produtivas desenvolvidas como base para um fundo de tempo social “excedente” já são um pressuposto para isso. A acumulação originária é precisamente o oposto, a saber, a permanente absorção de massas de trabalho excedente dependentes de salários – e, nesse sentido, sua essência era integral e forçosamente capitalista.
A decadência do poder socialista na Rússia, no entanto, não poderia ser alcançada por meio de uma contrarrevolução da antiga burguesia russa. Ela era demasiado fraca, desde a dependência do tzarismo e do capital estrangeiro até a sua completa destruição pela Revolução de Outubro. A inevitável contrarrevolução só poderia vir de dentro, de um processo de transformação do próprio partido bolchevique. Em apenas uma fase na história soviética esse roll back foi possível de um modo frio e de dentro para fora, ou seja, na etapa após a morte de Lênin e após o fim da guerra civil, em meados dos anos 1920. Assim como Lênin, já perto da morte, havia analisado em artigos e rascunhos durante os últimos anos e meses de sua vida, o proletariado industrial original e numericamente pequeno havia sido destruído e exaurido durante essa fase da revolução e da guerra civil. Não havia mais nenhuma base social real para a revolução socialista quando o partido dominante rapidamente se transformou em um aparato de poder separado e “flutuante”. Sob Stalin, esse aparato foi transformado, em seu caráter econômico, na máquina capitalista da acumulação originária. Nesse sentido, todas as teorias da “restauração” estão desde o início no caminho errado, colocando apenas o pseudo-acerto de contas de Khrushchev com o stalinismo em 1956 como a data sinistra de uma suposta contrarrevolução. Seria também muito estranho que um “poder operário”, após décadas de domínio, subitamente afundasse sem qualquer barulho, nem grandes colisões ou distúrbios. De fato, em termos econômicos, aparte algumas medidas de emergência fulgurantes do “comunismo de guerra”, nunca existiu um modo de produção socialista na União Soviética. Na fase de esgotamento geral, após a guerra civil, a morte de Lênin e diante da ausência da revolução no Ocidente, o poder político socialista foi transformado de maneira “fria” em uma máquina da acumulação capitalista originária. O stalinismo é apenas o reflexo ideológico desse desenvolvimento não compreendido.
O capitalismo de Estado soviético
Em face de um mercado mundial já altamente organizado e de países imperialistas desenvolvidos, a acumulação originária na União Soviética teve que seguir formas diferentes daquelas do Ocidente. Devido à pressão econômica externa, ela não podia mais se desenvolver lentamente a partir do movimento de concorrência do seu próprio mercado interno, mas teve de ser produzida rapidamente por meio de uma administração capitalista de Estado centralizada. Todas as formas designadas como “socialistas”, como o plano central, a absorção estatal centralizada de mais-valia, a autoridade centralizada de investimento estatal, o monopólio do comércio exterior, etc., nada mais são do que componentes necessários dessa máquina capitalista de Estado. Com base na lei do valor e na produção de mercadorias, eles não poderiam fazer outra coisa. Com a formação desse modo de produção capitalista de Estado, formou-se inevitavelmente uma classe dominante estatal capitalista de comandantes da produção e apropriadores estatais da mais-valia. Desde então, essa acumulação capitalista originária e recuperadora tornou-se um modelo para todos os países que pretendiam romper com o cerco colonial ou neocolonial e avançar para uma base autônoma de acumulação. Daí a afinidade dos movimentos de guerrilha, mas também em parte dos golpes de Estado militares de “esquerda”, ditadores, etc. do “Terceiro Mundo” com a União Soviética. Tais desenvolvimentos, que estão sempre acontecendo ideologicamente sob essa máscara “socialista”, economicamente só podem ser um capitalismo de Estado de acumulação originária recuperadora, cuja natureza não é de modo algum modificada por designações eufemísticas como “via de desenvolvimento não capitalista”. De acordo com os recursos naturais e humanos existentes, a acumulação capitalista de Estado pôde continuar até certo ponto, o que até agora só foi possível em grandes países como Rússia e China, ou deve retornar a uma forma de dependência econômica. Com o surgimento do capitalismo de Estado na União Soviética, no entanto, foram estabelecidas novas contradições insolúveis. Estas apareceram apenas ligeiramente na industrialização feita do nada. No entanto, assim que este processo foi concluído em termos gerais, isto é, com a realização de sua própria base industrial pesada, um fornecimento organizado de energia e eletrificação, bem como um sistema de transporte e comunicação, etc., essa contradição entre a produção de mercadorias e a centralização capitalista de Estado começou a se afirmar. Após alcançar a industrialização, para a qual ela foi realmente funcional, a burocracia capitalista estatal precisava se tornar completamente disfuncional na tarefa de ingressar competitivamente no mercado mundial e iniciar um processo de desenvolvimento intensivo (produção de mais-valia relativa) nas condições do mercado mundial. A tarefa de “planejar o mercado”, isto é, todo controle consciente das funções por natureza inacessíveis da sociedade de produção de mercadorias (fluxo de valores de câmbio, preços, salários), o seu “planejamento” social consciente (e nada mais é que o mecanismo de planejamento no bloco oriental), deve tornar-se irremediavelmente insolúvel. Na superfície, isso é demonstrado pelo fato de o bloco oriental ter ficado para trás em termos de produtividade do trabalho em relação ao Ocidente desde os anos 1950, recusando-se a pagar por importações caras de tecnologia e provando, portanto, a pura ilusão do “alcançar e ultrapassar”. Nesse contexto, a crítica superficial do sistema stalinista desde Khruschev deve ser vista a partir de então como um debate interminável sobre reformas econômicas, que aponta sempre apenas na direção de um desenvolvimento mais forte dos elementos de mercado e concorrência. Mas as verdadeiras reformas “baseadas no mercado” foram neutralizadas por meio da expansão dos interesses do próprio aparato capitalista de Estado e da sua dinâmica própria que entrementes se desenvolvia. A partir desse contexto, fica claro que a transferência forçada do sistema soviético capitalista de Estado para os países já industrializados, como RDA ou Tchecoslováquia, foi, desde o início, disfuncional e reacionária. A grave crise de todo o bloco do Leste como um capitalismo conduzido, por assim dizer, com o freio de mão puxado, deve evoluir inexoravelmente e é provável que, além disso, leve a graves colisões sociais. Através do mercado mundial, a crise do capitalismo do Leste funde-se com a do Ocidente, que corre sem freios para o precipício de um colapso da lei do valor. Não resta mais nada para a humanidade no Leste e no Ocidente a não ser interromper a produção de mercadorias ou afundar junto com este modo de produção.
As tarefas da esquerda revolucionária
As lutas reais da classe operária no atual processo de crise e alteração no capitalismo mundial não têm, finalmente, espaço neste modo de produção; elas só podem ter uma perspectiva se forem combinadas com a orientação estratégica de uma reformulação do objetivo socialista. Tal perspectiva pode ser desenvolvida pela esquerda revolucionária apenas por meio da crítica da regressiva ideologia de classe média “crítica das forças produtivas” e suas reacionárias implicações políticas nacionalistas ou “regionalistas”. Pois que a abolição da produção de mercadorias só é possível no plano internacional através de uma revolução operária socialista pan-europeia. A recusa de todas as fantasias reacionárias de “unificação” de bitola estreita da esquerda nacionalista, por um lado, e a reformulação do objetivo socialista como crítica do antigo movimento operário e do capitalismo de Estado soviético, por outro, são duas faces da mesma moeda.
Publicado originalmente como Sozialistisches Ziel und neue Arbeiterbewegung. Zur Kritik der sowjetischen Produktionsweise no Gemeinsame Beilage, n. 1., em 30 de novembro de 1984. Traduzido por Marcos Barreira.
Coordenado por Maurilio Botelho, o dossiê de capa da edição #35 da Margem Esquerda procura oferecer um panorama introdutório dos principais expoentes da “crítica do valor”, com textos de Ernst Lohof, Norbert Trenkle, Tomasz Konicz e Robert Kurz.
Notas
1 Ver KURZ, Robert Kurz. A crise do valor de troca. Trad. André Villar Gomez e Marcos Barreira. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
2 Sobre a crítica do conceito transistórico de trabalho, ver KURZ, Robert. A ditadura do tempo abstrato: o trabalho como desajustamento da era moderna, Margem Esquerda, n.35, 2020.
3 “A “Nova Teoria Principal” (NHT) foi uma elaboração teórica surgida no início dos anos 1980 em Gelsenkirchen como parte do contexto de dissolução do Movimento “ML” alemão. [NdT]
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Robert Kurz (1943-2012) foi um filósofo e ensaísta alemão. Um dos principais expoentes da vertente de reinterpretação da obra de Marx denominada “crítica do valor” [Wertkritik], publicava regularmente ensaios em jornais e revistas da Alemanha, Áustria, Suíça e Brasil. Sua obra O colapso da modernização (1991), foi especialmente bem recebida no Brasil.
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