Ainda sobre o “milagre chinês” (I)

Maurilio Botelho e Marcos Barreira respondem artigo de Jones Manoel e refletem sobre os conceitos de "circuito deficitário" e "capital fictício" para aprofundar o debate sobre o "milagre chinês".

DEMOLIÇÃO SIMULTÂNEA DE 15 PRÉDIOS EM HUAIAN, NA CHINA.

Por Maurilio Botelho e Marcos Barreira

Este texto é uma réplica ao comentário de Jones Manoel neste Blog e a outras reações a propósito do debate China: horizonte socialista ou fim de linha capitalista?”, em que a nossa posição teórica foi confrontada com a do professor Elias Jabbour. Jones afirmou no texto recente que “conhece em profundidade” nossos argumentos, mas mesmo assim preferiu se limitar em seu comentário apenas ao que foi dito durante o debate, colocando-se, portanto, na posição de um espectador que não conhece as ideias que estão ali subjacentes. Ele não se preocupou em explicar o porquê de um artifício tão inusitado, dando-lhe, assim, ares de algo trivial. É evidente que isso impede que a crítica ajude o leitor a se aprofundar na discussão e a conhecer os fundamentos e o contexto das ideias que apresentamos. Ao adotar uma postura performática – um “como se” –, que substitui o debate real pela tentativa de reproduzir o que seria a impressão imediata dos espectadores, nosso interlocutor já não tem o que fazer em termos de análise crítica. Ele pode apenas desviar a discussão para outra direção, vale dizer, para qualquer direção (!). Saímos então do terreno de um debate específico sobre pontos precisos, no qual se exige a mediação teórica, e adentramos o campo da simulação e da aleatoriedade. Algo que, diga-se, vai ao encontro do atual “espírito do tempo”. Em seguida, sem nem mesmo tentar elaborar uma síntese da intervenção que pretende criticar, Jones afirma logo de saída que “gostaria muito de entender melhor o que ele [Maurilio] defende quando afirma que a China não tem um crescimento real, produtivo, mas uma acumulação baseada em dívida e crédito”. A tese central apresentada durante o debate, no entanto, é precisamente o contrário disso: uma vez que o crescimento se baseia em “dívida e crédito”, ele não pode ser confundido com uma forma real de acumulação. Essa tese nos leva a dois outros argumentos centrais, ambos apresentados tanto em nosso artigo “Capitalismo asiático e crise global”, na revista Margem Esquerda n.37, quanto no debate na TV Boitempo: o crescimento induzido pelo “capital fictício” e a forma de mediação dos “circuitos deficitários” globais. Nenhum deles foi considerado no comentário de Jones, ainda que este alegue, como vimos, “conhecê-los em profundidade”. Aqui fica evidente que também a “referência apenas ao que foi apresentado” não se atem de fato aos nossos argumentos. Caso os tivesse considerado, Jones provavelmente teria compreendido que, do nosso ponto de vista, não se pode identificar imediatamente crescimento econômico (expansão do PIB) e acumulação de capital. A pergunta inicial que ele faz, porém, se baseia precisamente nessa identificação. Jones revela assim, uma incompreensão da diferença entre os conceitos de riqueza material e riqueza abstrata (capitalista), que estão no cerne da teoria de Marx sobre o valor, a relação-capital, a forma-mercadoria etc. Na ausência dessa diferenciação, sobram apenas dados econômicos brutos ou imediatos, algo que também foi criticado em nosso artigo como “positivismo econômico”. Fazemos então um convite a que, em vez do método utilizado por Jones, os leitores/as interessados tomem o debate como um ponto de partida para aprofundar a discussão a partir da leitura dos argumentos dos autores.

Dito isso, fica claro que não podemos seguir passo a passo a argumentação de Jones, o que só nos levaria a um labirinto de afirmações ideológicas deslocadas do problema real que debatemos em nosso artigo. Esse conjunto de afirmações, além disso, tende a embaralhar planos distintos de argumentação como o da natureza de uma formação social, a sua viabilidade histórica atual e o plano teórico-categorial da análise. Por outro lado, o confronto, mesmo que apenas indireto, com a posição representada por Jones Manoel – que, devemos reconhecer, é franca e amigável –, nos permite ir um pouco além do nosso objetivo inicial para refletir a respeito de certa “condição” mais geral do debate da esquerda marxista atual e também permite que apresentemos nossas ideias a um público maior do que o dos leitores/as da “crítica do valor”. E quanto a isso, só podemos lhe agradecer o interesse pelo debate. Como precisamos nos estender um pouco mais, dividimos esse texto em duas partes.

Parte I: Notas adicionais sobre os conceitos de “circuito deficitário” e “capital fictício”

I

Para responder às indagações e críticas suscitadas pelo artigo “‘Capitalismo asiático’ e crise global”, gostaríamos de retomar nosso argumento principal e, em seguida, apresentar alguns desdobramentos dele na análise concreta da inserção chinesa na economia mundial. Nosso ponto de partida foi a recusa das teorias que enxergaram no crescimento das economias do Japão nos anos 1970-1980 e da China a partir dos anos 1990 um “deslocamento do centro da acumulação capitalista” para o Leste Asiático. Nosso artigo contrapõe a essa tese uma interpretação baseada na teoria da crise da “crítica do valor”, segundo a qual desde a crise do fordismo, na sequência da Terceira Revolução Industrial, não se pode falar realmente em uma expansão global da acumulação capitalista. De acordo com essa teoria, pelo contrário, tem início na década de 1970 um processo tendencial de declínio na criação de valor, como efeito dos processos de racionalização da produção e da globalização do capital. Contra a “evidência empírica” do sucesso da economia chinesa, a crítica do valor sustenta que há uma relação complementar entre os “polos” econômicos do Ocidente e da Ásia e que o fundamento dessa relação é um conjunto de circuitos deficitários que indicam o caráter não substancial desse crescimento em termos de acumulação de capital. Outro aspecto central desse tipo de crescimento induzido pelos mecanismos deficitários é que ele tem de ser explicado a partir de um quadro de referência imediatamente global e não mais nacional. Argumentamos ainda que um circuito deficitário “principal” foi constituído por volta da década de 1980 e que seus “polos” complementares eram inicialmente os EUA e o Japão, até que este foi substituído pela China no início do século XXI.1 

Esse quadro nos permite afirmar que estaríamos diante não de uma simples crise da hegemonia do Ocidente e de uma era de desenvolvimento capitaneada pelas potências econômicas asiáticas, e sim de uma nova etapa da crise estrutural, para a qual caminham juntos (ainda que não no mesmo ritmo) ambos os “polos” da economia global. Um argumento como esse pressupõe a integração plena da economia chinesa ao mercado mundial, o que, de resto, quase ninguém nega. Tal pressuposto, no entanto, deu origem a uma série de comentários sobre a natureza do “socialismo real”, tema no qual a maior parte dos críticos se deteve, ainda que isso tenha poucas implicações sobre o nosso argumento central.2 O que nos interessa mais diretamente, porém, é mostrar que, diante da integração crescente da China à dinâmica do mercado mundial, ela não pode representar nenhum novo modelo de desenvolvimento (seja qual for a natureza desse modelo), nem uma nova potência hegemônica; antes, a integração da economia chinesa faz com que, a despeito das altas taxas de crescimento verificadas nas últimas três décadas, ela se torne parte dessa tendência geral de crise estrutural.3

Uma dificuldade enfrentada pela nossa posição é que não existe na esquerda brasileira (e não apenas nela) um debate teórico consistente sobre o que é valor e quais as bases substanciais da valorização na situação atual do capitalismo mundial, muito menos um debate mais imediato, derivado do anterior, sobre as bases reais da conjuntura de crescimento das economias asiáticas nas últimas décadas.4 No contexto teórico original da crítica do valor foi desenvolvido, ao longo das últimas três décadas, um conjunto significativo de análises a respeito dos limites do capitalismo e de como hoje não há mais lugar para uma acumulação ampliada mundial, o que exige processos maciços de integração econômica. O capitalismo atual caracteriza-se pela tendência oposta, isto é, a fragmentação das estruturas sociais e econômicas. Isso não exclui a existência de surtos locais de crescimento, mas estes só ocorrem agora em um quadro geral de redução estrutural do poder de compra e de agravamento da concorrência por mercados em contração. Quando consideramos o caso chinês fica evidente que esse crescimento local também não levou a um novo ciclo mundial ascendente. Em vez disso, ele se fez acompanhar de uma tendência à desindustrialização na maioria dos países. Em alguns casos, ocorreu uma transferência direta de empregos produtivos desses países para a China.

O crescimento chinês durante as duas últimas décadas, porém, fez com que os defensores do capitalismo e do “socialismo de mercado” se unissem contra a teoria da crise. De um lado, os economistas liberais enfatizam a abertura dos mercados e a mão de obra barata para explicar o crescimento. Nas abordagens heterodoxas ou marxistas (estas, traindo sua origem “crítica”, há muito se tornaram um neokeynesianismo com verniz socialista) a ênfase é no modelo de planejamento e na regulação dos mercados, em aparente contraposição às economias ocidentais. Em ambas as posições os debates intermináveis sobre a natureza do socialismo levaram quase sempre a uma oposição artificial entre modelos de sociedade, sem que fosse estabelecida a mediação das formas de regulação e de concorrência com as categorias do valor e da forma-mercadoria.5 De um modo geral, pode-se dizer que há, desde o fim da II Guerra Mundial, uma convergência – que ajuda a explicar a integração das economias em um mercado mundial – entre as formas concorrenciais e estatistas. Com a ruptura de época de 1989-1991, a convergência da era fordista entre as economias mistas do Ocidente e os “mercados planejados” do Leste deu lugar a um movimento – também convergente – em sentido oposto, isto é, orientado para a desregulamentação dos mercados. A habilidade do regime chinês em combinar elementos estatistas e concorrenciais, integração no mercado mundial e regulação foi, sem dúvida, decisiva para que ele sobrevivesse à crise do “socialismo real”. Seja como for, isso não é suficiente para explicar o “milagre” de crescimento que se seguiu, o que nos coloca diante da necessidade de esclarecer qual é, afinal, a sua natureza.

É preciso esclarecer como esse crescimento foi impulsionado por mecanismos deficitários e quais as implicações disso. Vamos fazê-lo a partir de alguns desdobramentos das teses que resumimos até aqui.

II

As condições gerais para o crescimento econômico global nas últimas décadas, a despeito da diminuição da capacidade de integrar o trabalho vivo no ciclo de produção de valor, estão diretamente ligadas a dois grandes fatores: o boom do capital fictício que teve início nos anos 1980 e a formação de grandes circuitos deficitários. O primeiro representa uma autonomização do capital que rende juros de modo desvinculado do capital produtivo. Isso só foi possível devido ao desatrelamento do dólar em relação ao ouro. A partir daí, teve início uma nova era de consumo endividado e de investimentos alavancados por todo tipo de bolhas financeiras. O sistema financeiro dos EUA se alimenta dessas bolhas no mercado de ações, no mercado imobiliário etc., de onde brota, direta ou indiretamente, a liquidez do consumo, ou seja, a ampliação do consumo das famílias se tornou um efeito secundário da inflação dos mercados financeiros ou do boom imobiliário. Ao mesmo tempo em que esse processo estrutural de redução do poder de compra era provisoriamente compensado pelo aumento nos preços das ações e dos imóveis, ocorreu a transferência de grande parte da estrutura produtiva para a Ásia. Isso, no entanto, não é o mesmo que um “deslocamento” ou um novo surto de acumulação de capital. Essa teoria (Arrighi, Wallerstein etc.) não concebe a diferença entre produção material e produção de valor e, em última análise, não possui um conceito adequado de valor, capital etc. Partindo de uma fixação no caráter material da produção, não se pode entender que, do ponto de vista da reprodução capitalista, os produtos materiais do trabalho só existem como portadores da sua representação no valor de troca. Se o valor não é “realizado”, o investimento não alimenta nenhum ciclo de reprodução ampliada do capital. É isso que acontece quando o poder de consumo, em vez de decorrer de ganhos reais, é apenas simulado por meio da multiplicação do crédito em larga escala.6 Tal afirmação sobre o caráter “real” ou “irreal” dos ganhos soa abstrata demais não apenas para os teóricos do sistema-mundo, mas também para a “teoria econômica” do marxismo residual. Para ambas, se as mercadorias são consumidas, não pode haver crise, pouco importa se esse consumo possui ou não uma base substancial.7

Sobre esse contexto geral de inflacionamento dos mercados financeiros e da globalização do capital, formou-se um conjunto de fluxos econômicos deficitários que atua como o verdadeiro “motor” da economia mundial. Os EUA, por um lado, absorvem a maior parte dos fluxos de capitais que encontram “segurança” no espaço do dólar e dos fluxos de mercadorias “excedentes”; a China, por outro, atua (em parceria com o capital externo) principalmente como a grande fornecedora de mercadorias para o Ocidente, alimentando um contexto secundário de trocas com os fornecedores de matérias primas e componentes industriais, e como principal financiadora do sistema de crédito por meio da compra dos títulos do Tesouro norte-americano. Novamente: de um lado, os EUA sustentam seu consumo doméstico por meio do endividamento crescente; de outro, esse endividamento é financiado pelo seu maior fornecedor de mercadorias. Assim sendo, a China precisa financiar a compra da sua própria produção no principal mercado do Ocidente. Isso torna evidente que a globalização econômica não é uma simples intensificação das trocas entre contextos nacionais relativamente autônomos e sim uma estrutura imediatamente global que corrói a capacidade de regulação por parte das políticas econômicas nacionais. Também fica evidenciada, assim, a ruptura entre capacidade de produção e capacidade de consumo em termos globais. Trata-se de uma ruptura com a era fordista de expansão do capitalismo, na qual a expansão dos mercados compensava o aumento da produtividade. Algo inédito na história do capitalismo foi produzido desse modo: a expansão do maior mercado consumidor do mundo ocorreu em meio a uma profunda e irreversível desindustrialização e o maior parque industrial do mundo não constituiu nenhum mercado minimamente compatível com a sua capacidade de produção.

Na história do desenvolvimento capitalista, essa dissociação entre capacidade de produção e de consumo era impensável. A Inglaterra era, no século XIX, a locomotiva industrial do mundo e justamente por isso, tinha saldo comercial negativo com muitos países, pois era também o maior mercado consumidor (EICHENGREEN, 2000). O mesmo ocorreu com os EUA durante o século XX, que se tornaram ao mesmo tempo a nova potência industrial e o maior consumidor mundial – e, nas condições favoráveis das duas guerras mundiais, também um campeão de exportações. Abaixo deles, os países concorrentes buscavam as suas próprias estratégias de desenvolvimento nacional, que só podiam significar um crescimento equilibrado entre capacidade de produção e mercado interno. A partir dos anos 1970, esse quadro sofreu uma mudança radical, quando se desfez a relação imediata entre capacidade de produção e de consumo. Em 1972, pela primeira vez desde 1893, os EUA apresentaram um déficit comercial que se tornaria norma, o que indica a ruptura mundial entre o mercado consumidor e o poder de compra de base substancial, resultado da insuficiente criação de valor, pois a sua produção também estava sendo “deslocalizada”.

No Ocidente, o derretimento prolongado da estrutura produtiva foi acompanhado desde os anos 1980 de novos booms de consumo. Na Ásia, surgiram pela primeira vez, nessa mesma época e já como expressão da crise do modelo de desenvolvimento nacional, pequenas economias que se tornaram “plataformas de exportação” do capital global. Na virada para o século XXI, finalmente, a China se consolidou como a nova campeã mundial das exportações, mas sem um mercado interno minimamente correspondente à sua nova posição, isto é, em dependência direta do consumo endividado dos EUA e seu “dinheiro mundial”. Portanto, a expansão material da produção chinesa só pode ser explicada por meio do endividamento sistemático do Ocidente em todos os níveis (nacional, empresarial, familiar etc.). Esse consumo é financiado, em última instância, pela capacidade (não só política, mas também militar) que os EUA têm de oferecer um porto seguro para o investimento especulativo global. Isso lhe permite emitir títulos da dívida pública, que são comprados pelos mesmos países que abastecem com todo tipo de mercadorias o seu mercado interno – um lugar ocupado principalmente pela China desde a virada para o século XXI. Mas, do mesmo modo que o poder de compra real em declínio não pode ser simulado eternamente por meio de dívidas, nenhuma economia nacional, e muito menos uma com o tamanho da China, pode viver fundamentalmente de exportação. Essa relação complementar entre os dois gigantes da economia mundial é, portanto, expressão de uma crise sistêmica que se agrava progressivamente e não de uma “mudança de hegemonia”.

As crises financeiras cada vez mais recorrentes e com capacidade de rápida contaminação global expressam o descolamento entre a multiplicação do dinheiro e o capital produtivo cada vez mais estreito. Esse fenômeno se torna mais complexo quando parte crescente do capital multiplicado nos mercados de capitais e monetários é reinvestida na esfera da produção e quando o poder de compra que sustenta essa produção é também ele dependente da multiplicação do dinheiro “autonomizado”. Cria-se, assim, um contexto deficitário geral no qual a massa de capitais portadores de juros – sem a utilização do trabalho produtivo – começa a sobrepujar o capital produtivo. O resultado só pode ser a eclosão de fortes ondas de desvalorização e de imobilização das estruturas produtivas e da reprodução social.

III

Após mais de duas décadas de crescimento alavancado pela ampliação do sistema de crédito do capitalismo de cassino global, a crise financeira de 2008 colocou em xeque essa economia deficitária. Isso se manifestou como um retorno do protagonismo estatal e da regulação a fim de evitar um grande surto de desvalorização. Nas principais economias do Ocidente, entraram em cena os pacotes de salvamento dos bancos privados e os programas de estímulo conjunturais: além do endividamento estatal sistemático, passou a vigorar uma expansão monetária sem fundamentos, cuja “liquidez” é reciclada nos circuitos fictícios globais. O Estado assumiu, assim, os custos da massa falida da economia de bolhas. Essa “parceria público-privada” de administração da crise não se limitou às economias ocidentais. Do outro lado do circuito deficitário, a China atuou diretamente na absorção de “créditos podres” por meio de novos bancos estatais, ajudando a evitar – na condição de principal credor – uma fuga de capitais do espaço do dólar e reduzindo os efeitos imediatos da crise sobre as suas próprias exportações:

“os fundos soberanos chineses agiram consistentemente de forma anticíclica e mais uma vez aumentaram seu compromisso com os EUA […] Seu interesse próprio nesta situação específica coincidiu com o interesse capitalista geral. Um colapso da economia da dívida dos EUA teria atingido duplamente a economia da China. Por um lado, as indústrias de exportação seriam mergulhadas em uma crise grave e, por outro, isso teria implicado uma desvalorização dos títulos americanos que a China já possuía” (LOHOFF, 2016).

Isso mostra o grau de integração da economia chinesa na lógica do capital mundial e na sua dinâmica de ficcionalização. Por esse motivo, ela também foi obrigada a uma reorientação drástica do investimento após 2008 em função da inevitável retração dos mercados ocidentais.

Essa nova orientação “para dentro” foi feita por meio da expansão sistemática e politicamente orientada das obras de infraestrutura e de novos imóveis. Teve início, assim, um enorme crescimento da infraestrutura urbana financiado pelo endividamento privado e pelo crédito derivado do arrendamento das terras. Este se tornou o principal mecanismo de antecipação de receitas futuras, por meio do qual os governos das províncias financiaram o seu boom aparente. Daí a corrida desenfreada pelo uso de toda a terra disponível em novas construções. Esse mecanismo se tornou tão indispensável para o crescimento que teve início uma enorme emissão de títulos baseados na venda futura do direito de uso de novas terras e de papéis estatais que são empacotados por instituições financeiras privadas em “produtos de gestão de fortunas”, formando uma rede complexa de derivativos que alavancam a ficcionalização.8 A almejada contrapartida da queda das exportações por meio do estímulo ao mercado interno, porém, só podia resultar em uma infraestrutura urbana ociosa e na superacumulação de meios de produção em vários setores da economia – para não falar nos enormes danos ambientais irreversíveis. Em vez de uma dinâmica de consumo autossustentada e orientada pela “utilidade concreta”, o crescimento com base no investimento estatal e na capitalização das terras criou apenas um ciclo vicioso, que repetia em condições particulares o velho “fim em si mesmo” do movimento geral do capital: construir e se endividar “eternamente”, sem considerar justamente a capacidade aquisitiva real e os impactos materiais. Aproximadamente metade do PIB chinês está atualmente comprometido com essas dívidas futuras, isto é, em créditos utilizados para financiar investimentos improdutivos (infraestrutura social) ou que jamais serão realizados (setor imobiliário). Nos últimos anos, o governo chinês se viu diante da necessidade de administrar o estouro das bolhas – garantindo até aqui uma aparência de crescimento normal – por meio do socorro às gigantes do setor imobiliário ou simplesmente dando início a grandes demolições. Construir edifícios para depois demoli-los, esta pode ser a nova máxima de um keynesianismo de crise “com peculiaridades chinesas”.

O saldo de mais de uma década de crescimento induzido por mecanismos deficitários foi uma inevitável desaceleração da economia chinesa e uma mudança radical no perfil da sua dívida interna. Por mais que a China tenha se tornado aparentemente um pouco mais independente da economia dos EUA, isso só foi alcançado ao preço de uma explosão da dívida. Essa dívida ainda é menor que a dos EUA em termos absolutos e é menor que a da segunda economia asiática, o Japão, em termos relativos. A China, no entanto, se endividou de forma muito mais acelerada. Em menos de duas décadas, a dívida duplicou seu tamanho total em relação ao PIB: em 2008, ela correspondia a 140% do PIB; agora já chega a 265%, com um crescimento de 45% só nos últimos cinco anos. Todo esse endividamento em um ritmo inédito na história do capitalismo produziu a maior das bolhas imobiliárias, que agora exige novos recursos para que seu estouro seja adiado.

IV

É inteiramente absurdo supor que o financiamento por meio de déficits é uma “função” normal do capitalismo. Se é verdade que o sistema de crédito teve um papel central, desde o final do século XIX, no “capitalismo financeiro”, isso não diz nada sobre a nova qualidade do crédito e do endividamento na atual economia de déficit global. O boom fordista na primeira metade do século passado, de fato, já exigiu um endividamento maciço tanto dos capitais privados quanto do Estado. De um lado, os custos prévios aumentavam em decorrência dos processos de cientifização da produção; de outro, a nova indústria se tornava muito mais dependente de uma infraestrutura social, da qualificação da força de trabalho e de um aparato burocrático de “gestão”. Tudo isso dependia de grandes investimentos estatais, pois essas novas exigências não podiam se desenvolver diretamente como mercadorias.9 O barateamento dos produtos, porém, gerou uma enorme ampliação dos mercados de trabalho e de consumo, compensando os custos iniciais elevados e os gastos improdutivos, isto é, a antecipação de riqueza futura ainda podia ser confirmada pela utilização rentável da força de trabalho nos processos produtivos. Esse mecanismo funcionou até a década de 1970, quando a nova onda de racionalização finalmente começou a suprimir mais trabalho na produção do que aquele que ainda podia ser compensado por meio de inovações ou da massificação dos produtos. Desde então, o capitalismo convive com um conjunto de fenômenos inteiramente novos: um desemprego em larga escala que já não é condicionado apenas pelos ciclos econômicos, mas tornou-se “estrutural”; a expansão igualmente sem precedentes de setores que funcionam formalmente dentro da lógica empresarial, mas que permanecem improdutivos do ponto de vista da produção de valor; a formação de grandes fundos de investimentos que, ao contrário do “capital financeiro” tradicional, são independentes do capital industrial e da criação de valor; a internacionalização dos mercados financeiros, fora do alcance da regulação estatal. O que é válido para o investimento de capital, também o é para o consumo, na medida em que o crédito sempre crescente depende da incorporação das poupanças aos fundos de investimento e, portanto, está atrelado aos ganhos virtuais da capitalização. Em todos esses casos, estamos diante de tendências antes apenas marginais ou cíclicas que se tornam permanentes e cruciais para a dinâmica capitalista. O mesmo vale para o crédito estatal, que inicialmente fazia parte das flutuações normais da conjuntura econômica e que saia do controle só em momentos excepcionais (financiamento de guerras etc.).

O Estado possui sempre uma capacidade “especial” de contrair crédito, mas o impulso de acumulação da era fordista o mantinha dentro de certos limites. O financiamento estatal dos custos improdutivos da reprodução social, porém, continuou a se expandir, mesmo com a dificuldade crescente de absorver trabalho produtivo em uma escala suficiente, o que foi agravado pela necessidade de promover estímulos que diminuíam o impacto da ausência de poder de compra real, bem como de arcar com os “custos sociais” da crise. O crédito estatal atinge, assim, uma nova dimensão, que faz parte, ao lado da criação privada de capital fictício, da autonomização da superestrutura financeira e da formação de economias de bolhas a partir dos anos 1980. Os efeitos dessa expansão do sistema de crédito estatal já não ficam restritos à esfera da “administração pública”, mas se alastram para o conjunto da reprodução social, que se tornou dependente dele. O “programa inflacionário” originado na economia de guerra foi, assim, progressivamente incorporado à “normalidade” da reprodução capitalista.

Neste ponto, a teoria marxista restante, praticamente “residual”, não tem o que dizer, pois já perdeu de vista qualquer dinâmica estrutural e lida apenas com movimentos cíclicos e sua relação com a “vontade política”.10 Sem um conceito de riqueza abstrata, de “substância do capital”, ela permanece mergulhada no positivismo econômico e com uma noção puramente nominalista do dinheiro, isto é, já não baseada em uma mercadoria-dinheiro.11 A ideia de um crescimento sem substância (em termos de valor) parece então algo inteiramente obscuro. Desse modo, o marxismo residual depende apenas de dados empíricos da superfície do mercado ou da pura “materialidade” dos processos econômicos. Se há uma produtividade substancial do trabalho por trás das estatísticas de crescimento ou se as conjunturas de crescimento se tornaram dependentes de uma sucessão de bolhas sem substância econômica real é algo que já nem pode ser formulado teoricamente. O processo de ficcionalização da economia torna-se, ele próprio uma ficção (!). Essa “ficcionalização”, porém, “faz referência ao conceito do capital fictício, do bom e velho Karl Marx e do famoso O capital, mas está no final, no terceiro volume, onde poucos marxistas chegaram, embora essas partes sejam hoje as mais interessantes” (KURZ, 2004, p.32). O marxismo residual já não consegue nem mesmo compreender do que se trata aqui, justamente porque não vai além das categorias imanentes da economia política burguesa. A posição da crítica do valor parece inteiramente estranha neste ponto justamente porque ela recoloca no centro da análise concreta da crise do capitalismo a teoria do valor de Marx e seus desdobramentos na teoria do capital fictício.

O tema do capital fictício permanece, assim, completamente ignorado ou vira mera aparência assumida pelo “capital a juros”, tratado de modo reducionista como “capital especulativo”. Na lógica d’O capital, assim como o tema da crise, e também de modo fragmentário, o capital fictício aparece no Livro III, após uma série de mediações necessárias para a sua posição. A condição para a sua existência depende da reflexão sobre a “moeda de crédito”, já no capítulo sobre o dinheiro (Livro I). Ali se coloca o vínculo substancial entre mercadoria e dinheiro e se esclarece que no desdobramento deste como “meio de pagamento” é possível ocorrer uma duplicação: no adiantamento de recursos a ser futuramente saldado, essa riqueza (existente na forma de mercadoria-dinheiro) é espelhada por um compromisso de pagamento na forma de título (dinheiro “apenas idealmente”). Esse título, porém, pode ser vendido e comprado em “mercados secundários”, tornando-se ele próprio uma mercadoria. A oposição entre mercadoria e dinheiro, amplificada como oposição entre mercadoria-dinheiro e dinheiro-mercadoria, é imediatamente tratada como uma “contradição direta”, a condição para toda crise: “Na crise, a antítese entre a mercadoria e sua figura de valor, o dinheiro, é elevada a uma contradição absoluta” (MARX, 2013, p. 211). As reflexões para entender a complexidade dessa contradição e da crise escapam à esfera da produção, mas tudo já está enquadrado em termos conceituais na “contradição em processo”: aí estão as bases para o capital fictício, que nasce da ampliação de “moedas de crédito”, quando se aprofunda a autonomia da representação monetária desvinculada de qualquer mercadoria-dinheiro. O capital fictício, portanto, resulta da multiplicação de riqueza abstrata a partir de simples ganhos monetários que substituem ganhos “reais”.12

É nesse contexto de autonomização do dinheiro, cujo vínculo com seu nexo em mercadoria é dissipado no curso da crise estrutural do capitalismo, que surge a subteoria do “endividamento em moeda própria” ou da “impressão ad infinitum de moeda” como mecanismo de desenvolvimento. Desde a crise dos mecanismos de compensação do capital, na década de 1970, e como parte daqueles fenômenos qualitativamente novos, modificou-se também o papel do capital fictício na lógica empresarial. Antes a “capitalização” decorria do aquecimento do capital real: quando o ciclo industrial atingia seu ponto máximo de valorização e começava a produzir excesso de capital, os ganhos “reais” eram substituídos pela “aplicação financeira”. A euforia da multiplicação monetária decorrente da superacumulação de capital persistia por algum tempo, até tudo desmoronar e o pânico se instalar. Hoje, a capitalização é, desde o início, impulsionada pela superacumulação estrutural de capital decorrente do desenvolvimento máximo atingido com a produção microeletrônica e a globalização. A “normalidade” do capitalismo atual, portanto, é a “estagnação secular”, um declínio econômico real com expulsão crescente das massas do mercado (tanto como produtores quando consumidores). Para conviver com essa contração, uma sociedade baseada no “fim em si mesmo” do dinheiro depende fundamentalmente da multiplicação da massa monetária para aparentar um estado de normalidade. É o “crescimento real”, a produção efetiva e até a geração temporária de empregos que dependem da multiplicação monetária no início do ciclo. Daí não termos mais ciclos de desenvolvimento duradouros, mas apenas surtos de crescimento amparados no crédito em abundância e que terminam, em períodos sempre mais breves, com explosões financeiras catastróficas. O endividamento sistemático e a emissão de dinheiro tornaram-se, assim, uma necessidade permanente do capitalismo de um modo totalmente novo.

Também o retorno atual das teorias do desenvolvimento impulsionado pelo Estado é um subproduto ideológico da crise estrutural. Até a década de 1970, ninguém colocaria em dúvida que o crescimento da dívida estatal tinha como efeito direto a inflação, e essa constatação estava na base da deslegitimação da doutrina keynesiana do “gasto deficitário”. A resposta à crise por meio da ascensão descontrolada dos mercados financeiros fez com que até mesmo a expansão monetária sem cobertura real fosse integrada à nova economia de bolhas e contribuísse para a “inflação de ativos” ou para a ampliação do crédito. Esse paradoxal keynesianismo de cassino está agora no centro das formulações de uma esquerda teoricamente desamparada.13 A teoria monetária de Marx fica reduzida à “heterodoxia”, que opera apenas com os conceitos de “emprego” e “moeda”, sem nunca ter ouvido falar de trabalho abstrato e de valor (pelo menos não em um sentido objetivo e relacional). Que se possa considerar nesse contexto o endividamento sistemático como instrumento do “desenvolvimento nacional” e da “soberania monetária” ou até como uma ferramenta para a “construção do socialismo”, é uma redução da análise à pura ideologia. Aqui já não há mais qualquer preocupação com a explicação das condições reais da expansão monetária, uma vez que ela se dá em moedas conversíveis no centro do capitalismo e, portanto, permite exportar temporariamente a inflação e simular algum poder de compra, ampliando os circuitos deficitários globais, particularmente o circuito deficitário do Pacífico.

Em vez de explicar esse contexto de crescimento chinês, marcado pela expansão da riqueza em forma monetária, as teorias marxistas residuais se fixam na pura “materialidade” dos processos econômicos. Os investimentos em infraestrutura e no setor imobiliário, após a crise de 2008, aparecem diretamente, do ponto de vista material, como um salto qualitativo em termos de construção da “economia nacional”. Essa orientação, que se volta de modo imediatista para o concreto, seja em termos de positivismo econômico ou de “vontade política”, é incapaz de apreender o desenvolvimento das formas abstratas da riqueza e da dominação que estão no centro da crítica de Marx ao capitalismo.[14] Tanto a mobilização improdutiva de recursos para a produção de infraestrutura quanto o boom imobiliário, porém, são condicionados mais pelo imperativo abstrato da concorrência do que pelas necessidades concretas em termos de “utilidade” ou planejamento. Por meio da orientação “concretista”, a teoria permanece presa a um entendimento tradicional da contradição capitalista, que se limita a opor produção material (Grande Indústria) e propriedade privada. Um entendimento crítico da contradição capitalista teria, por um lado, de se basear na própria forma da produção e da sua contradição interna, na qual “o valor torna-se anacrônico e ainda assim permanece o âmago do capital” (POSTONE, 2018, p.18). Por outro lado, a dinâmica do capital também tem de aparecer como contradição entre a sua compulsão pelo crescimento sem limites e os custos desastrosos desse crescimento do ponto de vista ambiental, isto é, os custos materiais da produção de riqueza abstrata.

Na segunda parte do artigo, sobre a “política na era da simulação”, aprofundaremos essa crítica ao marxismo tradicional e às suas formas atuais ampliando o problema da “ficcionalização” do capital para um quadro social mais geral.


Notas
1 Em nosso artigo, reconstituímos as duas etapas na formação do circuito deficitário do Pacífico, de modo que não há necessidade de retomar aqui este panorama histórico. Vale lembrar apenas que alguns dos principais autores (como Giovanni Arrighi) que enxergaram no crescimento da economia chinesa o início de uma nova era do capitalismo mundial baseada em uma “nova hegemonia” já fizeram prognósticos semelhantes em relação ao Japão durante a década de 1990. Ver: ARRIGUI, Giovanni. O longo século XX. Rio de Janeiro/São Paulo: Contraponto/Unesp, 1996.
2 Na segunda parte deste texto voltaremos a esse problema a partir de um tópico central da crítica do valor, que é a recusa das leituras tradicionais, dentro e fora da esquerda ou do marxismo, que se limitam a confrontar modelos abstratos de sociedade sem considerar de modo adequado os seus fundamentos comuns e a sua relação com a dinâmica histórica.
3 Um argumento importante do nosso texto anterior, que vamos deixar de lado aqui, é o que considera as taxas de crescimento chinesas em relação com o seu ponto de partida extremamente baixo quando comparadas com os padrões do mercado mundial. O que nos interessa aqui, em primeiro lugar, é explicar os mecanismos desse crescimento.
4 Desde os anos 1960, durante o apogeu da era fordista, o debate sobre a crise estrutural do capital foi inteiramente esvaziado e a maior parte da esquerda (incluindo a marxista) declarou insuficiente ou completamente obsoleta a teoria do valor de Marx que está no centro da teoria da crise. Na década seguinte, quando a obsolescência do valor passa ao primeiro plano como limite histórico real do capital, ela já não pode mais ser pensada como tal e aparece como “crise” da incompreendida teoria marxiana do valor. Sobre essa constelação ideológica particular e os limites da compreensão de esquerda acerca da teoria do valor, ver: KURZ, Robert. A crise do valor de troca. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
5 Essa análise tem de ser feita por meio de uma reavaliação histórica geral do sentido do socialismo e da sua relação com o processo de modernização. Esboçaremos alguns elementos dessa reavaliação na segunda parte deste texto. Ver quanto a isso: KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, e o artigo traduzido por Marcos Barreira para o Blog da Boitempo: Objetivo socialista e o novo movimento operário, também de Robert Kurz.
6 Isso tudo é bastante elementar quando se considera a teoria do valor de Marx. Para os marxistas tradicionais, no entanto, a elaboração teórica de Marx teve de ser interpretada em termos bastante unilaterais para se adaptar às circunstâncias históricas de um capitalismo que estava longe de atingir seus limites – e mais ainda para atender às necessidades produtivistas de sociedades com escassa base industrial. Após 1989-1991, o que restou do marxismo, seja na forma do neorreformismo acadêmico ou das teorias econômicas “heterodoxas”, praticamente já nem lida com o núcleo da crítica de Marx ao capitalismo.
7 No fundo, essa questão de uma crise substancial nem pode ser colocada seriamente pelo aparato teórico do marxismo residual ou das teorias do sistema-mundo. De um lado, as crises são pensadas em ambos os casos de modo apenas circulacionista – no plano das relações de desproporção no mercado; de outro, a tese marxista decorada dos manuais que vê no trabalho a substância do valor é interpretada não em termos históricos, como substância da relação capitalista, mas de modo ontológico, como um dado positivo e como sinônimo de produção de riqueza material (“valor de uso”). Nas formulações de Arrighi, por outro lado, é o próprio “mercado” e não só o trabalho que aparece como um contraponto positivo ao “capitalismo”.
8 Sobre isso, ver: China: “capitalismo asiático” e crise global.
9 Esse endividamento estrutural já foi antecipado, com outra finalidade, no contexto das duas guerras mundiais, pois “o Estado não era capaz de financiar a guerra mundial industrializada nem com base nas suas receitas fiscais regulares, nem contraindo créditos regulares nos mercados financeiros […] Em vez disso, obrigou os seus bancos emissores a transferir-lhe diretamente sucedâneos de dinheiro adicionais criados a partir do nada, com os quais pagava os enormes custos da guerra e que, em seguida, circulavam como dinheiro através de receitas dos processos produtivos correspondentes, da utilização da máquina da morte, encargos administrativos etc.” (KURZ, 2014, p. 300). O resultado, como se sabe, foi uma brutal crise inflacionária canalizada politicamente para os países derrotados no campo de batalha.
10 Nesse sentido, essas elaborações possuem um parentesco muito mais evidente com as teorias da regulação do que com uma abordagem centrada no conceito de “capital”.
11 Em Dinheiro sem valor, de 2012, Robert Kurz analisou, do ponto de vista da teoria do dinheiro, a desconexão progressiva entre a “expansão geral dos recursos ao crédito” e a mercadoria-dinheiro real. O fim do padrão-ouro, no início dos anos 1970, indicou essa ruptura entre a expansão das funções formais do dinheiro e a “substância” da riqueza.
12 Marx explorou a diferença entre essa multiplicação de dinheiro sem substância e a “acumulação de capital” em três capítulos do Livro III, detalhando a singularidade do acúmulo de capital monetário frente ao acúmulo de “capital real”, isto é, capital substancial oriundo da produção de valor. A estrutura do sistema de crédito fundada sobre o sistema monetário é crucial para compreender a diferença entre “valorização” e “capitalização”, sem a qual as ilusões produzidas pela circulação monetária fazem parecer que a riqueza pode brotar do nada, pois “até uma acumulação de dívidas pode aparecer como acumulação de capital” (MARX, 2017, p.528).
13 O ponto de vista “neokeynesiano” se tornou o único referencial econômico da esquerda. Não por acaso, a teoria da crise da crítica do valor foi confundida no debate com Elias Jabbour com uma posição “fiscalista” ou monetarista, uma vez que o debate de esquerda permanece imanente à teoria burguesa e toma o par antagônico estatismo-monetarismo como um fundamento inultrapassável.
14 Sobre isso, ver a entrevista de Moishe Postone na revista Margem esquerda, n. 31, p. 11-27, 2018.


Referências bibliográficas
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Rio de Janeiro/São Paulo: Contraponto/Unesp, 1996.
EICHENGREEN, Barry. A globalização do capital: uma história do sistema monetário internacional. São Paulo: Ed. 34, 2000.
KURZ, Robert. Com todo vapor ao colapso. Juiz de Fora: Pazulin, 2004.
KURZ, Robert. A crise do valor de troca. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
KURZ, Robert. Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Lisboa: Antígona, 2014.
KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
MARX, Karl. O capital [Livro I]. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, Karl. O capital [Livro III]. São Paulo: Boitempo, 2017.
LOHOFF, Ernst Lohoff. Die letzten Tage des Weltkapitals. Kapitalakkumulation und Politik im Zeitalter des fiktiven Kapitals, Krisis, n.5, 2016. 
POSTONE, Moishe. Entrevista. Margem Esquerda, n. 31, p. 11-27, 2018.

***
Maurilio Lima Botelho é professor de geografia urbana da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e autor dos artigos “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres” que integra o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013), “Guerra aos ‘vagabundos’: sobre os fundamentos sociais da militarização em curso”, publicado na revista Margem Esquerda #30 e coautor, com Marcos Barreira, do artigo “’Capitalismo asiático’ e crise global”, da Margem Esquerda #37. Também é organizador do dossiê “Crítica do valor”, da Margem Esquerda #35. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

Marcos Barreira é professor de geografia e Doutor em Psicologia Social pela UERJ. É pesquisador e membro do conselho diretor da Agência de Notícias das Favelas (ANF). Pela Boitempo, colaborou no livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013) e é coautor, com Maurilio Lima Botelho, do artigo “’Capitalismo asiático’ e crise global”, da Margem Esquerda #37. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

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