Como narrar o inenarrável ou testemunhar sobre algo que está além da compreensão humana? O que resta de Auschwitz, de Giorgio Agamben, procura, a partir de uma análise profunda do papel do testemunho como documento histórico e de seus limites enquanto relato pessoal, entender as dimensões da produção escrita dos sobreviventes do Holocausto nazista. Não se trata, portanto, de um livro sobre as circunstâncias materiais relacionadas ao maior campo de concentração de Hitler.
O que resta de Auschwitz investiga as dificuldades do testemunho quando este envolve a perda de referenciais básicos num espaço marcado pela total ausência de normas, onde o esforço pela identificação de algo parecido com uma lógica de funcionamento não só se mostrava vão, como também poderia significar a não sobrevivência.
O relato do escritor Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, é matéria-prima para a análise de Agamben. Levi se coloca como testemunha e condiciona sua sobrevivência à necessidade de contar essa história. Já os chamados "muçulmanos" - prisioneiros que perderam sua condição de homens e foram reduzidos a cadáveres ambulantes - são os únicos que poderiam dar testemunho verdadeiro do terror, se já não estivessem privados da linguagem. Agamben coloca que o valor do testemunho está essencialmente no que lhe falta, no que não pode ser dito por homens que já não o são. Em suas palavras,
Auschwitz marca o fim e a ruína de qualquer ética da dignidade e da adequação a uma norma. A vida nua, a que o homem foi reduzido".
A obra, que faz parte da coleção Estado de Sítio e traz apresentação de Jeanne Marie Gagnebin, recupera conceitos presentes nos anteriores Estado de exceção e Homo Sacer. Trata-se de leitura fundamental, onde Auschwitz é apresentado como o espaço de uma experiência em que se fundem as fronteiras entre o humano e o inumano, a vida e a morte, colocando à prova a reflexão de nosso tempo, que mostra sua insuficiência por deixar aparecer, entre suas ruínas, o perfil incerto de uma nova ética.