Em lugar das modernas e funcionais cidades prometidas pelo neoliberalismo, as megalópoles do Sul do mundo multiplicam favelas. São o retrato de uma terra arrasada, onde milhões de pessoas vivem em moradias precárias, cercadas por lixo, poluição e ruínas, apartadas do mundo formal. A especulação imobiliária expulsa os pobres das regiões centrais para as periferias, numa segregação urbana que reflete a incessante guerra social de nosso tempo.
Na entrevista que concedeu à Margem Esquerda – coordenada pela professora Otilia Fiori Arantes, com a participação de Ermínia Maricato, Mariana Fix e Michael Löwy –, o historiador marxista Mike Davis expõe o pesadelo da produção em massa de miséria e caos urbano – uma “urbanização sem urbanidade”, causa maior da crise global do meio ambiente. Davis fala de sua trajetória intelectual, dos autores que o influenciaram, do trabalho como caminhoneiro. Faz uma crítica radical à celebração de que os pobres podem solucionar a crise da vida diária sem redistribuição de renda e de poder político.
O desmanche urbano é também tema do dossiê desta edição: Resistências populares na cidade neoliberal. Ana Clara Torres Ribeiro, coordenadora do Grupo de Trabalho Desenvolvimento Urbano do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), discute em “Cidade e capitalismo periférico: em direção à experiência popular” o conceito de justiça urbana na América Latina, enquanto a socióloga Beatriz Whitaker faz uma síntese dos movimentos por moradia e das ocupações no centro de São Paulo. Mas a crise urbana não se restringe à periferia do capitalismo, nos mostra Paulo Arantes em “Alarme de incêndio no gueto francês”, ao discorrer sobre os motins e as barricadas iniciados em Lyon, em 2005, que levantaram a bandeira por um “estado de urgência social”.
Slavoj Žižek, filósofo e psicanalista esloveno – que esteve em outubro deste ano no Brasil para lançar (pela Boitempo) A visão em paralaxe –, abre a seção Artigos com um texto exclusivo para a Margem Esquerda. Nele, investiga a construção da ideologia e das relações de dominação próprias ao liberalismo. Para entender a dinâmica do que chama de “utopia liberal”, une análise de conjuntura, psicanálise, pensamento marxista e economia, tendo como fio condutor o balanço dos protestos de 1968, do qual ressalta: seu principal legado é “sejamos realistas, exijamos o impossível”. Também egresso dos conturbados anos 1960, Emir Sader discute, em “Por onde anda o ‘outro mundo possível’?”, as lutas acumuladas desde a convocação do primeiro Fórum Social Mundial e defende que a América Latina é hoje o elo mais fraco da cadeia neoliberal.
Os ventos do sul também animam a luta dos trabalhadores por uma verdadeira democratização do poder econômico, segundo Samir Amin. Em meio à crise econômica internacional, o intelectual egípcio analisa a evolução do capitalismo para um sistema financeirizado e oligopolista, ressaltando suas implicações sociais e políticas, como a emergência de uma plutocracia das altas finanças. Já o marxista italiano Lucio Magri, em “O alfaiate de Ulm”, empreende um balanço da esquerda italiana e do movimento comunista. Caminhos e descaminhos que também são tema do artigo “Goethe: o falsificado pelo fascismo e o autêntico”, do estudioso da estética lukacsiana Miguel Vedda, sobre a presença do autor alemão nos escritos de Lukács do período berlinês (1931-1933), ajudando a colocar por terra ideias preconcebidas a respeito do filósofo húngaro. Finalmente, “Cenas parisienses”, de Luiz Renato Martins, faz um apanhado das diferenças entre os retratos de Manet e os da geração que o precedeu.
A seção Documento traz um importante texto de Paul Sweezy, “Capitalismo e meio ambiente”, fundador e inspirador de movimentos ecológicos socialistas. Régis Michel assina o Comentário do semestre e trata da filmografia do berlinense Harun Farocki, “figura heróica do ex-novo cinema alemão, de onde saíram Straub, Kluge, Reitz e Wenders”.
Vem também da Alemanha o poema deste Número, de Erich Fried – selecionado e traduzido pelo editor da seção, Flávio Aguiar. Fried tinha ascendência judaica e durante o processo de anexação da Áustria pela Alemanha nazista fugiu com a mãe para a Grã-Bretanha, onde fixou residência. Trabalhou inicialmente como bibliotecário e foi comentarista político da BBC de Londres, de 1952 a 1968. Publicou livros e poemas engajados, dentre os quais “Was es ist”, traduzido em várias línguas. Apresentamos aqui uma versão dele, que é tanto uma tradução como uma leitura de seu sentido. A interpretação de Flávio Aguiar é alegórica, por isso mantivemos os substantivos com maiúsculas.
Completam esta Margem Esquerda três resenhas, quatro notas de leitura, as belíssimas imagens da CIA DE FOTO e uma carta de Chico de Oliveira ao jornalista Raimundo Pereira.
Dedicamos a presente edição a dois grandes homens: o poeta palestino Mahmoud Darwish (1942-2008) e o jornalista e escritor paulistano Lourenço Diaféria (1933-2008). – Ivana Jinkings