As classes sociais são o sujeito da história

Imagem: WikiCommons.

Por Marilena Chaui

A história não é o desenvolvimento das ideias, mas o das forças produtivas. Não é a ação dos Estados e dos governantes, mas a luta das classes. Não é história das mudanças de regimes políticos, mas a das relações de produção que determinam as forças políticas da dominação. Assim sendo, qual é o palco onde se desenvolve a história? A sociedade civil.

A sociedade civil não é o aglomerado conflitante de famílias e de corporações (sindicatos, trustes, cartéis, holdings, oligopólios) que serão reconciliadas graças à ação reguladora e ordenadora do Estado enquanto expressão do interesse geral. A sociedade civil é o sistema de relações sociais que se organizam na produção econômica, nas instituições sociais e políticas, e que são representadas ou interpretadas por um conjunto sistemático de ideias jurídicas, religiosas, políticas, morais, pedagógicas, científicas, artísticas, filosóficas.

A sociedade civil é o processo de constituição e de reposição das condições materiais de existência, isto é, da produção (trabalho, divisão do trabalho, processo de trabalho, forma de distribuição e de consumo, circulação, acumulação e concentração da riqueza), por meio das quais são engendradas as classes sociais (exploradores e explorados, isto é, a contradição entre proprietários e não proprietários). A relação entre as classes assim produzidas é contraditória porque a condição necessária e suficiente para que haja proprietários privados é a existência dos não proprietários. Ou seja, a existência da classe dos proprietários depende inteiramente da existência da classe dos não proprietários, e esta última nasce do processo pelo qual alguns proprietários conseguem expropriar todos os outros e conseguem reduzir todo o restante da sociedade (escravos, servos, artesãos) à condição de assalariados. Em resumo, no caso da sociedade civil capitalista, afirmar que a existência dos proprietários (da classe capitalista) depende da exploração dos não proprietários (trabalhadores assalariados) significa simplesmente o seguinte: o capital é o trabalho não pago (o mais-valor).

A sociedade civil realiza-se por meio de um conjunto de instituições sociais encarregadas de permitir a reprodução ou a reposição das relações sociais – família, escola, igrejas, polícia, partidos políticos, imprensa, meios de informação, magistraturas, Estado etc. Ela é também o lugar onde essas instituições e o conjunto das relações sociais são pensados ou interpretados por meio das ideias – jurídicas, pedagógicas, morais, religiosas, científicas, filosóficas, artísticas, políticas etc. Produzida pela divisão social do trabalho, que a cinde em classes contraditórias, a sociedade civil realiza-se como luta de classes. A luta de classes não é apenas o confronto armado das classes, mas está presente em todos os procedimentos institucionais, políticos, policiais, legais, ilegais de que a classe dominante lança mão para manter sua dominação, indo desde o modo de organizar o processo de trabalho (separando os trabalhadores uns dos outros e separando a esfera de decisão e de controle do trabalho da esfera de execução, deixando esta última para os trabalhadores) e o modo de apropriar-se dos produtos (pela exploração do mais-valor e pela exclusão dos trabalhadores do usufruto dos bens que produziram), até as normas do direito e o funcionamento do Estado. Ela está presente também em todas as ações dos trabalhadores da cidade e do campo para diminuir a dominação e a exploração, indo desde a luta pela redução da jornada de trabalho e pelo aumento de salários, as greves, a criação de sindicatos livres, até a formação de movimentos políticos para derrubar a classe dominante. A luta de classes é o cotidiano da sociedade civil. Está na política salarial, sanitária e educacional, está na propaganda e no consumo, está nas greves e nas eleições, está nas relações entre pais e filhos, professores e estudantes, policiais e povo, juízes e réus, patrões e empregados. […] O sujeito da história, portanto, são as classes sociais.



A ideologia nos permite tomar o falso por verdadeiro e o injusto por justo. Mas de que maneira essa miragem se manifesta? Pela política, pela cultura, pela educação, pela tecnologia? Quais são seus mecanismos e quais os impactos sociais e econômicos desse processo? De forma introdutória, mas sem perder a contundência de suas reflexões, a filósofa Marilena Chaui esclarece que a ideologia não é apenas um conjunto encadeado de ideias, como sugere o senso comum. Trata-se, na verdade, de um sistema histórico, social e político que não apenas estrutura a percepção da realidade, mas também a oculta, com o propósito de perpetuar a desigualdade social e a dominação política.

Ao longo dos capítulos, a autora investiga as transformações da ideologia no curso da história, oferecendo uma definição concisa e crítica, em sintonia com a tradição marxista ocidental. “Seu poder está em silenciar ou ocultar as contradições do modo de produção capitalista, a exploração econômica, o controle social e a dominação política do capital sobre o trabalho, ou da classe dominante sobre a classe trabalhadora”, escreve ela.

Nesta edição, a autora revisita e expande sua obra já clássica: o capítulo sobre a ideologia da competência foi atualizado, e um novo texto sobre a ideologia neoliberal foi incorporado, trazendo uma reflexão crucial sobre o avanço tecnológico. “Agora, entende-se por virtual algo real e existente que aguarda atualização; é o que pode ser infinitamente atualizado. O virtual não pode ser determinado por coordenadas espaciais e temporais, pois existe sem estar presente em um espaço ou tempo específicos – ou seja, sua própria forma de existência é a atopia e a acronia. Do ponto de vista subjetivo, a manipulação incessante do virtual pelos usuários de dispositivos digitais – acionados pelo toque dos dedos e pelo movimento constante dos olhos – gera a sensação de que existir é ser visto, dando origem a uma subjetividade narcisista que, como já explicara Freud, é essencialmente depressiva.

“A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros de uma sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção econômica.”
Marilena Chauí

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Marilena Chaui é professora sênior do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, onde começou a lecionar em 1967. Nascida em 4 de setembro de 1941, é especialista em história da filosofia contemporânea e publicou importantes obras sobre as filosofias de Espinosa e de Merleau-Ponty. É doutora honoris causa pela Universidade de Paris 8 (2003) e pela Universidade de Córdoba (2004). Com vasta produção, é uma das principais e mais importantes filósofas do país. Pela Boitempo, publicou Ideologia: uma introdução (2025). Foi entrevistada pela edição de número 13 da revista Margem Esquerda.


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