Ideologia e fetichismo da mercadoria

Foto: Martin Linsey (WikiCommons).

Por Marilena Chauí

[…] O fato de o produtor não se reconhecer em seu próprio produto, não o ver como resultado de seu trabalho, faz com que o produto surja como um poder separado do produtor e como um poder que o domina e ameaça.

A elaboração propriamente materialista da alienação no modo de produção capitalista é feita por Marx em O capital. Trata-se do fetichismo da mercadoria.

Que é a mercadoria? Trabalho humano concentrado e não pago. Por depender da forma da propriedade privada capitalista, que separa o trabalhador de meios, instrumentos e condições da produção, a mercadoria é uma realidade social. No entanto, o trabalhador e os demais integrantes da sociedade capitalista não percebem que a mercadoria, por ser produto do trabalho, exprime relações sociais determinadas. Percebem a mercadoria como uma coisa dotada de valor de uso (utilidade) e de valor de troca (preço). Ela é percebida e consumida como uma simples coisa. Assim, em lugar de a mercadoria aparecer como resultado de relações sociais enquanto relações de produção, ela aparece como um bem que se compra e se consome. Aparece como valendo por si mesma e em si mesma, como se fosse um dom natural das próprias coisas. Basta entrarmos num supermercado para vermos o espetáculo de pessoas tirando de prateleiras mercadorias como se estivessem apanhando frutas numa árvore, para entendermos como a mercadoria desapareceu enquanto trabalho concentrado e não pago.

E como o dinheiro também é mercadoria (aquela mercadoria que serve para estabelecer um equivalente social geral para todas as outras mercadorias), tem início uma relação fantástica das mercadorias umas com as outras (a mercadoria cinco reais se relaciona com a mercadoria sabonete, a mercadoria mil reais se relaciona com a mercadoria menino que faz pacotes etc.). As coisas-mercadorias começam, pois, a relacionarem-se umas com as outras como se fossem sujeitos sociais dotados de vida própria (um apartamento estilo “mediterrâneo” vale um “modo de viver”, um cigarro vale “um estilo de viver”, um automóvel zero quilômetro vale “um jeito de viver”, uma bebida vale “a alegria de viver”, uma calça vale “uma vida jovem” etc.). E os humanos-mercadorias aparecem como coisas (um nordestino vale vinte reais a hora na construção civil, um médico vale quinhentos reais a hora em seu consultório etc.). A mercadoria passa a ter vida própria, indo da fábrica à loja, da loja à casa, como se caminhasse sobre os próprios pés.

O primeiro momento do fetichismo é este: a mercadoria é um fetiche (no sentido religioso da palavra), uma coisa que existe em si e por si.

O segundo momento do fetichismo, mais importante, é o seguinte: assim como o fetiche religioso (deuses, objetos, símbolos, gestos) tem poder sobre seus crentes ou adoradores, domina-os como uma força estranha, assim também age a mercadoria. O mundo transforma-se numa imensa fantasmagoria.

Como, então, aparecem as relações sociais de trabalho? Como relações materiais entre sujeitos humanos e como relações sociais entre coisas. E Marx afirma que as relações sociais aparecem tais como efetivamente são. Que significa dizer que a aparência social é a própria realidade social? Significa mostrar que, no modo de produção capitalista, as pessoas realmente são transformadas em coisas e as coisas são realmente transformadas em “gente”.

Como efeito, o trabalhador passa a ser uma coisa denominada força de trabalho, que recebe outra coisa chamada salário. O produto do trabalho passa a ser uma coisa chamada mercadoria, que possui outra coisa, isto é, um preço. O proprietário das condições de trabalho e dos produtos do trabalho passa a ser uma coisa chamada capital, que possui outra coisa, a capacidade de ter lucros. Desaparecem os seres humanos, ou melhor, eles existem sob a forma de coisas (donde o termo usado por György Lukács: reificação; do latim res, que significa coisa).

Em contrapartida, as coisas produzidas e as relações entre elas (produção, distribuição, circulação, consumo) humanizam-se, passando a configurar relações sociais. Produzir, distribuir, comerciar, acumular, consumir, investir, poupar, trabalhar, todas essas atividades econômicas começam a funcionar e a operar sozinhas, por si mesmas, com uma lógica que emana delas próprias, independentemente das pessoas que as realizam. As pessoas tornam-se os suportes dessas operações, instrumentos delas.

Como entender que o trabalhador não se revolte contra uma situação na qual não só lhe foi roubada a condição humana, mas ainda é explorado naquilo que faz, pois seu trabalho não pago (o mais-valor) é o que mantém a existência do capital e do capitalista? Como explicar que essa realidade nos apareça como natural, normal, racional, aceitável? De onde vem o obscurecimento da existência das contradições e dos antagonismos sociais? De onde vem a não percepção da existência das classes sociais, uma das quais vive da exploração e dominação das outras? A resposta a essas questões nos conduz diretamente ao fenômeno da ideologia.


Debate com Marilena Chauí e Mauro Iasi. Mediação de Lindener Pareto. Quarta-feira, 2 de abril de 2025, às 18h30. AO VIVO NA TV BOITEMPO.


A ideologia nos permite tomar o falso por verdadeiro e o injusto por justo. Mas de que maneira essa miragem se manifesta? Pela política, pela cultura, pela educação, pela tecnologia? Quais são seus mecanismos e quais os impactos sociais e econômicos desse processo? De forma introdutória, mas sem perder a contundência de suas reflexões, a filósofa Marilena Chaui esclarece que a ideologia não é apenas um conjunto encadeado de ideias, como sugere o senso comum. Trata-se, na verdade, de um sistema histórico, social e político que não apenas estrutura a percepção da realidade, mas também a oculta, com o propósito de perpetuar a desigualdade social e a dominação política.

Ao longo dos capítulos, a autora investiga as transformações da ideologia no curso da história, oferecendo uma definição concisa e crítica, em sintonia com a tradição marxista ocidental. “Seu poder está em silenciar ou ocultar as contradições do modo de produção capitalista, a exploração econômica, o controle social e a dominação política do capital sobre o trabalho, ou da classe dominante sobre a classe trabalhadora”, escreve ela.

Nesta edição, a autora revisita e expande sua obra já clássica: o capítulo sobre a ideologia da competência foi atualizado, e um novo texto sobre a ideologia neoliberal foi incorporado, trazendo uma reflexão crucial sobre o avanço tecnológico. “Agora, entende-se por virtual algo real e existente que aguarda atualização; é o que pode ser infinitamente atualizado. O virtual não pode ser determinado por coordenadas espaciais e temporais, pois existe sem estar presente em um espaço ou tempo específicos – ou seja, sua própria forma de existência é a atopia e a acronia. Do ponto de vista subjetivo, a manipulação incessante do virtual pelos usuários de dispositivos digitais – acionados pelo toque dos dedos e pelo movimento constante dos olhos – gera a sensação de que existir é ser visto, dando origem a uma subjetividade narcisista que, como já explicara Freud, é essencialmente depressiva.

“A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros de uma sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção econômica.”
Marilena Chauí

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Marilena Chaui é professora sênior do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, onde começou a lecionar em 1967. Nascida em 4 de setembro de 1941, é especialista em história da filosofia contemporânea e publicou importantes obras sobre as filosofias de Espinosa e de Merleau-Ponty. É doutora honoris causa pela Universidade de Paris 8 (2003) e pela Universidade de Córdoba (2004). Com vasta produção, é uma das principais e mais importantes filósofas do país. Pela Boitempo, publicou Ideologia: uma introdução (2025). Foi entrevistada pela edição de número 13 da revista Margem Esquerda.


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