O último discurso de Marielle Franco: quando a verdade ameaça quem está no poder

Em ocasião do sétimo aniversário da execução de Marielle Franco, publicamos um trecho de "Intersecções letais" em que Patricia Hill Collins discute a atuação política da vereadora e o contexto histórico-social do crime. Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados na noite de 14 de março de 2018. Em 24 de março de 2024, o processo de investigação do crime foi encerrado pelo Ministério da Justiça com a prisão de Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro; Chiquinho Brazão, deputado federal pelo Rio de Janeiro do partido União Brasil; e Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Eles foram apontados nas investigações como mandantes do crime. Além deles, o ex-policial militar Élcio Queiroz, motorista do carro utilizado no crime, e o policial militar reformado Ronnie Lessa, autor dos disparos, foram condenados, em 31 de outubro de 2024, como executores.

Foto: WikiCommons.

Por Patricia Hill Collins

Em 2018, quando Marielle Franco se aproximou da tribuna para fazer seu discurso em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, nem todos os membros da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro quiseram ouvi-la. Como presidente da Comissão para a Defesa das Mulheres, Marielle havia defendido vigorosamente a temática das mulheres nos debates legislativos desde sua eleição, dois anos antes. Ela manifestava preocupações sobre os direitos humanos das mulheres e também das populações empobrecidas, e em grande parte negras, que vivem nas favelas do Rio. Sendo a primeira mulher negra eleita para a Câmara Municipal,1 ela propôs projetos de lei que representavam os interesses desses grupos – por exemplo, creches noturnas para crianças cujos pais tinham de trabalhar ou estudar durante a noite, uma campanha contra a violência e o assédio às mulheres, sobretudo nas escolas, e mais transparência nos contratos feitos pela prefeitura. Ela estava especialmente preocupada com a potencial corrupção que atingia o sistema de transporte público, bem como com os contratos concedidos a empresas envolvidas na construção de estádios para a Copa do Mundo Fifa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

Quando Marielle Franco se levantou para discursar, muitos apoiadores e oponentes estavam presentes. Ela começou reconhecendo a luta internacional das mulheres pelos direitos humanos:

“Este 8 de março é um março histórico, um março em que falamos de flores, lutas e resistências, mas um março que não começa agora e muito menos é apenas um mês para pautar a centralidade da luta das mulheres. A luta por uma vida digna, a luta pelos direitos humanos, a luta pelo direito à vida das mulheres precisa ser lembrada, e não é de hoje, é de séculos […] quando, nas greves e manifestações, […] mulheres com firmeza, lutaram pelos direitos trabalhistas.”2

Ela também falou sobre as diversas expressões de violência que afetaram as mulheres no Brasil. Mas, enquanto ela falava, alguém a interrompeu gritando “Viva Ustra” – Ustra, militar de alto escalão que torturou pessoas durante os 21 anos de ditadura no Brasil. Recusando-se a ser silenciada pela interrupção, Marielle continuou:

“Tem um senhor que está defendendo a ditadura e falando alguma coisa contrária? É isso? Eu peço que a presidência da casa, no caso de manifestações que venham a atrapalhar minha fala, proceda como fazemos quando a galeria interrompe qualquer vereador. Não serei interrompida, não aturo interrupção dos vereadores desta casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita presidente da Comissão da Mulher nesta casa!”

A multidão aplaudiu, e a presidente da Câmara Municipal [Tânia Bastos] interveio e pediu mais segurança. Após agradecer a intervenção da moderadora, Marielle Franco respondeu apontando os esforços de longa data para silenciar e controlar as mulheres: “Não será a última nem a primeira vez, mas o embate, para quem vem da favela”. Recusando-se a recuar, ela reiterou: “Minha fala estava falando da violência contra as mulheres […]. Nós somos violadas e violentadas há muito tempo”.

Apesar da interrupção, Marielle continuou falando, abordando diversas questões relacionadas à violência, incluindo a ocupação militar das favelas que ocorria na época, os assassinatos não resolvidos de lésbicas, o assédio nas ruas enfrentado pelas mulheres negras e como as armas de fogo não eram a solução para a violência. É significativo que ela vinculasse essas expressões de violência às desigualdades sociais de raça, gênero, sexualidade e classe na política brasileira. Ela continuou listando “uma diversidade de lutas na pauta pela vida das mulheres”, tais como a legalização do aborto, a luta por melhores maternidades e as questões enfrentadas pelas mulheres no empreendedorismo. Ela encerrou o discurso com um forte apelo à ação: “Às mulheres que constroem esta história, que estão junto comigo. Vamos que vamos!”.

Uma semana depois desse discurso inflamado, em 14 de março de 2018, assassinos profissionais alvejaram com balas o carro em que Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, estavam. Os atiradores fugiram. Marielle Franco tinha 38 anos. Os assassinos esperaram que ela saísse de uma reunião e, em dois carros, a seguiram por vários quilômetros. Na manhã seguinte a sua morte, dezenas de milhares de pessoas aglomeraram-se nas ruas do Rio de Janeiro e de todo o Brasil expressando pesar e raiva pelo assassinato. A morte dela também provocou surpresa ao redor do mundo […], e muitos veem sua morte como um assassinato político que visava a suprimir as ideias que ela representava. Assassinatos de líderes políticos carismáticos com frequência ocorrem durante períodos de mudança social. Marielle Franco havia emergido como uma líder da base popular durante um período em que o Brasil continuava a lutar com seus legados históricos de colonialismo e escravismo e com a sua história política de ditadura.

Ato por Marielle Franco em São Paulo, 15 de março de 2018. Foto: Romerito Pontes (via Wikimedia Commons)

O assassinato de Marielle ocorreu no contexto histórico, social e político do Brasil como Estado-nação. Como sugere o documentário Democracia em vertigem (2019), a luta do Brasil pela democracia tem um longo arco que atravessa uma história com escravismo, um período extenso de ditadura e uma jovem democracia florescente que continua a ser desafiada por tendências autoritárias. As lutas pela democracia participativa no Brasil ampliaram a participação política para incluir mulheres negras que há muito eram excluídas. O envolvimento de Benedita da Silva, mulher afro-brasileira, no Partido dos Trabalhadores e o surgimento do movimento de mulheres negras no Brasil abriram caminhos para a participação política das mulheres negras.3 Marielle fazia parte de uma constelação de movimentos sociais que visava a reformar as instituições sociais democráticas do Brasil. Os movimentos sociais que influenciaram sua política almejavam melhorar a vida de pessoas empobrecidas, negras e indígenas, de
mulheres e pessoas LGBTQ, responsabilizando o governo. Ela apoiou políticas destinadas a melhorar os sistemas de saúde pública, expandir a educação pública, defender a floresta amazônica e proteger todos os cidadãos da violência. A pauta de direitos humanos dela era baseada nos desafios políticos, sociais e intelectuais específicos da implementação dessas ideias no país. Não é incomum que assassinatos de ativistas como Marielle ocorram durante períodos de reviravolta política e mudança social, quando tanto as ideias como a política que elas geram estão em fluxo. O ano de sua morte certamente refletiu uma reviravolta nas instituições democráticas federais do Brasil. Seis meses depois, um candidato que defende uma ideologia de extrema direita, Jair Bolsonaro, que tinha ligações diretas com a antiga ditadura militar, foi eleito presidente.

Ao insistir em ser ouvida durante seu discurso pelo Dia da Mulher, Marielle Franco defendeu a democracia como veículo para os direitos humanos. As palavras dela apontaram para as muitas formas de violência interseccional cotidiana que ela e os cidadãos brasileiros enfrentaram ao defender sua democracia. Concentrando-se nas mulheres negras, população que tem sido especialmente prejudicada pela violência de rua nas favelas e pela violência dirigida a seus filhos e suas filhas, Marielle argumentou que a defesa dos direitos humanos das mulheres negras por meio da resistência à violência melhoraria a vida de muitas outras pessoas. Muitas mulheres negras são vítimas de violência, violência doméstica e assédio sexual em empregos como trabalhadoras domésticas. Elas vivem em comunidades onde a polícia faz vista grossa e oferece pouca proteção contra grupos que controlam as ruas. Por meio de suas ideias e ações, Franco contribuiu para uma comunidade de fala que apoiaria a plena humanidade de cada indivíduo no Brasil e também as instituições democráticas que seriam necessárias para defender e cumprir os direitos de todas as pessoas.

Franco não foi morta apenas por fazer aquele discurso na Câmara do Rio de Janeiro. No que diz respeito a pessoas como ela, situadas em intersecções letais de gênero, raça, sexualidade e classe, falar a verdade sobre suas ideias pode ser uma grande ameaça para quem está no poder. Viver visivelmente em um corpo honesto como uma mãe lésbica negra e falar sobre isso pode gerar violência interseccional – mas também ajudou Marielle a ganhar uma sensação de liberdade. Como mulher negra em um país com elevados níveis de pobreza e onde mais de metade da população é negra, Franco sabia que ameaçava as ideias tradicionais de gênero, sexualidade, raça e classe. Mas foi visível e eloquente mesmo assim. Recusou-se a moderar suas opiniões, apesar de estar sob vigilância. Desafiar os efeitos da violência interseccional sobre homens e mulheres negros é uma coisa; desafiar o sistema de ideias que explica e legitima a violência interseccional sancionada pelo Estado é outra. Uma política do corpo honesto gera essas contradições entre risco e recompensa.

Notas

  1. Na realidade, antes de Marielle, eleita em 2016, duas outras mulheres negras já haviam exercido mandatos na Câmara Municipal do Rio de Janeiro: Benedita da Silva (1983-1986) e Jurema Batista (1992-2002). Nota do Blog da Boitempo. ↩︎
  2. Quero agradecer Clarice Cardoso por chamar minha atenção para esse discurso e por traduzi-lo. ↩︎
  3. Medea Benjamin e Maisa Mendonça, Benedita da Silva: An Afro-Brazilian Woman’s Story of Politics and Love (Oakland, Institute for Food and Development Policy, Global Exchange, 1997) [ed. bras.: Benedita, Rio de Janeiro, Mauad, 1997]; Patricia Hill Collins e Sirma Bilge, Intersectionality (2. ed., Cambridge, Polity, 2020 [2016]), p. 25-31 [ed. bras.: Interseccionalidade, trad. Rane Souza, São Paulo, Boitempo, 2021, p. 39-45]. ↩︎


Em Intersecções letais: raça, gênero e violência, Patricia Hill Collins analisa situações como o assassinato de Marielle Franco no Brasil, o conflito na República Democrática do Congo, a condição das mulheres aborígenes na Austrália e da população negra nos Estados Unidos. No livro, a autora aponta metodologicamente e de maneira acessível como aplicar o conceito de interseccionalidade em investigações sobre as origens e as consequências da desigualdade e da injustiça.

“Provocativo e desafiador, este livro é fundamental para aquelas e aqueles que buscam compreender as raízes estruturais da violência, a qual Collins se recusa a aceitar como inevitável, convidando-nos a resistir a esse perverso fenômeno. Intersecções letais é uma leitura imprescindível para as pessoas engajadas na luta por justiça social e que buscam aprofundar suas reflexões sobre as conexões entre violência, relações de poder e desigualdades”
— Nilma Lino Gomes


Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica, de Patricia Hill Collins
Análise crítica e transformadora da interseccionalidade como teoria social. Fornece ferramentas conceituais para repensar o poder, a resistência e a justiça social. Texto essencial para compreender as mudanças necessárias na produção do conhecimento.

Pensamento feminista negro, de Patricia Hill Collins
Explora as raízes e as estratégias do feminismo negro nos EUA, mapeando as lutas e teorias de figuras como Angela Davis e Audre Lorde. Relevante para entender a interseccionalidade das opressões e empoderamento das mulheres negras. Prefácio da autora para edição brasileira.

Interseccionalidade, de Patricia Hill Collins e Sirma Bilge
Em uma exploração abrangente da interseccionalidade, as autoras esclarecem sua evolução, importância e aplicações. Abordando questões atuais, das lutas pelos direitos humanos ao feminismo negro no Brasil, oferecem uma compreensão clara e prática, apontando o caminho para uma sociedade mais justa.


Democracia para quem?, de Angela DavisPatricia Hill Collins Silvia Federici
O livro reúne as palestras proferidas de 15 a 19 de outubro de 2019, pelas três intelectuais feministas no âmbito do seminário internacional “Democracia em Colapso?”, promovido pelo Sesc São Paulo e pela Boitempo. No livro, é possível tomar contato com reflexões feitas pelas autoras — referências globais em suas áreas de estudo e de atuação — sobre temas como capitalismo, racismo, desigualdade social, ecologia, entre outros.

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