4 nomes fundamentais para pensar as relações entre marxismo e judaísmo

“A revolução”, de Marc Chagall (1937)

Entre as teorias conspiracionistas que alardeiam um suposto plano de dominação mundial judeu-comunista, e as acusações de um suposto antissemitismo do fundador do materialismo histórico, as relações historicamente estabelecidas entre o marxismo e o judaísmo — tanto no âmbito da teoria revolucionária quanto dos movimentos socialistas — foram encobertas por muitas mistificações. Em Marxismo e judaísmo, Arlene Clemesha aponta que:

“Indo além dos ideologismos de plantão, a questão teórica e histórica levantada pelas relações entre marxismo e judaísmo coloca um problema decisivo para a teoria do materialismo histórico: aquele da relação entre a ‘crítica da religião’, considerada por Marx como o primeiro estágio de toda crítica, e a ‘crítica da nação’, considerada pelo socialismo marxista como o objetivo histórico do movimento operário. Pois o dilema começa quando se pretende dar uma resposta materialista à questão: O que é o judaísmo? Uma religião? Um povo? Uma nação? O socialismo, e o socialismo marxista como a corrente mais influente dentro do movimento socialista, não deu uma resposta definitiva a essa pergunta. E sequer pode-se falar de ‘uma’ resposta marxista, pois as respostas marxistas variam de período em período histórico, acompanhando as vicissitudes dramáticas da história dos judeus nos séculos XIX, XX e agora, XXI.”1

A partir da leitura de Marxismo e judaísmo: história de uma relação difícil, listamos abaixo quatro personagens incontornáveis da história do marxismo e de ascendência judaica, apontando algumas de suas contribuições conceituais e práticas para o tema:


Karl Marx (1818-1883)

Karl Marx em 1861 (WikiCommons)

Segundo Arlene Clemesha, as polêmicas em torno da relação entre o marxismo e o judaísmo remontam aos primórdios mesmo do pensamento materialista desenvolvido por Marx. O próprio filósofo alemão era de origem judaica, embora a família tenha se convertido ao protestantismo em função da carreira pública de seu pai. Apesar da ascendência, não dedicou muitos escritos ao tema, destacando-se o famoso ensaio de juventude Sobre a questão judaica (1843). Para vários comentadores, o texto representa um marco em seu itinerário intelectual, pois a crítica ali tecida “aos pontos de vista de Bruno Bauer sobre o judaísmo […] lhe permitiria refletir sobre a emancipação política, o Estado moderno e a sociedade civil”2. Outros, porém, consideram o escrito antissemita, chegando inclusive a cogitar motivações psicanalíticas para isso. Segundo a autora:

“O que Marx diz de fato em ‘Sobre a questão judaica’ é que o judaísmo, que enquanto religião deve algum dia deixar de existir permanentemente, existe hoje porque o seu fundamento prático nunca deixou de existir. Na sociedade moderna, o fundamento prático do judaísmo só pode ser liquidado através da liquidação do fundamento prático do puritanismo, ou seja, pelo fim do capitalismo. O que significa que o fim do judaísmo conta necessariamente, tanto no tempo de Marx como nos dias de hoje, com o fim do cristianismo.”3


Rosa Luxemburgo (1871-1919)

Rosa Luxemburgo em 1907 (WikiCommons)

Nascida em uma família judia polonesa, a revolucionária combateu o antissemitismo em diversas ocasiões. A mais importante talvez seja o seu posicionamento em relação ao “Caso Dreyfus”, episódio que dividiu o Partido Social-Democrata alemão. Como evidenciam suas intervenções a respeito, ela via o antissemitismo como sinal da rápida decomposição da sociedade moderna […], e não como o resquício de uma era feudal”, o que, contudo “não excluía, para Rosa Luxemburgo, o seu caráter também de sinal do atraso”4. Segundo Arlene Clemesha, ela assim se diferencia “da maioria dos teóricos marxistas e socialistas do final do século XIX na medida em que analisou o antissemitismo não apenas como um resquício medieval, mas como um sintoma agudo da degradação capitalista”5.


Leon Trótski (1879-1940)

Leon Trótski lê o Pravda em 1910 (WikiCommons)

A autora de Marxismo e judaísmo considera a trajetória e as ideias de Leon Trótski sobre o judaísmo particularmente interessantes, não apenas pelas origens judaicas do dirigente do exército vermelho, como também em função do “peso do antissemitismo na tradição histórica russa, particularmente como política de governo da autocracia tsarista; o amplo uso do antissemitismo na luta de Stálin contra
a oposição trotskista na União Soviética, como foi demonstrado por Dmitri Volkogonov; e, finalmente, a importância do Holocausto perpetrado pelo nazismo, paradigma não exclusivo da barbárie contemporânea, que Trótski chegou a prever em um de seus últimos artigos antes de ser assassinado a
mando de Stálin, em agosto de 1940, aos sessenta anos de idade”.6

Os estudos históricos realizados por Trótski, além disso, permitem compreender o lugar da cultura judaica na constituição da classe operária em todo o Leste Europeu:

“Como explica Trótski, em sua ‘história da Revolução Russa’, a grande indústria russa não se desenvolveu ‘normalmente’, organicamente, passando pelas etapas do pequeno artesanato e da manufatura. Pelo contrário, o artesanato – o que na zona de residência significava o artesanato judeu – permaneceu à margem do processo de industrialização, trazendo graves consequências para um povo cuja vida, a essa altura, girava em torno da ‘pequena produção artesanal’. Será na desintegração do comércio judeu e, de forma mais imediata, do artesanato a partir de 1880 que encontraremos a origem de um amplo e numeroso operariado judeu no Leste Europeu. Sua estrutura, no entanto, diferia sensivelmente daquela das classes trabalhadoras em geral.”7

Esse dado está na origem do Bund, importante partido socialista judeu da região, com o qual os comunistas russos travaram importantes embates táticos e estratégicos.


Abraham Léon (1918-1944)

Abraham Leon ao lado de Ernest Mandel

Nascido na Polônia em 1918, Abraham Wajnsztock (seu nome de batismo) migrou com a família para a Palestina ainda criança, mudando-se com os pais definitivamente para a Bélgica dez anos mais tarde. Iniciou sua militância como membro da organização sionista socialista Hashomer Hatzair (“A jovem guarda”, em português), porém, após o contato com o trotskismo, distanciou-se do sionismo, tornando-se um dos primeiros dirigentes da Quarta Internacional. É autor de Concepção materialista da questão judaica, obra de 1942 que analisa o papel socioeconômico exercido pelos judeus nas diferentes sociedades, em diferentes períodos históricos, desde a época da Dispersão. Segundo Arlene Clemesha, Léon defende a tese de que:

“Apesar de destruídos o Estado da Judeia e as condições normais para a sobrevivência de um povo juntamente com a sua cultura e religião, o judaísmo conservou-se ao longo da história devido à função econômica assumida pelos judeus no seio das sociedades antiga e medieval. Os judeus passaram a constituir, diz Léon, um grupo social com uma função econômica determinada: um ‘povo-classe’. […] Mas se as causas reais do antissemitismo são econômicas, o que aparece, na própria visão do autor, é seu elemento mítico ou ideológico. A ‘raça que luta pelo seu espaço vital’ constituiria a força motriz aparente do imperialismo; enquanto que sua força motriz verdadeira se encontra na contradição fundamental do capitalismo – a contradição entre uma superprodução e um consumo estreito. ‘O racismo é, pois, antes de mais nada, o disfarce ideológico do imperialismo moderno.’ Por essa razão se explica o interesse do grande capital em alimentar o sentimento antissemita da pequena burguesia e depois do proletariado, como ocorreu na Alemanha durante a ascensão de Hitler.”8

O livro foi escrito sob as duras condições da clandestinidade e da ocupação nazista da Bélgica, apenas dois anos antes da morte de Abraham Léon, aos 26 anos de idade, numa câmara de gás do campo de concentração de Auschwitz.

Notas

  1. Arlene Clemesh. Marxismo e judaísmo. Boitempo, 2025, p. 19. ↩︎
  2. Idem, p. 21. ↩︎
  3. Idem, p. 44. ↩︎
  4. Idem, p. 73. ↩︎
  5. Idem, p. 21. ↩︎
  6. Idem, p. 161. ↩︎
  7. Idem, p. 101-102. ↩︎
  8. Idem, p. 204 e 217. ↩︎

A autora Arlene Clemesha debate com Breno Altman e Jean Tible, com mediação de Juliana Muniz. Assista ao vivo na quarta-feira, 12 de março, às 14h na TV Boitempo.


A chamada “questão judaica” esteve e está no centro da história contemporânea. Não é de se estranhar que o judaísmo tenha lançado ao marxismo os maiores desafios à sua capacidade explicativa e transformativa. Em Marxismo e judaísmo: história de uma relação difícil, a professora e historiadora Arlene Clemesha passa em revista as metamorfoses dessa controvertida trajetória, desde o ensaio Sobre a questão judaica, de Karl Marx, até o clássico trabalho de Abraham Léon, escrito em pleno desenvolvimento do Holocausto, que ceifaria a vida do seu autor.

Escrita em linguagem acessível e desmistificadora, a obra cobre um intervalo crucial que vai desde os debates no incipiente movimento socialista do século XIX, passando pela criação da Internacional Socialista. Do surgimento do primeiro grande partido socialista judeu, o Bund, chegando no período da Revolução Russa de 1917, com especial atenção à posição de Lênin sobre o assunto. O líder da revolução era um feroz crítico do antissemitismo.
 
Clemesha avança até o período entreguerras com a análise da atuação dos judeus na Guerra Civil Espanhola. Pelas lentes de voluntários judeus nas Brigadas Internacionais, a autora trata da instrumentalização do antissemitismo por Josef Stálin até o Pacto Germano-Soviético de 1939. A visão de Leon Trótski é também esmiuçada pela autora. De origem judaica, o revolucionário era bastante crítico da transformação do antissemitismo em política de Estado pelo regime tsarista. Exilado por Stálin, acompanhou de longe a dura oposição trotskista na União Soviética e em seus últimos escritos faz uma previsão sobre a eliminação dos judeus da Europa pelo nazismo.
 
Sem medo de apontar o antissemitismo em setores da esquerda, nem de olhar para as tendências regressivas no movimento operário judeu, no campo de disputa que viu o surgimento do sionismo, Clemesha oferece, nas palavras de Jacob Gorender, que assina o prefácio da obra, “uma excursão notavelmente interessante pelos meandros sinuosos de uma questão nada fácil”.

“De Karl Marx a Daniel Bensaïd, passando por Rosa Luxemburgo, Leon Trótski, Walter Benjamin, Isaac Deutscher e tantos outros, o encontro entre o marxismo e os judeus foi uma poderosa fonte de insights luminosos e ideias críticas. Esse encontro transcendia o judaísmo ao questionar religiões e ortodoxias, mas carregava a memória de uma minoria perseguida. Os marxistas judeus foram outsiders heréticos e revolucionários cosmopolitas que se rebelaram contra velhos obscurantismos e novos nacionalismos. Neste brilhante ensaio, Arlene Clemesha nos guia pelos labirintos dessa fascinante história política e intelectual.”
Enzo Traverso

“Um livro extraordinário que rastreia as maneiras pelas quais os marxistas se mobilizaram para compreender e resolver a questão judaica. Arlene Clemesha fornece um quadro de referência essencial para entender debates históricos e práticas políticas. Com um foco nos socialistas europeus e russos do final do século XIX e início do XX, a obra conta uma história em perspectiva global que permanece relevante para a nossa compreensão de acontecimentos contemporâneos.”
— Ran Greenstein

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