Donald Trump e a realidade especulativa das “memecoins”
Aliança entre memes e criptomoedas está no centro da utopia tecnotrumpista e sua fantasia de um mundo tautológico, sem lastro social.
Foto: Gage Skidmore (WikiCommons).
Por Rafael Burgos
“Sem lastro na realidade”: é bem provável que você já tenha se deparado com frases como essa em análises sobre a extrema direita, que se proliferam desde o dia seguinte à posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. Vivemos, dizem os outros, um tempo de “pós-verdade”, em que frases mentirosas ou sem contexto proliferam na velocidade de um “like”.
Em seu discurso no Capitólio, o líder do Partido Republicano anunciou uma “era de ouro” para os norte-americanos, não muito diferente do que fizera oito anos atrás – desta vez, o clima era menos hostil e os seus tons alaranjados já não soavam tão aberrantes aos olhos da velha plateia.
O Trump 2.0 é porta-voz de um espírito do tempo em que o “senso comum” – palavra que ganhou menção especial do presidente eleito – vive um inédito processo de perda de lastro. Em seu lugar, o empresário promete restaurar a gramática do mundo moderno, que consiste num terreno de maior segurança, tanto em termos socioeconômicos como psíquicos.
Há, no entanto, uma dissonância fundamental entre o tradicional discurso nostálgico do trumpismo e sua prática política, marcada pela recente aliança com as chamadas Big Techs. No horizonte do governo comandado pelo bilionário Elon Musk está a difusão de um ecossistema paralelo em que não apenas os fatos são alternativos, mas todo o tecido de nossa vida social, da moeda aos códigos de comunicação, passando pela nossa própria identidade.
Nesse sentido, uma notícia secundária, que circulou nos últimos dias pelas redes trumpistas e em portais de economia, exemplifica bem esse horizonte. Pois, dias antes de sua posse, Donald Trump lançou a ‘Trumpcoin’, sua própria moeda digital, que em poucas horas se tornou um dos 30 ativos mais valorizados do mercado global de criptomoedas.
Na linguagem das criptomoedas, a Trumpcoin pode ser classificada como ‘memecoin’, isto é, um ativo econômico cujo valor de mercado deriva de seu apelo memético perante os usuários. Neste caso, a moeda é representada com frases populares do trumpismo, como “Recuperar a América”, “Nunca desistir” e “Lutar, lutar, lutar”.
Fomentada pela máquina comunicacional da extrema direita, que inclui a própria família Trump, beneficiária direta da capitalização, o ativo tornou-se, nas palavras do filho Eric Trump, “o meme digital mais quente do planeta” – com a diferença de que, para fazer este meme circular, a fanbase deve investir seu próprio dinheiro.
Vale dizer, há algo de fundamental que une um meme de internet a uma criptomoeda: trata-se, precisamente, de sua ausência de lastro. Isto é, assim como o valor de uma criptomoeda prescinde de qualquer vínculo com a economia produtiva, o significado de um meme presta contas à circulação de outro meme, que por sua vez resulta de outro meme, e assim por diante…
A tal ‘memecoin’ é, portanto, o símbolo da nova era pretendida pela aliança Trump-Musk, que consiste em aprofundar o fosso entre a velha sociedade democrática-analógica e uma nova sociedade niilista-digital, na qual proliferam criptos, bets, coaches e influencers, objetos de sedução para uma crescente massa de precarizados.
Assim, o impulso de acusar a “falsidade” da Trumpcoin, de forma análoga às fake news da extrema direita, parece fadado ao fracasso, não exatamente por cinismo, mas por um motivo fundamental: ambas pertencem a um ecossistema em vias de completa autonomização simbólica, sem obrigação de prestar contas a qualquer “ativo”, seja ele econômico, como no caso das criptomoedas, ou comunicacional, como no caso dos memes.
Como observado pelo jornalista Rob Wile, trata-se de uma mistura de cassino com carnaval, com a diferença de que, no tempo carnavalesco, as transgressões são reguladas por seu caráter excepcional e, portanto, passageiro, enquanto o projeto trumpista 2.0 consiste em estabilizar um tempo de crises.
Em substituição ao velho mundo, para o qual o agora presidente é um mero produtor de frases “sem lastro na realidade”, a vida digital joga-nos numa eterna realidade especulativa na qual, como diz o sociólogo William Davies, “verdadeiro é tudo aquilo que ainda não foi eliminado pela concorrência”.
É a incapacidade de perceber a natureza desse universo paralelo que explica a perda de credibilidade da classe intelectual, por exemplo, em prever fenômenos como os de caráter eleitoral. Pois a maioria falha em entender que, tal qual uma “memecoin”, a popularidade de políticos na era digital carece de lastro – como em qualquer realidade especulativa, e isto quer dizer tanto a sua potencial falência como, em muitos casos, seu improvável sucesso.
Como começamos a observar nas primeiras experiências da extrema direita no poder, o sucesso de Trump 2.0 dependerá, crescentemente, de variáveis com as quais os velhos intérpretes da política não estão preparados para lidar. E, paradoxalmente, quanto maior a sua frustração com o aparente capital sem lastro de Trump, maior a dose de ressentimento oferecida como prêmio a uma plateia desencantada.

O valor da informação: de como o capital se apropria do trabalho social na era do espetáculo e da internet, de Marcos Dantas, Denise Moura, Gabriela Raulino e Larissa Ormay
Com a ótica da teoria marxiana do valor-trabalho, revela como a informação se tornou mercadoria fundamental nas relações de produção e consumo. Explora os aspectos da propriedade intelectual, trabalho não remunerado em plataformas digitais e a produção de valor nos campeonatos de futebol.
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Rafael Burgos é jornalista e pesquisador, mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP. É organizador do livro Escombro: um diário da máquina do ódio (Kotter).
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