“Babygirl” e o direito ao fetiche

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Por Cauana Mestre

“O masoquismo feminino é uma fantasia masculina”. A frase, dita por Lacan na década de 60, aparece no filme Babygirl, dirigido por Halina Reijn e estrelado por Nicole Kidman, Antonio Banderas e o novato Harris Dickinson. Quem diz a frase é um homem, tentando justificar o que ele acredita ser, em uma mulher, uma fantasia equivocada, uma submissão absurda.

A sentença de Lacan, embora pareça bastante ideológica, é mais complexa do que se pode imaginar, pois a seu ver feminino e masculino são posições sexuadas, ou seja, modos de gozar do próprio corpo que ultrapassam o limite do gênero. O masoquismo feminino é uma fantasia fálica e pode, inclusive, ser a fantasia de uma mulher. Como conciliar isso com a noção que temos hoje dos feminismos e com toda nossa história de violência ao corpo das mulheres? A pergunta parece simples, mas nos pede uma série de torções que a cultura não está muito acostumada a fazer, preferindo olhar para o mundo da sexualidade como se ele fosse uma paleta fechada.

Freud fez o oposto. Em 1918, ao publicar o texto Bate-se numa criança, ele torce qualquer noção engessada sobre a sexualidade, mostrando que as fantasias sexuais não seguem a lógica que tentamos impor à vida, mas uma lógica narrativa que nos surpreende e às vezes horroriza. É o que mostra a produção de Reijn, uma história sobre o gozo, o corpo e o poder. Romy (Nicole Kidman) é CEO de uma empresa de tecnologia que se divide entre a rotina intensa de trabalho e a vivência com o marido e suas duas filhas. A multinacional cria robôs que transportam mercadorias, alusão perfeita à nossa tentativa neurótica de robotizar a sexualidade e as fantasias que nos habitam em busca de um encaixe social. A ilusão de controle se dissolve quando Romy conhece Samuel (Harris Dickinson), um estagiário provocador que não a trata como alguém que está no poder, o que a deixa desorientada.

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No início do filme, Romy está prestes a entrar no prédio onde trabalha quando vê uma grande cachorra avançar sobre o corpo de um pedestre após olhar para ela, que paralisa diante da cena. De repente, a cachorra muda de direção e obedece à ordem de um rapaz que lhe dá um biscoito e lhe afaga a cabeça, chamando-a de good girl. Este rapaz, é claro, é Samuel. Apesar de todos os clichês do filme é preciso dizer que esse começo é tão acertado e magistral, tão ferozmente sedutor que é impossível abandonar o filme até que ele termine.

O roteiro, também de Reijn, tem algumas derrapadas, é verdade. Há um exagero que às vezes esbarra numa falsidade latente, mas que, na minha opinião, não atrapalha o filme, que se desenrola com as personagens em vertigem e as atuações deliciosas de Kidman e Harris Dickinson (que, aliás, protagoniza uma das cenas de dança mais maravilhosas do cinema até hoje). Banderas faz bem o papel do homem de meia idade que não sabe o que fazer com a virilidade, e a escolha do ator é um ponto forte por marcar justamente a decadência dos Don Juans que tanto nos seduziram até pouco tempo.

Uma das críticas mais ferrenhas ao filme fala do uso dos clichês e, sim, Reijn se serve propositalmente deles para mostrar que a sexualidade é tão usual e ridícula quanto estranha, grotesca e infamiliar. A fantasia é tudo isso e muitas coisas para as quais não há nomeação possível. Por isso a cena inicial de Babygirl é tão bonita: ela escancara a complexidade das nossas fantasias, que não habitam o politicamente correto e são indomesticáveis. Nicole Kidman, depois de Kim Basinger em Nove e meia semanas de amor, é a nova heroína do direito ao fetiche e do doce incômodo aos puritanos. Eles tentarão reduzir o filme a um hot movie dispensável, mas duvido que, depois de assistir, consigam beber um copo de leite do mesmo jeito que bebiam antes.


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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.

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