Quando a resistência não é opcional
As experiências das mulheres trans de cor nos Estados Unidos abrem uma janela para o modo como o ato de reivindicar um corpo honesto constitui um espaço de resistência às relações interseccionais de poder. Reivindicar um corpo honesto quando se está visivelmente excluído é questão de vida ou morte.
Marsha P. Johnson
Foto: Hank O’Neal (WikiCommons).
Neste 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, compartilhamos um trecho do primeiro capítulo de Intersecções letais: raça, gênero e violência, novo livro de Patricia Hill Collins.
Analisando casos concretos, nos quais as intersecções de raça, gênero, classe, sexualidade, nacionalidade e religião fazem a violência não apenas presente, mas muitas vezes letal, a autora busca igualmente apontar ideias, ações e movimentos de resistência que surgiram como formas de combater esse grande problema social.
A ideia de corpo honesto de June Jordan descreve a busca por uma vida livre da opressão, por meio da qual o indivíduo se sente em casa, em equilíbrio e em paz com seu corpo. Ela observa: “Se finalmente se pode ir ao banheiro onde quer que haja um, se finalmente se pode pedir uma xícara de café e tomá-lo onde quer que haja café disponível, mas não se consegue seguir o próprio coração, não se pode respeitar a reação do próprio corpo honesto no mundo, de quanta liberdade, e de que tipo, nós desfrutamos?”. Para Jordan, viver em um corpo honesto é um fundamento da liberdade individual: “Que tirania poderia suplantar a tirania que sentencia o coração humano e que tenta sentenciar a trajetória pública de um corpo humano honesto?”. Retirando as emoções e os corpos do domínio da biologia e colocando-os direto no domínio da política, Jordan argumenta que viver desonestamente dentro do próprio corpo é uma forma de tirania. Como poeta, Jordan escolhe as palavras com cuidado. Tirania faz referência a governos ou regras cruéis e repressivas. A procura por um corpo honesto é uma busca ao longo da vida para todos, mas especialmente para as pessoas cujo corpo não adere às normas de sexo/gênero/sexualidade que sustentam o sistema heteropatriarcal.
(…)
Pela própria presença, as pessoas trans desafiam pressupostos e práticas do sistema de sexo/gênero/sexualidade e, por extensão, colocam em questão os sistemas interseccionais de poder. Quando pessoas trans reivindicam seu corpo honesto, sua visibilidade para si e para os outros, elas apontam para uma política radical do corpo que subverta as relações interseccionais de poder. Desafiar a política de sexo/gênero do corpo é desafiar os próprios fundamentos do poder. As teorias de determinismo biológico afirmam que o sexo determina o gênero. Em outras palavras, o sexo biológico no sentido de nascer homem ou mulher determina o gênero como homem ou mulher. Se o sexo biológico não pode ser alterado, os papéis aparentemente naturais de homens e mulheres também não o podem. As ideias sobre masculinidade e feminilidade são construídas sobre essa base de determinismo biológico. A crescente visibilidade de pessoas trans desafia o núcleo dessa lógica do determinismo biológico. As experiências de pessoas trans sugerem que algo que parece imutável, hegemônico e permanente é, após uma análise mais detalhada, muito menos rígido do que a maioria das pessoas acredita que seja.
Por serem visivelmente excluídas, as pessoas trans expressam uma forma radical de resistência aos pressupostos biológicos fixos que sustentam o heteropatriarcado como sistema de poder. Insistir na maleabilidade das categorias biológicas de sexo atribuídas no nascimento põe em dúvida toda a edificação do gênero. Se o sexo biológico não é fixo, o gênero também não o é. Além disso, como o gênero nas relações interseccionais de poder, os desafios às políticas de sexo/gênero/sexualidade do corpo têm efeitos de repercussão no racismo enquanto sistema de poder estruturado de forma semelhante. Os pressupostos do determinismo biológico também são a base das ideologias de supremacia branca. A teoria do determinismo biológico tem sido usada há muito tempo para justificar a desigualdade racial. Se a raça tem uma base biológica, as diferenças raciais, ainda que resultem em desigualdade racial, são fenômenos naturais e normais. Assim como as mulheres são naturalmente inferiores aos homens, as pessoas negras também são naturalmente inferiores às brancas. Pessoas trans de cor desafiam a política do corpo que sustenta os sistemas interseccionais de opressão. Quando pessoas trans de cor reivindicam seu corpo honesto na intersecção de gênero e raça, elas refutam toda a edificação de ideias e práticas relacionadas a sexo/gênero/sexualidade e raça.
As experiências das mulheres trans de cor nos Estados Unidos abrem uma janela para o modo como o ato de reivindicar um corpo honesto constitui um espaço de resistência às relações interseccionais de poder. Reivindicar um corpo honesto quando se está visivelmente excluído é questão de vida ou morte. Essa forma de resistência, por sua vez, atrai a violência disciplinar retaliatória por parte de atores estatais, bem como de cidadãos comuns que se sentem muito ameaçados por pessoas abertamente trans. Como esse é um debate bastante amplo, concentro-me aqui em um curto período de tempo (da década de 1980 ao presente) e em uma localização nacional (os Estados Unidos). Tal período é marcado pelo ativismo queer radical, em que mulheres trans de cor foram figuras importantes no ativismo LGBTQ, como continuam a ser até hoje. A visibilidade das mulheres trans de cor nos movimentos sociais e na cultura popular é importante por si só. Mas elas continuam a pagar um preço elevado por sua visibilidade nas linhas de frente da justiça racial e de gênero. No relatório “Dismantling a Culture of Violence: Understanding Violence against Transgender and Non-Binary People and Ending the Crisis” [Derrubando a cultura da violência: compreendendo a violência contra transgêneros e não binários e colocando fim à crise], de 2021, a Human Rights Campaign, organização que analisa a violência de gênero, identificou, nos Estados Unidos, pelo menos 26 mortes de pessoas transgênero ou em não conformidade de gênero em 2018. A maioria mulheres transgênero de cor que foram assassinadas por pessoas que conheciam, com quem tinham parceria íntima ou que lhes eram desconhecidas. Apesar do aumento do risco de violência, a crescente visibilidade das mulheres trans de cor na cultura popular e nos movimentos sociais, como o movimento LGBTQ e o Black Lives Matter, aumentou a consciência pública sobre a violência interseccional que afeta pessoas LGBTQ, em geral, e mulheres trans de cor, em especial. Mas também desperta para as possibilidades de liberdade individual dentro de sistemas interseccionais de opressão.
Desde a década de 1990, ao se assumirem e se tornarem visíveis, as mulheres trans de cor têm reivindicado cada vez mais o poder de um corpo honesto nos espaços públicos. Elas o fazem combinando histórias individuais sobre como se assumem no cotidiano, por meio de pressão política e, cada vez mais, pela cultura popular. Dada a importância da geografia na criação de lugares de proteção e perigo, as mulheres trans de cor têm procurado se proteger nas grandes áreas urbanas. Esses espaços proporcionam aceitação, mas também oferecem oportunidades de organização e pressão política. O documentário A morte e a vida de Marsha P. Johnson (2017) examina a vida e as ações de uma importante mulher trans negra que foi central no ativismo trans na cidade de Nova York.
Como ativista visível e eloquente pelos direitos LGBTQ, a srta. Johnson não era uma líder no sentido de ocupar um cargo político ou de encabeçar um movimento social. Pelo contrário, graças a suas competências como organizadora comunitária, ela apoiou jovens queer que fugiram de famílias que os desaprovavam e de comunidades que os rejeitaram. Vivendo abertamente como pessoa transgênero negra, ela reivindicou seu direito de viver em um corpo honesto. Quando seu corpo foi encontrado flutuando no rio Hudson, em 1992, muitas pessoas da comunidade LGBTQ acreditaram que ela havia sido assassinada, apesar dos vereditos oficiais de suicídio. No entanto, a realização do documentário é uma das consequências não intencionais de sua morte em circunstâncias suspeitas. Tomando a morte dela como ponto de partida para a vivência em um corpo honesto, o documentário examina como suas ideias e suas ações foram essenciais para o ativismo transgênero no contexto nacional. Prestando homenagem a essa importante mulher trans negra, descrita por sua amiga e colega Sylvia Rivera como a “mãe do movimento”, o documentário analisa os anos de fundação do movimento trans na cidade de Nova York. A violência desempenha um papel importante na compreensão do legado de ativismo das mulheres trans de cor, assim como o ponto de vista a partir de baixo, catalisado por esse ativismo.
Conquistar terreno para as comunidades ativistas em Nova York, São Francisco e outras grandes cidades não tem sido fácil. Mas, desde a década de 1990, as mulheres trans de cor têm influenciado o avanço do ativismo queer radical graças a projetos políticos como a Human Rights Campaign, por meio da criação de comunidades que apoiam jovens queer de cor cujas famílias rejeitaram, e do aumento da visibilidade de mulheres trans de cor na cultura popular. Quando mulheres trans de cor estabelecem lares ou famílias para proteger e cuidar umas das outras, elas desafiam noções fundamentais sobre o que é considerado família e quais famílias são mais validadas que outras. Quando as mulheres trans de cor deixam, individualmente, suas comunidades de origem e se reúnem nas cidades, elas rejeitam o provincianismo das coletividades em que muitas delas foram criadas. Em síntese, elas fogem do poder disciplinar concebido para defender o heteropatriarcado e o racismo e criam famílias e comunidades alternativas que viabilizam sua sobrevivência física, mas também a possibilidade de serem reconhecidas por quem são. Nesse sentido, reivindicar um corpo honesto é um ato radical com efeitos em cascata que vão muito além das ações de um indivíduo.
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Em Intersecções letais: raça, gênero e violência, Patricia Hill Collins analisa situações como o assassinato de Marielle Franco no Brasil, o conflito na República Democrática do Congo, a condição das mulheres aborígenes na Austrália e da população negra nos Estados Unidos. No livro, a autora aponta metodologicamente e de maneira acessível como aplicar o conceito de interseccionalidade em investigações sobre as origens e as consequências da desigualdade e da injustiça.
“Provocativo e desafiador, este livro é fundamental para aquelas e aqueles que buscam compreender as raízes estruturais da violência, a qual Collins se recusa a aceitar como inevitável, convidando-nos a resistir a esse perverso fenômeno. Intersecções letais é uma leitura imprescindível para as pessoas engajadas na luta por justiça social e que buscam aprofundar suas reflexões sobre as conexões entre violência, relações de poder e desigualdades”
— Nilma Lino Gomes
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