Disclaimer: o pecado de ser mulher

Na arte, sobrepor a ética à ideologia é imprescindível para não cair na armadilha de atestar exatamente aquilo que se pretende rechaçar.

Foto: Divulgação

Por Cauana Mestre

Disclaimer, nova produção da Apple Tv, começa com uma advertência: cuidado com a narrativa e a sua forma. A obra é dirigida por Alfonso Cuarón, que esteve à frente de filmes excelentes como Roma e Filhos da esperança, e produziu coisas igualmente brilhantes, como O labirinto do fauno.

Na série, Catherine (Cate Blanchett) é uma mulher linda, interessante e bem-sucedida. É documentarista, portanto, trabalha em torno da verdade, e acaba de ganhar um importante prêmio. Ela é casada — sabe-se lá por que — com Robert (Sacha Baron Cohen), um homem que esconde sua pequenez por trás de uma camada exagerada de simpatia e que chama sua esposa de “boneca” (ui!). O filho, um adolescente melancólico, odeia declaradamente a mãe — por que razão? Essa é uma das coisas que a série não consegue explicar. O desafeto, as impulsividades e o humor deprimido do jovem são elementos soltos que não se conectam muito bem com a história.

Na trama, Catherine passa a ser assombrada pelo passado quando recebe um exemplar do romance O estranho perfeito, cuja protagonista, assim que começa a ler, Catherine sabe ser ela mesma. O livro é dedicado a Jonathan e teria sido escrito pela mãe do rapaz. O romance conta com riqueza de detalhes a vida sexual do filho, o que deixa tudo ainda mais bizarro, afinal, como a mãe teria ficado sabendo de tantos pormenores sexuais dele? E, se ela estava apenas supondo, como pode ter acreditado realmente em sua própria versão — uma versão completamente imaginada — como verdade absoluta? As fantasias dessa mulher de meia idade com a relação sexual entre seu jovem filho e uma mulher mais velha e atraente até poderiam ter sido exploradas com complexidade e tornado a série interessantemente sombria e humana, mas não é isso que acontece.

Foto: Divulgação

Ao contrário, os episódios vão caminhando por veredas cada vez mais inverossímeis e que não convencem, apesar da atuação de Cate Blanchett que, como sempre, é impecável. Em sua crítica para o The Guardian, Lucy Mangan chega a escrever que a atriz é realmente a única capaz de lidar — e ainda brilhantemente — com um roteiro tão abominável.

Se é preciso cuidar com a forma, como alerta a série logo no início, o que se pode dizer de um roteiro descuidado, que não amarra as pontas e acaba por transformar os episódios em um conjunto de deslizes até um tanto ingênuos? Outro grande erro da produção é apostar em um projeto que a história não dá conta de sustentar. Aqui cabe uma ponderação importante: a arte não tem obrigação de nos ensinar nada, no entanto, quando ela declaradamente pretende explorar temas específicos, precisa fazer bem-feito. E quando estamos dispostos a falar sobre qualquer coisa que seja sensível no âmbito da cultura e que levante camadas interpretativas não podemos renunciar a alguma complexidade. Uma das formas de fazer isso nas obras audiovisuais é apostando em personagens que Antonio Candido chamava de esféricas, ou seja, constituídas da mais absoluta humanidade, carregadas de toda sorte de afetos e nuances. Como psicanalista, poucas coisas me incomodam tanto quanto personagens planas, que são ou muito boas ou muito más ou transitam por essas posições a partir de um rompante inexplicável.

Foto: Divulgação

Na arte, sobrepor a ética à ideologia é imprescindível para não cair na armadilha de atestar exatamente aquilo que se pretende rechaçar. No caso de Disclaimer, não acho que a frase final de Catherine (e que tem sido muito destacada pelos espectadores) salve a série de reforçar a grande sordidez que recai sobre as mulheres há séculos: só é possível ser perdoada pelo pecado de ser mulher sendo uma vítima. Mais uma vez a sexualidade feminina é execrada e fica sem nenhum espaço fora da moral. Acho mesmo que a série tentou ir por outro caminho, o que, na minha visão, torna esse erro bastante inocente, quase principiante.

No entanto, é óbvio que o alerta sobre a forma cai bem. Não existe verdade absoluta, apenas, como disse Lacan, verdades não-todas, que nada mais são do que ficções. Quem você permite que controle a narrativa do mundo? Seus pais? A igreja? O Estado? Uma ideologia? Ou você é capaz de ouvir as variabilidades do mundo com a complexidade que elas têm, separando os fatos e as meias verdades para construir uma ficção própria e singular?

Acho apenas triste que uma produção com tanto potencial não tenha conseguido nos levar além do mesmo. Ainda assim, vale a pena assistir para ver Cate Blanchett, uma cozinha maravilhosa com vista para o parque, Sacha Baron Cohen fugindo do cômico e sendo mais cômico ainda e, a cereja do bolo, Kevin Kline de bolero inglês interpretando um vilão tão caricato que eu esperei pelo momento em que ele esfregaria as mãos olhando para a câmera e se transformaria em Gargamel, o adorável e nada convincente vilão dos Smurfs.


***
Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.

Deixe um comentário