Imaginar a revolução

É por isso que Brecht dizia a respeito de Lênin: “Ele pensava dentro de outras cabeças; e na sua outros, além dele, pensavam. Este é o verdadeiro pensamento”.

Foto: WikiCommons

Por Carolina Peters

vladmir lênin dorme o sono dos justos/ há cem anos não envelhece
— “Lênin lab”, de Helena Zelic

Em abril deste ano, recebi um convite da Boitempo para mediar e comentar uma das aulas do I Curso Livre Lênin, que marcava o centenário de morte do revolucionário russo. Mal respondi o e-mail, confirmando presença, catei na estante o exemplar de O que fazer? e me sentei pra reler. Meu primeiro contato com esse cânone do pensamento marxista aconteceu mais de uma década atrás, logo que entrei no movimento estudantil. Quando a editora publicou a primeira tradução direta do russo no Brasil, pela coleção “Arsenal Lênin”, comprei o exemplar. Cheguei a folhear o livro em algum momento, mas não o tinha aberto até então. Relendo, pude revisitar um momento importante da minha formação marxista e, ao mesmo tempo, também pelo passar dos anos e estudos acumulados, tive a sensação redescobrir Lênin como algo inteiramente novo — ou quase isso.

Seja pela imensa capacidade de elaboração teórica e formulação política, seja pela magnitude de sua figura humana, há algo profundamente sedutor em tudo que diz respeito ao revolucionário russo. Os  numerosos relatos de quem teve a sorte de conviver com ele e lutar ao seu lado — como sua companheira e interlocutora, Nadiéjda Krúpskaia; a camarada internacionalista, Clara Zetkin; ou o escritor Maxim Gorki, para citar apenas os meu favoritos — dão conta da profunda vinculação entre esses dois aspectos da sua personalidade, o teórico da revolução e o sujeito empírico. Mas é sobretudo no seu próprio texto que a indissolubilidade entre ambos transparece.

O que me motivou a escrever a respeito, porém, não foi o fascínio que me envolveu em abril passado e fez com que devorasse três livros em pouco mais de uma semana. Foi, antes, a percepção do desafio imposto à leitura de Lênin nos nossos dias. De modo mais imediato, esse desafio tem a ver com o fato de que nunca é simples se defrontar com esses autores sobre os quais pesam décadas — no caso, um século inteiro — de interpretações valiosíssimas (imprescindíveis para o entendimento em diversos momentos, sem dúvida alguma), mas também de entulhos.

Aqui me refiro, em primeiro lugar, aos detratores, que falseiam ou deturpam seu pensamento e biografia. Falo como criança dos anos 1990, que cresceu sob o impacto da queda do Muro de Berlim e um persistente clima de disputa ideológica mal disfarçado. Perdi as contas de quantas vezes assisti a Anastácia, animação musical dos estúdios Fox que retratava a Revolução de Outubro como uma maldição que se abatera sobre a simpática dinastia Romanov e, por consequência, todo o povo russo. Nessa propaganda anticomunista fantasiada de “inocente” entretenimento infantil, um diminuto grupo de homens só havia sido capaz de tomar o Palácio de Inverno graças aos desígnios de um feiticeiro.

Vejam só vocês: meia dúzia de gatos pingados em uniformes militares e nenhuma só mulher! O 8 de março de 1917 nunca existiu e os bolcheviques, como tendência radical que passa a dirigir o processo, tampouco. Todo o longo ciclo de lutas, com as viravoltas e avanços logrados desde 1905, se reduz a apenas um ataque às vésperas do Natal, evento que daria mote à nostálgica canção-tema da protagonista do desenho, “Once Upon a December”. O enredo, assim, não se restringe a taxar os revolucionários de vilões; mais do que isso, sua estrutura narrativa questiona a mera possibilidade de um levante popular massivo contra o czarismo, de uma ação coletiva que mude os rumos da história. Dito de outro modo, representações como essa estão empenhadas em excluir por completo a ideia de revolução do nosso imaginário.

Manifestação de trabalhadores de Putilov no primeiro dia da Revolução de Fevereiro, 1917
Fonte: WikiCommons

Seria, contudo, equivocado restringir aos reacionários uma visão enrijecida da história, ou atribuir unicamente à indústria cultural o definhamento da nossa imaginação política. Nesse sentido, me ocorrem duas posturas diametralmente opostas, mas em boa medida afinadas, em relação a um possível legado leninista. Sobretudo no que diz respeito às considerações sobre a organização da classe trabalhadora, o partido e seus órgãos para a agitação e propaganda política, âmbito no qual foi Lênin quem talvez tenha dado os aportes mais substantivos ao marxismo, e no qual a esquerda atual parece penar particularmente para encontrar as próprias respostas.

O que pensar daqueles que, mesmo na melhor das intenções, reduzem-no a chavões para uso meramente instrumental, em contexto histórico-social brutalmente diverso (esvaziando-as, portanto, de sua significação histórica e força política)? Ou, então, da postura diametralmente inversa daqueles que denegam por completo sua contribuição como se restrita a um esquema datado (ironicamente recaindo no mesmo filistinismo tão criticado por Lênin em razão do adesismo às reações espontâneos dos trabalhadores à espoliação, sem fomentar uma perspectiva crítica à lógica de reprodução capitalista imanente às — importantes — pautas imediatamente econômicas)?

Avesso ao esquematismo dogmático, Lênin nos defronta em seus textos com formulações sempre surpreendentes. Sua contribuição original parece possível graças a uma dialética (como não poderia deixar de ser) entre o absoluto rigor no estudo dos clássicos e a liberdade deliberada diante desses textos, uma postura ativa em relação aos problemas ali circunscritos. Não é uma nem duas vezes em que ele rebate, sem vacilar, o doutrinarismo de seus adversários políticos no interior da social-democracia “contrapondo-se” a afirmações de Marx e Engels. Explico: sempre que alguém lançava mão de citações de Marx e Engels como argumento de autoridade em discussões táticas do movimento russo, por exemplo, ele reconduzia aquela frase solta a seu contexto (não meramente textual, mas histórico-social!), enfatizando as determinações concretas daquela assertiva de Marx ou Engels. Feito isso, ele procedia, então, à análise minuciosa e sensível da situação presente, tendo em vista não somente o quadro objetivo do estágio do desenvolvimento do capitalismo na Rússia e a composição de classe em cada caso, mas chamando igualmente a atenção para a percepção da disposição subjetiva das massas — a saber, dos agentes históricos —, para só assim definir as tarefas e orientar a ação revolucionária. Esse procedimento reflexivo não deixa de ser uma forma de educar seus próprios leitores para o contato com a sua obra, assim como com a realidade.

É por isso que Brecht dizia a respeito de Lênin: “Ele pensava dentro de outras cabeças; e na sua outros, além dele, pensavam. Este é o verdadeiro pensamento”. A esse respeito, há uma bela passagem de O que fazer? em que Lênin, ironizando seus adversários que o acusaram de idealista por afirmar que “é preciso sonhar!”, recorre a palavras de Dmitri Píssarev, um dos democratas radicais da década de 1860, sob cuja influência a geração de Lênin cresceu. Diz Píssarev, citado por Lênin: “Se uma  pessoa estivesse absolutamente privada da capacidade de sonhar assim, se não pudesse, de vez em quando, adiantar-se e contemplar em imaginação o quadro inteiramente acabado da obra que se esboça entre suas mãos, eu não poderia de maneira alguma compreender que razão [a] levaria […] a iniciar e levar a seu termo vastos e penosos empreendimentos nas artes, nas ciências e na vida prática” (p. 186-187) — inclua-se aí a própria revolução, em última instância, uma alteração radical da vida cotidiana. Comentando a citação, Lênin escreve: “sonhos dessa natureza, infelizmente, são muito raros em nosso movimento” (p. 187). Seu lamento poderia também ser nosso.

No tempo que nos foi dado viver, em que o debate das esquerdas em torno do empreendedorismo dá o que falar, é inevitável ler isso e não experimentar certa identificação. Qual a nossa capacidade hoje de sonhar? E, mais importante ainda, incitar a imaginação para além dos limites estreitos da sociabilidade capitalista?


O que fazer?
O que fazer? é a obra seminal da teoria política de partido do dirigente revolucionário russo. Publicado como brochura em 1902, o livro apresenta as linhas gerais do que seria chamado mais tarde de “partido leninista”, indicando as tarefas de organização necessárias ao desenvolvimento da revolução, bem como avaliando os equívocos das diferentes linhas de pensamento no interior do que até então era o campo da social-democracia. O livro tem tradução de Paula Vaz de Almeida, prefácio de Valério Arcary, texto de orelha de Virgínia Fontes e quarta-capa de Tamás Krausz e Atilio A. Borón.

O desenvolvimento do capitalismo na Rússia
O 7º volume da Arsenal Lênin traz uma análise rigorosa da economia e da estrutura social da Rússia no período posterior à reforma de 1861, que aboliu a servidão do campesinato. Escrito de 1896 a 1899, Lênin iniciou o livro na prisão e o concluiu na aldeia de Chúchenskoie, durante seu exílio. Com tradução direta de Paula Vaz de Almeida, apresentação de José Paulo Netto, orelha de Anderson Deo e apoio da Fundação Maurício Grabois.

Duas táticas da social-democracia na revolução democrática
O livro aponta questões importantes para os movimentos de 1905, tido por muitos como marco inicial da agitação política russa, e aponta tarefas da classe operária para os anos subsequentes, que culminariam na Revolução de Outubro de 1917. Publicado durante o exílio de Lênin em Genebra, na Suiça, a obra expõe diferenças fundamentais que surgiram na época entre os bolcheviques e os mencheviques, além de trazer aspectos teóricos importantes, como uma contribuição ao conceito de “ditadura do proletariado” e a noção de “revolução ininterrupta”, análoga, sob muitos aspectos, à de “revolução permanente”, de Trotski.

O Estado e a revolução
Escrito entre agosto e setembro de 1917, em meio às perseguições do governo provisório encabeçado por Aleksandr Keriénski, este livro é o mais relevante estudo sobre o caráter do Estado desde as obras de Karl Marx e Friedrich Engels. Para concluí-lo, Lênin desbravou página a página os escritos sobre o Estado dos fundadores do materialismo dialético, notadamente A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels, e A guerra civil na França, de Marx. O livro tem tradução de Paula Vaz de Almeida, apresentação de Marcos Del Roio, posfácio de Maria Angelica Borges, texto de orelha de Marly Vianna e quarta-capa de György Lukács, Wendy Goldman e Slavoj Žižek.

Imperialismo, estágio superior do capitalismo
Escrita um ano antes da Revolução de Outubro e publicada no calor das jornadas revolucionárias de 1917, Imperialismo, estágio superior do capitalismo é considerada uma das obras mais importantes do líder bolchevique. Neste ensaio, Lênin deixa claro que o imperialismo, em evidência com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, não era apenas uma prática política de determinados países capitalistas, mas a evolução do próprio sistema do capital, que atingia no início do século XX, com o capital financeiro e os monopólios, o seu estágio mais avançado. Ao confrontar-se com os novos desafios do capital no século XX, Lênin acrescenta um capítulo às análises de Marx e Engels, oferecendo um dos mais importantes armamentos teóricos para o proletariado diante do capital monopolista. O livro tem tradução de Paula Vaz de Almeida, prefácio de Marcelo Fernandes, texto de orelha de Edmilson Costa e quarta-capa de György Lukács, István Mészáros e João Quartim de Moraes.

Democracia e luta de classes
Seleção inédita de sete textos escritos por Vladímir Ilitch Lênin entre 1905 e 1919, cujo enfoque é a relação primordial entre o escopo das classes na sociedade e o conceito de democracia – elucidada, em síntese, na defesa da ditadura do proletariado. Nesse conjunto de textos, Lênin demonstra que é impossível dissociar a classe que está no poder do tipo de poder que ela exerce. O livro tem tradução de Paula Vaz de Almeida, texto de orelha de Fábio Palácio e quarta- capa de Luis Felipe Miguel e Slavoj Žižek.

Cadernos filosóficos reúne um conjunto de textos que, embora pouco conhecido do grande público, é considerado fundamental para a trajetória teórico-prática dos intensos dez últimos anos de vida do líder soviético. Desafiadoras, essas anotações sobre obras e palestras de Hegel centradas na lógica, na dialética e na filosofia da história documentam um momento de transição no pensamento leniniano. O livro tem tradução de José Paulo Netto, com revisão de Paula Vaz de Almeida, introdução de Henri Lefebvre e Nobert Guterman, texto de orelha de Gianni Fresu, posfácio de Michael Löwy e quarta-capa de José Paulo Netto e C. R. L. James.

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Carolina Peters é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e mestre em Filosofia pela UFMG, onde defendeu a dissertação De volta à corrente da vida: vivência receptiva e vida cotidiana na Estética de György Lukács.

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