Megalópolis e a utopia de Coppola

Há espaço para sonhar num mundo degradado? Ou é necessário ser pragmático para reerguer diante do decadentismo?

Imagem: Divulgação.

Por Alysson Oliveira

O crítico, teórico e professor Fredric Jameson escreveu que “parece mais fácil para nós hoje imaginar a deterioração completa da Terra e da natureza do que a demolição do capitalismo tardio; talvez isso se dê por causa de alguma fraqueza em nossas imaginações”. Ele também disse que, grosso modo, é possível substituir num texto a palavra “capitalismo” por “modernidade” sem qualquer alteração de sentido. É pouco provável que o cineasta Francis Ford Coppola tivesse essas proposições em mente ao longo das quatro décadas de gestação de seu Megalópolis, mas, cena após cena, o filme parece concordar e ilustrar essas ideias.

A questão central do filme é a modernidade, mais com seus fracassos do que vitórias. Escrito pelo diretor, o longa diz que o sono da utopia desperta monstros, para parafrasearmos Goya. E, nesse sentido, o tempo todo a utopia precisa ser despertada para que o mundo não se curve às trevas dos totalitarismos em cidades planejadas para a opressão e dominação.

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O cenário do filme é uma cidade chamada de Nova Roma, um amálgama dos grandes centros urbanos estadunidenses localizada em um país onde — como num Império Romano da pós-modernidade, um pastiche de clássico com moderno, arcaico com tecnológico — um coral de personagens se digladia para impor sua visão de mundo que se materializa na visão da arquitetura. Cesar Catilina (Adam Driver) é um arquiteto brilhante que sonha com uma utopia e é, por isso mesmo, ingênuo. Há espaço para sonhar num mundo degradado? Ou é necessário ser pragmático para reerguer diante do decadentismo?

O maior  rival de Cesar é o prefeito, Cicero (Giancarlo Esposito), que prefere esse mundo corrompido e corrupto, comandado pelas velhas oligarquias. Parte delas também é composta por Hamilto Crassus III (Jon Voight), um banqueiro cujo sobrinho devasso, Clodio Pulcher (Shia LaBeouf), parece existir apenas para tentar destruir Cesar. Ao lado do protagonista está Julia (Nathalie Emmanuel), filha do prefeito, por quem ele é apaixonado, e correspondido.

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Coppola coloca nesses pequenos núcleos outras dezenas de personagens que corroboram com os planos de Cesar ou o atrapalham. O arquiteto, por sua vez, desenvolveu a estranha habilidade de parar o tempo. Tudo isso se mistura num caldeirão de formas cinematográficas que vão desde o cinema mudo a um cinema interativo — numa das cenas, durante a première em Cannes e em algumas sessões nos EUA, um ator na plateia interage com o filme —, o que incomodou o público a ponto de exageros, como acusações de “o pior filme de todos os tempos”, aparecerem em alguns lugares.

Longe disso, Megalópolis é mais que cinema, é uma experiência grandiosa que nos indaga sobre o mundo em que vivemos e o que queremos dele. As cidades planejadas servem a quem? Qual o legado a modernidade nos deixou? A nossa pós-modernidade é capaz de resistir à ascensão de fascismo? Essa última pergunta é mais fácil de responder, como bem, sabemos: não. Clodio, em sua obsessão, forma um movimento fascista que toma as ruas da cidade, cujo discurso para a multidão remete ao de George W. Bush nos escombros das Torres Gêmeas, em 14 de setembro de 2001. Suas gangues usam suásticas, bandeiras dos Confederados e, num toque mais contemporâneo, bonés vermelhos.

O filme abre com o letreiro dizendo se tratar de “Uma Fábula”, ou seja, como tal, possui caráter educativo, e, claramente, sua educação mira no futuro da humanidade — a nossa humanidade, não, exatamente, os personagens do filme. Coppola está interessado na discussão sobre a democracia e como essa pode ser levada para um futuro melhor. A visão de mundo do diretor, materializando a do seu protagonista, parece ingênua e, em algum sentido, talvez perigosa, pois aspira à ascensão de um líder que transformará o mundo em algo melhor, tomando uma modernidade mesquinha para si e a transformando em algo coletivo. Há momentos um tanto cafonas, mas nada disso diminui a potência do filme em sua grandiosidade e megalomania. Está à altura da genialidade do cineasta que deu ao mundo a trilogia O Poderoso Chefão, Apocalypse Now e A conversação.


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Alysson Oliveira é jornalista e crítico de cinema no site Cineweb, membro da ABRACCINE – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, e escreve sobre livros na revista Carta Capital. Tem Mestrado e Doutorado em Letras, pela FFLCH-USP, nos quais estudou Cormac McCarthy e Ursula K. LeGuin, respectivamente. Realiza pesquisa de pós-doutorado, na mesma instituição, sobre a relação entre a literatura contemporânea dos EUA e o neoliberalismo, em autores como Don DeLillo, Rachel Kushner e Ben Lerner. 

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