Premissas para quem deseja decifrar o Brasil

Por André Singer

Lugar periférico, ideias modernas, de Fabio Mascaro Querido traz uma contribuição preciosa ao presente cenário das ciências humanas no Brasil. Ao rever, de maneira informada, inteligente e clara, o que chama de “tradição crítica paulista”, o autor recupera um conjunto de contribuições decisivas para pensar os impasses da sociedade nacional. Voltar a elas nos permite enxergar melhor certas contradições que ainda persistem, embora em escala e configuração novas.

Iniciada pela leitura sistemática d’O Capital, de Marx, em 1958, durante o auge do desenvolvimentismo, a escola aqui descrita analisou por meio século o desenrolar dos acontecimentos locais, buscando relacioná-los aos movimentos do sistema mundial produtor de mercadorias. Atravessou, assim, o golpe de 1964, a redemocratização de 1988, bem como as eleições de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva. Acompanhando-a, o livro traça um fascinante percurso de história intelectual entrelaçado ao da política.

O autor, em certa medida tributário de hipóteses lançadas por Roberto Schwarz, não foge às inúmeras contradições que se acumularam em cinquenta anos de percurso dos acadêmicos originalmente congregados na Universidade de São Paulo (USP). Entre elas, a conversão de Fernando Henrique Cardoso, provavelmente figura central do processo, em um político de centro, que abandonou por completo o radicalismo que caracterizou o grupo nos anos 1960 e 1970.

Deve-se lembrar, contudo, que, se a “vertente cardosiana” acabou levando as “batatas” da vitória — afinal, chegou à Presidência da República —, membros proeminentes do coletivo optaram pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e, alguns, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Ao fim, Querido nos mostra que essa ala gauche conseguiu sustentar os pressupostos originais, mesmo em meio ao bloqueio de tantas aspirações emancipadoras. Conhecer tais premissas é indispensável para os que desejam decifrar o país.


Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (1958-2000), do sociólogo Fabio Mascaro Querido, é uma análise sobre os intelectuais ligados à Universidade de São Paulo dos anos 1960 à década de 1990. Resultado da tese de livre-docência do autor, defendida em dezembro de 2022 na Unicamp, a obra revela como a vertente “marxista acadêmica” exerceu significativa influência nos debates sobre a abertura democrática dos anos 1980 e na vida política brasileira nas décadas seguintes.

O livro examina como alguns personagens representaram simultaneamente o auge e o declínio do pensamento sobre a modernidade no país. Durante os anos 1970, em plena ditadura civil-militar, surgiram análises sofisticadas sobre as particularidades da sociedade brasileira, desafiando o desenvolvimentismo até então hegemônico na esquerda. No entanto, na década seguinte, com raras exceções, como a de Roberto Schwarz, observou-se um distanciamento dessas ideias por parte dos acadêmicos e uma aproximação destes com formulações universalistas, quer seja a visão de mundo neoliberal, que encontrará expressão no PSDB, ou a perspectiva classista, elaborada a partir da experiência do PT. O autor demonstra, assim, como a corrente intelectual da época moldou o pensamento sobre a democracia brasileira após a ditadura, bem como as mudanças e as divisões que ocorreram. Analisa esse importante capítulo da política, capaz de reinterpretar o passado e projetar futuros para o país.

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André Singer é professor titular do DCP-USP. Autor de Os sentidos do lulismo (Companhia das Letras, 2012), O lulismo em crise (Companhia das Letras, 2018) e Estado e democracia: uma introdução ao estudo da política (Zahar, 2021, com Cicero Araujo e Leonardo Belinelli), entre outros livros.






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