A nova eleição de Donald Trump e a crise do modelo liberal democrático
O novo mandato de Trump como Presidente dos EUA é o resultado da crise do modelo liberal democrático.
“Trump: construindo um futuro brilhante para todos. Apoiado por Elon Musk.”
Imagem: foto de Oleg Yunakov (WikimediaCommons)
Por Luis Felipe Miguel
Evito fazer projeções bombásticas, mas é difícil resistir no calor no momento: a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX.
A vitória de Trump não é exatamente inesperada. O velho farsante alaranjado nunca perdeu o apoio de sua base original – operários e rednecks empobrecidos, os que se sentem cada vez mais excluídos e sem perspectivas nos Estados Unidos de hoje. E cresceu tanto junto ao dinheiro grosso quanto ao eleitorado negro e latino.
Dos bilionários antes simpáticos aos democratas, Trump ganhou o apoio declarado, a simpatia discreta ou no mínimo a neutralidade. Já entre negros e latinos há um crescente descrédito com o discurso do “neoliberalismo progressista” que é oferecido a eles pelo Partido Democrata.
De fato, o Partido Democrata parece não saber o que oferecer ao eleitorado. Em 2020, Biden obteve uma vitória apertada – em um país mergulhado no caos da primeira gestão de Trump, incluindo uma gestão da pandemia tão criminosa quanto a de Jair Bolsonaro.
Na presidência, ele pareceu julgar que a volta à “normalidade” (isto é, à velha política de sempre) era o que o povo queria. Esforçou-se por melhorar os indicadores econômicos, sem perceber que o efeito eleitoral deles já não era o mesmo.
No começo do mandato, em gesto ousado, Biden apoiou a greve dos trabalhadores da Amazon, que reivindicavam o direito de se sindicalizar. Mas o saldo não foi angariar o apoio do vasto setor de precarizados (aqueles retratados no oscarizado Nomadland) e sim angariar a antipatia dos barões da “nova economia” – reforçado pelas tímidas tentativas de regular as big techs.
Não custa lembrar que Jeff Bezos, da Amazon, determinou que o Washington Post, o jornal do qual também é dono, rompesse a tradição de apoiar candidatos democratas e se declarasse neutro na eleição deste ano.
Quando a incapacidade física e mental de Biden para concorrer à reeleição se tornou evidente demais e – após um longo e desgastante processo – ele teve que ser substituído, a opção por sua vice parecia “natural”, mas nem por isso menos equivocada.
Ela parecia ser a solução mais rápida, capaz de unir o partido. Mas, afora isso, reconhecidamente uma política pouco hábil, má oradora e desprovida de carisma, seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana.
Com o apelo identitário se mostrando cada vez mais contraproducente, afastando mais eleitores do que congregava, e tendo que ser colocado em segundo plano, Harris fez uma campanha errática.
Era a mesma velha política morna, de fazer acenos em múltiplas direções para, no final das contas, manter tudo como está.
“Termine o Muro / Trump 24 Salve a América” (foto de Oleg Yunakov / WikiMedia Commons)
Do mandato de Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense. Isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal.
Esse desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático.
O segredo desse arranjo repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. Ou seja, as democracias históricas não se definem como um conjunto de regras do jogo abstratas, como frequentemente se apresenta na ciência política, mas como o resultado de uma determinada correlação de forças.
A acomodação da democracia liberal permite, por um lado, que os dominados tenham alguma voz no processo decisório e, por outro, que os dominantes saibam calibrar as concessões necessárias para garantir a reprodução de sua própria dominação.
Um componente necessário nessa equação é, obviamente, a capacidade regulatória do Estado. Outro é sua autonomia relativa em relação aos proprietários, a fim de que possam ser adotadas medidas que os contrariam no curto prazo.
A crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. O “populismo de direita” dá respostas a ela – ilusórias, mentirosas, mas ainda assim respostas. O centro e a esquerda eleitoral não chegam nem a isso. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral.
Estamos falando dos Estados Unidos. Mas, como disse Horácio (e Marx gostava de citar): de te fabula narratur.
Quais e quantas combinações são possíveis entre o marxismo e a ciência política? Em Marxismo e política: modos de usar, o cientista político Luis Felipe Miguel debate a relevância do marxismo para a análise da política. A obra busca introduzir e enfatizar a utilidade desse marco teórico para a produção de uma ciência política capaz de entender o mundo social e orientar a ação nele.
Ao longo dos nove capítulos, o autor cruza diferentes temas da tradição marxista com o campo da ciência política, como as classes sociais, o Estado, o gênero, alienação e fetichismo e muitos outros. Em contrapartida, demonstra a importância de uma abertura do próprio marxismo ao diálogo com a produção contemporânea da ciência política. Com isso, ao mesmo tempo evita o dogmatismo e abre caminhos para a pesquisa em ambos os territórios dos quais se propõe a tratar.
Marxismo e política: modos de usar, de Luis Felipe Miguel, tem apresentação de Andréia Galvão, orelha de Leda Paulani e capa de Daniel Justi.
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Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros livros, de Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018), O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular, 2019) e Marxismo e política: modos de usar (Boitempo, 2024). Também é coautor, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colaborou com o livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018).
Que tristeza! Os dois não prestavam, mas esse era pior. Talvez haja uma esperança com a decadência mais rápida do império.
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“[M]á oradora e desprovida de carisma”? Discordo. E esse tipo de análise leviana. Não foi por isso que ela não ganhou. Está colocando a culpa na vítima. Ela é mulher em um país que jamais machista que jamais vai aceitar uma mulher presidente. Esse também não é o único fator que tenha influenciado a derrota. Mas definitivamente não é por sua capacidade oratória – perfeitamente aceitável e infinitamente superior à do que venceu. Nem pof falta de carisma. Outra coisa, dizer que “seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana” é também desconhecer bastante os trunfos da candidatura dela e da agenda de campanha.
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