Intelectuais: tentativa de definição a partir de Jean-Paul Sartre
O filósofo Jean-Paul Sartre, em palestra na Universidade de Freiburg
Foto: Willy Pragher (Wikimedia Commons).
Por Ronaldo Tadeu de Souza
“Transformação fundamental da época anterior […] a migração generalizada de intelectuais da esquerda para instituições de educação superior […], o esvaziamento de organizações políticas e a idiotização das casas editoriais; a academicização tem causado estragos também em outros aspectos: aparatos inúteis, mais para forjar méritos que por motivos intelectuais, referências circulares a autoridades na matéria, obsequiosas citações dos próprios trabalhos […]“
— Perry Anderson, Renovaciones
A repercussão da entrevista de Francisco Bosco para o jornal Estado de São Paulo e do artigo de Joel Pinheiro da Fonseca para a Folha de São Paulo, no primeiro semestre deste ano, suscitou reflexões sobre as universidades, a pluralidade de ideias que ali circunda e a relevância, hoje, dos intelectuais e/ou acadêmicos para a sociedade. No artigo anterior tratei dos dois primeiros; neste ensaio, esboço uma caracterização, algumas balizas, sobre os intelectuais. O que é um intelectual? Quem são os intelectuais? E o que fazem os intelectuais? Essas questões podem ser sintetizadas na pergunta, qual é a função histórico-social, histórico-política e histórico-cultural dos intelectuais? Nos dias de hoje, a resposta e/ou compreensão dessas indagações adquiriu os mais variados modelos explicativos. O que implica firmar que os hommes de lettres são entendidos — definidos, delineados, tipificados — em horizontes diversos de abordagens. Isso quer dizer que os intelectuais são muitas coisas; que são muitas as identificações atribuídas a eles e a elas. Há, entretanto, certas descontinuidades nessa situação — é que na medida em que os hommes de lettres vão perdendo ou foram perdendo prestígio social, público, passaram cada vez mais a se tornarem objetos de investigação nas humanidades. O intelectual transformou-se em tema e agenda de pesquisa no âmbito das universidades. Seria demasiado extenso reconstruir a história dos intelectuais, desde o espelho dos príncipes nos séculos XV e XVI, passado pelos philosophes na França do Iluminismo (Aufklärung) até os dias gloriosos de Jean-Paul Sartre nos anos 1950-1970 — e daí à decadência a partir da consolidação dos especialistas nas décadas que sucederam o último impulso de transformação revolucionária no ocidente no maio francês. Sugiro, desse modo, retomar as formulações de Sartre — presentes na intervenção Em defesa dos intelectuais, conjunto de conferências pronunciadas em Tóquio, no Japão, em 1965 — para pensarmos, refletirmos, acerca dos sentidos de se ser intelectual; vale dizer, o que é um intelectual…
É certo que as formulações sartreanas são de um tempo histórico que, obviamente, já deixou de existir. Jean-Paul Sartre escreveu em um mundo que não é mais o nosso. Ora, poder-se-ia questionar, qual a relevância, portanto, de reaver a posição do filósofo existencialista sobre os hommes e femmes de lettres na contemporaneidade, com vistas a eliminar alguns inconvenientes e/ou para não incorrer em exageros ingênuos, ou seja, de mobilizá-lo para propor uma argumentação que alicerce as controvérsias de nossa época sobre os intelectuais? Nem sempre discussões concernentes a assuntos humanos de relevância social são travadas a partir de definições bem delineadas, com elementos de caracterização estabelecidos a contento. Exigir isso é caminhar em direção à impugnação da circulação-recepção-formação de querelas fundamentais para a disseminação da cultura reflexiva. E, sobretudo no horizonte de esquerda, significa eliminar a possibilidade de construção de pensamento crítico já na origem. Com efeito, tratando especificamente dos intelectuais e o que está em jogo — prestígio, reconhecimento, influência, autoafirmação (grupal), apropriações indevidas —, conformar nexos constitutivos balizadores é recomendável, mesmo que eles não sejam tão sólidos. Em defesa dos intelectuais responde a esse imperativo. Ademais, algumas flechas da aljava do existencialismo marxista podem ser melhores que nada.
Na compressão que inevitável e necessariamente emerge do esforço de Sartre, e no horizonte de alegação pelo negativo, professores e professoras universitários de qualquer nível, pesquisadores e pesquisadoras acadêmicos de excelência, analistas políticos que se propõem a comentários com pretensão de objetividade e eruditos que se dispõem a transcender as contingências da ordem técnica não são intelectuais. Com outras palavras: o exercício cotidiano de proferir aulas, em particular nos cursos de ciências humanas, expor um tema didaticamente, avaliar discentes; construir objetos de estudo a partir de problematizações específicas (permeadas por mecanismos condicionantes para a execução, como o jogo burocrático no acesso a recursos financeiros, a técnica sociocomportamental de firmar relações corretas e estratégicas, a adequação ao mainstream sob risco de ocultamento caso se recuse) desenhadas na perspectiva de bibliografia pontual, procedendo por restrições e padronizações na publicidade (sempre limitadas) dos resultados através de artigos científicos (papers); a análise de fatos políticos e culturais da vida das sociedades se portando por sobre os interesses materiais em litígio, evocando sofisticação e em nome do bem público; e o conhecimento fino e elegante, aprofundado e diversificado mesmo, de assuntos e disciplinas várias com a presunção de renúncia às coisas brutas do cotidiano — todas essas atividades estão distantes, por vezes se opõem, ao o que é ser intelectual na interpretação sartreana.
Universal, humanista, radical e revolucionário (contraditório): são esses os atributos que conformam os intelectuais na posição de Jean-Paul Sartre. A fusão dialética desses qualificativos é que lança os hommes e femmes de lettres a se engajarem em diversos “conflitos de nosso tempo porque todos são — conflitos de classe, de nações [e] de raças — efeitos particulares da opressão dos desfavorecidos pela classe dominante e porque em cada um deles ele está, ele, o oprimido consciente de sê-lo, do lado dos oprimidos”1. Com efeito, mais do que se propor a abordagens científicas, a comentar eventos da vida política das sociedades humanas a partir de técnicas (supostamente) imparciais e a buscar a pretensão em se alçar por sobre as disputas materiais, os escritores e escritoras comprometidos com a humanidade reivindicam a responsabilidade em falar pelos desvalidos.
Sartre não exime os intelectuais de inconveniências, contradições. Uma delas é o fato histórico de estar só. De se lançar no tempo concreto da política, da cultura e das artes sem possuir o “mandato de ninguém”2; sem que lhe seja atribuída a representação de falar, de enunciar, de locucionar as questões que mais afetam certos grupos sociais — os oprimidos em primeiro lugar. Entretanto, é justamente a vivência da negação, articulado com os desejantes do reconhecimento (Kojève3) a força intrínseca do intelectual enquanto defensor “do ponto de vista dos mais desfavorecidos”4. Assim, o que implica a apreciação de Sartre acerca das discordâncias existenciais que atravessam os hommes e femmes de lettres?
Em defesa dos intelectuais nos põe a presenciar o intelectual definido como ser-contradição. Ele emerge do sistema de dominação — são individualidades que se autoconstituem na trama da própria divisão social do trabalho intensificada pela modernidade burguesa; mas que se erguem com a força das letras, sejam elas escritas ou faladas, transfigurando-as em dispositivos de ação prática. Daí que não enfrentar esse paradoxo é inconcebível para escritores e escritoras na busca (e pretensão) de passarem a intelectuais. Para eles e elas, é inarredável, se estivermos a abordar a questão sartreanamente, a estrutura do eu atormentado de-si que experienciam. Diz Sartre: “a contradição que sofre é vivida apenas como sofrimento […] [pois] se pretendesse se estabelecer no povir […] se tentasse se por, idealmente, fora da sociedade para julgar a[s] ideologi[as]”, terminaria em “identificar-se com […] as classes dominantes […] e as classes médias [altas]” que se querem acima dos conflitos sociais e políticos, que se querem despidos dos seus próprios interesses e objetivos. Nos dias atuais, de reorganização da esquerda, radical, revolucionária (dentro e fora da ordem, para lembrar a feliz formulação de Florestan Fernandes5), de academicismo estéril, de cínicas posturas de neutralidade técnica, de oportunismos de pôr-se à sombra do poder estatal como se isso correspondesse à ação intelectual (a gestão petista está repleta de figuras com tal mentalidade e atitude…) — essa tendo de ser enfrentada por aquela necessidade —, é preciso insistir com Jean-Paul Sartre: os hommes e femmes de lettres têm de se posicionar a partir “do ponto de vista dos mais desfavorecidos” (p. 42).
O intelectual sartreano, diante das exigências impostas pelas sociedades orientadas pela ordem do capital, configuradas por arranjos morais e culturais burgueses, expressa a universalidade por-vir. Desse modo, os escritores e escritoras engajados não estão em busca de universalismos frívolos, vazados de insignificância racional. Pelo contrário o cenário ao qual eles e elas se lançam é o de “uma universalidade concreta de origem negativa”. Aqueles/as que se pretendem intelectuais têm de se transfigurar em catalisadores de subjetividades (a sua própria, inclusive) que tenham no horizonte o desmoronamento efetivo dos “particularismos” (p. 42). Quer dizer: é justamente a extinção das relações de classes assentadas no ordenamento capitalista o que aspira o/a intelectual. São as estruturas da sociedade burguesa a originar os particularismos desumanizantes, explorando as energias criativas humanas (dos “proletários”, sobretudo) e esmagando qualquer vislumbre de liberdade e igualdade efetivas que o literato comprometido deseja superar. De modo que, para Sartre, os que restringem (consciente ou inconscientemente, não importa…) suas formas de trabalho “letrado” ao âmbito do específico — âmbito esse dado e forjado pela cultura e pelas ideias burguesas — e, nos dias de hoje, orientam-se pelas exigências das agendas de pesquisa, pelas demandas do establishment e pela contribuição neutro-técnica na imprensa comercial são, por um lado, meros “técnicos do saber prático” e, por outro, repercutem (e até legitimam em certos casos) a “violência sofrida” e a impossibilidade de suprir “as necessidades [mais] elementares [dos trabalhadores]”6.
Gostaria de insistir nesse ponto da universalidade (autêntica). Porém, agora, acerca do papel teórico, cultural social e político do intelectual. O proceder dos que se arrogam (explicitamente ou implicitamente) serem homens e mulheres de letras é exercerem a ação do negativo e pelo negativo. Ora, não se trata, simplesmente, de mera erudição, por vezes muito mais um conjunto de tecnicidades adquiridas em bancos universitários, e exibidas em cenários e espaços amorfos das elites dominantes; o dever do intelectual está lá onde as sociedades reificadas não apresentam aos desvalidos de todo tipo as condições mínimas de subsistência, de tal maneira que os ultrajes e atrocidades sofridos resultados de relações sociais de classe se convertem, pelas ideias dominantes, em lei natural imutável e transcendente (Leo Strauss, Eric Voegelin, Michael Oakeshott7). É aqui que os literati — a quem Max Weber com sua razão diabólica tanto se opôs na Alemanha do começo do século passado8 — fazem figurar sua existência (contraditória). Assim, quanto mais se move no interior da contradição entre o distanciamento e o empunhar de posições radicais e transformadoras da ordem implicadas com o povo — entre a recusa das modalidades de opressão material e ideologia, “o conjunto da ideologia decretada de cima”9, dos trabalhadores, e o desejo de ser sujeito de desejo e de reconhecimento do outro, na interpretação de Judith Butler10; de evocar o ponto de vista dos que produzem a riqueza e dela estão apartados, mais o papel do intelectual estará sendo cumprindo.
Diante da “particularização absurda” da vida estabelecida pelas estruturas de classe, o escritor e a escritora comprometidos devem invocar para-si e para-o-outro-social-trabalhador a “universalidade concreta ori[ginada] no negativo”. Hommes e femmes de lettres têm o prazer e a paixão incandescente de se deixarem ser arrastados e de se juntarem “ao movimento pela universalização das classes desfavorecidas, pois elas têm o mesmo fim que ele”, o intelectual. A saber: têm por fim a liberdade, a igualdade, a felicidade e o reconhecimento humano-universal de si – ou, se se preferir, “o surgimento de uma sociedade sem classes”11. A reconstrução da esquerda radical, emancipatória e revolucionária, que se pretende digna desse nome, passa por recuperarmos, ainda que em termos de princípios, de ideais — uma posição romântica, por assim dizer —, dadas as transformações históricas, sociais e culturais que estamos atravessando, a figura do intelectual sartreano. É a “afirmação vivida da vida [e da] liberdade” de si e dos desfavorecidos pela imposição violenta da ordem burguesa — o que implica o desabamento desta, algo que não será pacífico — disse Jean-Paul Sartre, “[o] valor absoluto e [a] exigência”12 para todos e todas que se querem intelectual.
Notas
1 Cf. Em defesa dos intelectuais, ed. Ática, 1994 [1965], p. 40.
2 Ibidem, p. 41.
3 Sobre esse debate acerca da busca por reconhecimento dos intelectuais: ver a polêmica entre o próprio Kojève e Leo Strauss em Da Tirania-Incluindo Correspondência Strauss-Kojève (especialmente o ensaio de Kojève, Tirania e Sabedoria), ed. É Realizações, 2016.
4 Cf. Em defesa dos intelectuais, ed. Ática, 1994 [1965], p. 42.
5 Após a publicação de A Revolução Burguesa no Brasil essa foi uma construção teórico-político – revolução contra a ordem e revolução dentro da ordem – que marcou a produção e as intervenções de Florestan Fernandes em diversos de seus textos, artigos e conferências..
6 Ibiden, p. 43.
7 Ver Perry Anderson, A direita intransigente no Fim de Século. In: Afinidades seletivas, ed. Boitempo, 2002.
8 Com efeito, chama-se “excitação estéril, [a] característica de determinados intelectuais, principalmente russos, [que expressam] […] o romantismo do intelectualmente interessante, dirigido ao vazio e sem nenhum senso objetivo”. Cf. Max Weber, Política como Vocação. In: Escritos Políticos, ed. Martins Fontes, 2013, p. 443-444.
9 Cf. Em defesa dos intelectuais, ed. Ática, 1994 [1965], p. 42.
10 Ver Judith Butler, Subjects of Desire: Hegelian Reflections in Twentieth-Century France, ed. Columbia University Press, 1987.
11 Cf. Em defesa dos intelectuais, ed. Ática, 1994 [1965], p. 42.
12 Cf. Em defesa dos intelectuais, ed. Ática, 1994 [1965], p. 72.
A obra de Sartre: busca da liberdade e desafio da história, de István Mészáros
O livro tem o mérito de situar Jean-Paul Sartre em relação ao pensamento do século XX e abordar sua trajetória em todas as suas manifestações – como romancista, dramaturgo, filósofo e militante político. Para Mészáros, a importância da mensagem intransigente de Sartre sobre a necessária alternativa é maior hoje do que já foi anteriormente. O filósofo francês não viveu para ver grande parte das pessoas engajadas daquela época se render aos poderes da repressão em nome do privatismo e do individualismo. Por esse motivo, Sartre é hoje uma lembrança terrível e ao mesmo tempo imprescindível.
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Ronaldo Tadeu de Souza é pós-doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP, Pesquisador do Cedec e do GPDET-Grupo de Pesquisa Democracia e Teoria (UFRJ-CNPQ). É membro do conselho editorial do Projeto Dicionário Marxista das Américas.
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