Almodóvar e a fórmula absoluta da singularidade

Ninguém sabe o que é a morte. Conhecemos apenas o medo e o luto, efeitos da iminência ou da realidade da perda. Mas o que é a perda para cada um? Ausentar-se de si mesmo, morrer em vida, sofrer o sem sentido da desesperança – isso não é pior do que despedir-se do mundo para encontrar o desconhecido? Não há resposta universal para essa pergunta e o que O quarto ao lado encena é que a morte, assim como a vida, não deve ser separada da fórmula absoluta da singularidade.

Imagem: Divulgação/Warner

Por Cauana Mestre

“(…) a neve leve que caía e que caía, leve neve, como o pouso de seu fim definitivo, sobre todos os vivos e os mortos”.

O trecho é do conto “Os mortos” ­– coletânea Dublinenses –, de James Joyce, e aparece duas vezes na nova produção do diretor Pedro Almodóvar, O quarto ao lado, como se condensasse a grande questão da trama. O filme é baseado no livro de Sigrid Nunez, O que você está enfrentando, publicado no Brasil pela Instante e traduzido por Carla Fortino. O longa é roteirizado pelo próprio Almodóvar e é também seu primeiro filme de língua inglesa, todo gravado em Nova York.

O livro de Sigrid Nunez é um romance com jeito de conto e mistura temas como eutanásia, luto, desastre climático, amizade e amor. A prosa é fluida e envolvente, e usa até elementos fantásticos, como um gato contando sua própria história. O núcleo, porém, situa-se na relação de duas amigas que passam a conviver mais intimamente quando uma delas, Martha (Tilda Swinton) descobre as metástases de um câncer na cervical. Ingrid (Julianne Moore) acompanha o tratamento da amiga e sua estadia no hospital, até ser convidada a participar de sua decisão pela morte. “Preciso de alguém que esteja no quarto ao lado”, diz Martha, que viveu várias guerras como repórter do NY Times e agora deseja partilhar com alguém esse último campo de batalha.

A eutanásia é um tema cinematográfico há certo tempo. Quem não se lembra da emoção latente de A menina de ouro, do diretor Clint Eastwood, que ganhou o Oscar de melhor filme em 2005? Em 2010, o diretor Barry Levinson levou às telas a história do Dr. Jack Kevorkian (interpretado por Al Pacino), médico estadunidense que ficou conhecido por infringir a lei americana e auxiliar mais de 100 pessoas com a eutanásia. Além destes, há ainda Mar adentro, Amour, Blackbird – uma lista não tão pequena.

Recentemente, no dia 23 de outubro, choramos a perda do poeta e letrista Antonio Cicero, que decidiu submeter-se ao procedimento de morte assistida. Ele deixou uma carta dizendo que a vida, após o Alzheimer, havia se tornado insuportável e que, assim como tinha vivido com dignidade, esperava também poder partir dessa forma. Martha, a personagem de Nunez e de Almodóvar revela algo parecido: “não entrarei em uma angústia humilhante”.

Ninguém sabe o que é a morte. Conhecemos apenas o medo e o luto, efeitos da iminência ou da realidade da perda. Mas o que é a perda para cada um? Ausentar-se de si mesmo, morrer em vida, sofrer o sem sentido da desesperança – isso não é pior do que despedir-se do mundo para encontrar o desconhecido? Não há resposta universal para essa pergunta e o que O quarto ao lado encena é que a morte, assim como a vida, não deve ser separada da fórmula absoluta da singularidade.

Logo na entrada da casa de Martha, em Nova York, podemos ver uma grande tela de Jorge Galindo, artista plástico espanhol cujas obras já estiveram em outros filmes de Almodóvar, como A pele que habito e Dor e Glória. A obra faz parte da série Flores, pintada pelos dois artistas, em uma parceria improvável e muito bonita. A tela tem as cores de Almodóvar, é claro, mas tem também tons escuros, como o caule preto de uma flor caída. Fico sempre pensando na força que a arte tem de fazer caber em uma peça elementos tão heterogêneos como beleza e morte. Freud, que era um grande realista, talvez não visse tanta diferença entre as duas coisas, como escreve no belíssimo texto A transitoriedade, “uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela”.

Fiquei encantada com a tela de Galindo, quase obcecada pelo seu expressionismo e pensei que esses detalhes fazem parte do livro de Sigrid Nunez, do filme de Almodóvar e da vida, pois “há muitas formas de viver dentro de uma tragédia” – diz Ingrid. As uvas que insistem ao longo da obra, flores de todos os tons, o canto dos pássaros, pequenos objetos coloridos espalhados por uma casa viva, canecas de chá e taças de vinho, duas amigas no banco de uma praça, a história de amor da pintora Dora Carrington pelo escritor Lytton Strachey, os flocos de neve cor-de-rosa, filmes antigos no sofá até amanhecer. Nenhuma dessas coisas é capaz de barrar a morte, a perda, o neoliberalismo ou a ascensão da extrema direita com sua consequente destruição do mundo, mas já não estamos aqui? Nesse mundo de perda e destruição? Então talvez valha a pena olhar de perto as coisas miúdas.

O quarto ao lado traz um Almodóvar mais sóbrio, menos melodramático, intenso, sexual e, preciso confessar que o espanhol me fez falta. Não é o Almodóvar habitual, mesmo que utilize seus elementos clássicos. Mas ainda assim é um Almodóvar, esse diretor que tem a habilidade de nos apresentar a vida como ela é: múltipla, colorida, louca e perecível. Para viver e para morrer é preciso um tanto dessa substância da qual Martha é feita: coragem. Afinal, “o sentido da vida é que ela termina” – assim escreveu Kafka.


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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.

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