Surrealismo, cem anos pela dignidade do sonho e da loucura
A práxis surrealista, a despeito de seus detratores, abriu caminhos à imaginação: repensar o sonho, lembrar dos afetos que nos atravessam e sair da posição passiva da denúncia trouxeram um resultado além da arte. O seu excesso, portanto, foi dar dignidade ao sonho e duvidar da normalidade.
Dali Atomicus, de Philippe Halsman (WikimediaCommons)
Por Douglas Barros
Muitas coisas foram ditas sobre o surrealismo, porém quase nada acerca do quão fundamental foi para a dignidade da loucura. Ele foi a pedra no caminho da história da psicanálise – uma pedra que não a fez tropeçar: uma vanguarda artística que mudou a história da arte, mudou a relação com a estética e que, sem dúvida, abriu espaço para aquilo tolhido no espectro de uma normatividade correspondente à manutenção do capital.
Em 1924, quando o Manifesto é lançado, o movimento surrealista está imerso em um contexto histórico de dúvidas e incertezas. A razão revelava uma face sinistra: a aplicação da ciência para dizimar milhares de pessoas. A guerra estremeceu não apenas o solo das fronteiras europeias, mas o idílio da libertação via racionalidade. A repressão, a hipocrisia e a violência da sociedade burguesa tornaram injustificáveis a fé no progresso.
Então, se apossando da arte, dos arsenais erguidos pela prática psicanalítica de Freud e se orientando para além das fronteiras da formalidade cientificista, o surrealismo se centrava na ideia de que a vida não poderia ser reduzida ao horizonte de merda que a sociedade burguesa impunha (e impõe). Ao fazer isso, o interesse se direcionou para aquilo negado: era preciso resgatar um outro horizonte de possibilidades pela articulação feita entre sonho e delírio. Enfim, era preciso usar a arma da imaginação.
Essa oposição nasce do adoecimento gerado pela crise espiritual de um mundo dominado pela mercadoria cuja rota é a do abismo. Um mundo sem experiência, encontros, presença ou memória; um mundo em que a vida é falseada pela repressão, pela ordem e pela captura de nossos afetos. O que estava em jogo para o surrealista passava pela construção poética e culminava na reflexão sobre o destino da humanidade. Cumpria ao surrealista transpor o protesto para abraçar uma postura revolucionária.
Se o formalismo era algo inscrito na própria reprodução da violência que conduzia o mundo à guerra. Se os discursos normativos, sobretudo na medicina, excluíam a diferença, criminalizavam no “louco” a loucura e buscavam recuperar a utilidade dos vagabundos, o surrealismo era o grito de guerra contra essa adequação forçada. É com esse sentido que a psicanálise é fagocitada por ele.
Na medida que se punha à reflexão sobre aquilo que escapava à lógica formal, ao positivo, ao visualizado no mundo classista, e se tornava um instrumento fundamental para romper com o horizonte excludente e violento de uma repressão sob império do capital, a psicanálise marcava também a possibilidade de pensar na negatividade, naquilo que escapava ao que estava estabilizado numa realidade sustentada pela violência e pela destruição. Ao lado da psicanálise, porém, estava a mais contundente crítica ao modo de vida imperante: o marxismo.
As armas surrealistas e seu contexto
A arma surrealista utiliza como pólvora Marx e Freud. O primeiro como teórico da liberdade social e o segundo como teórico da liberdade individual, uma experiência simbiótica que questionava de maneira radical o status quo por meio de uma poética vertiginosa. É assim que Breton, o líder dos surrealistas, define seu programa: “A atitude realista é fruto da mediocridade, do ódio, e da presunção rasteira. É dela que nascem os livros que insultam a inteligência.”
Vejamos bem que se aposta numa experiência que desafia a realidade para abrir caminhos à liberdade pulsional do indivíduo, que traz a quebra dos valores da cultura capitalista. Quando hoje olhamos pelo retrovisor da história, os anos 1920 do século passado é um momento em que se vive de maneira radical a crise do iluminismo. A ciência, conivente com a destruição das guerras, utilizava o campo de combate como teste; o saber instituído não prestava serviços à humanidade, mas ao modo de exploração, e, de certa forma, os surrealistas percebiam que a intelectualidade legitimava a ação do conservadorismo.
Por isso, em meio a um contexto marcado por guerras, pela recolonização da África, pelo crescimento do fascismo e dos nacionalismos, o surrealismo surge como uma alternativa vigorosa diante de um horizonte tenebroso. Num campo aberto à experimentação estética, trazer a liberdade em relação aos desejos traça sua afinidade com a arte.
Buscando no inconsciente uma forma de fazer a acusação a esse mundo sombrio, os surrealistas nos ofertaram uma denúncia sem passividade: uma revelação que fazia do mundo dos sonhos e da “loucura” o lugar distinto para uma reviravolta que levasse a uma transformação das pessoas e da sociedade.
A dialética do surrealismo
Por tudo isso que disse acima, percebe-se que a dialética surrealista se detém entre liberdade individual com Freud e a liberdade social com Marx. A partir dessa proposição, o conteúdo de suas obras revela aquilo que escapa à vigília, vinculando-se ao negativo. O que resiste à vida concreta é central. A obra de arte torna-se um ponto de ruptura.
Expondo a nudez da existência do homem, para despojá-lo de toda a parafernália da cultura de massa, a arte revela outro sentido à vida. Se a vida, tal como inscrita no capitalismo, é uma negação das potencialidades humanas, pressupondo uma realidade inerte ligada somente à valorização do valor no mundo dominado pela mercadoria, a poética artística deve ser aberta para outro mundo possível a partir do desrecalque.
Privilegiando, portanto, o sujeito, e sua possibilidade de negar a negação que a vida capitalista impõe, o surrealismo abre campo à imaginação e dá dignidade aquilo que foge ao estabelecido. A obra de arte mais revolucionaria será, portanto, a mais esotérica, ou seja, precisa colocar o sujeito como um negativo à vida mercantilizada. E, assim, o surrealismo, apostando em reconduzir-nos à liberdade individual, apreende uma possível resposta contra a vida de massas do capitalismo.
O curioso da empreitada é que é no inconsciente – naquilo que Freud apreendeu como um sistema próprio à vida subjetiva (porém, negado) – que os surrealistas observam a possibilidade de uma forma de negação da vida burguesa. Esse é, para eles, o caminho para uma liberdade que supere as repressões consolidadas por uma tradição que reforça a dominação e a exploração. Claro, a liberdade individual sem a social é uma armadilha.
É impressionante que, com esse ímpeto avassalador, os surrealistas se tornam os principais divulgadores da psicanálise na medida em que abriam caminhos ao sonho e repensavam os itinerários dos significados da loucura. Essa apropriação tratou de pensar em pôr em prática uma outra realidade possível. Esse caráter, que implicava de saída uma revolução no sentido da vida, se torna fundamental. Para romper com a passividade da denúncia, já se adotava a ideia de recriar um inconsciente recusando a sociedade do capital.
Questão de método
A recusa surrealista, expressa nas obras artísticas, organizava uma ação poética a partir de uma aposta no irreal: a práxis surrealista ressaltava os conteúdos do inconsciente para liberá-los da repressão. E para isso, vejam que curioso, estabeleceram o método do automatismo psíquico como condição metodológica. Ou seja, para aqueles habituados com o jargão da psicanálise, a ideia de associação livre – proposta por Freud no dispositivo clínico – é transfigurada em automatismo psíquico como técnica artística.
No Primeiro manifesto (1924) temos uma descrição do que ela significa: “façam com que lhes tragam o necessário para escrever depois de se terem acomodado no lugar mais favorável, façam abstração do seu gênio, das suas capacidades e das dos outros. Escrevam rapidamente, sem um tema predisposto, tão rapidamente a ponto de não pararem e não serem tentados a reler. A primeira frase sairá sem maiores esforços: é verdade que a todo instante há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente que só pede para ser exteriorizada. É um tanto difícil pronunciar-se a respeito do sucesso da segunda frase”.
Fica evidente que esse método é uma tentativa de reproduzir a associação livre só que se dedicando à organização de uma poética. A liberdade desse exercício, organizado a partir de uma imersão no discurso psicanalítico, tem como finalidade abrir caminhos à ação política. Os surrealistas intuíam que o conteúdo inconsciente, liberado na prática estética, não era por si revolucionário, mas a aposta estava noutro lado: a liberdade individual, ao romper com a repressão burguesa, abria caminhos à transformação do sujeito e, por isso, à possibilidade de transformação social.
Vejamos, portanto, que há um profundo sentido de formação na ação surrealista. Formação estética no sentido clássico do termo, ou seja, schilleriano. Tendo alcançado a liberdade individual – rompido com as repressões do princípio de realidade burguês –, por meio de um ávido exercício de abertura ao inconsciente, a liberdade social poderia acender o horizonte. A obra artística é, portanto, um instrumento não de construção, nos termos da cultura monopolista, mas de destruição dos valores vigentes e de iluminação da meta revolucionária pelo desrecalque.
Louis Aragon, que esteve desde o início ligado ao surrealismo, em sua obra, chamada tratado do style (1928), fala sobre essa iluminação da meta revolucionária ao explicar a importância do “fundo” de um texto surrealista. O método serve como instrumento de libertação dos conteúdos reprimidos pela cultura capitalista: a forma – organizada pela autonomia estética – será utilizada como ponte para fazer emergir, pelo automatismo psíquico, o inconsciente.
Para capturar essa questão, da forma surrealista, se faz necessário entender que ela está dissociada de qualquer lógica formal. Na experiência estética surrealista se busca algo livre do aparato da monopolização, balizada pela ideia de uma realidade translúcida, que deve eternamente se reproduzir. O surrealismo rompe com a realidade por ver nela algo morto cujas cadeias aprisionam nossa imaginação. É exatamente por isso que os conteúdos mobilizados pelo automatismo, apesar de estarem na atmosfera de repressão, podem ser subvertidos.
E, assim, livre do domínio consciente, a figuração pictórica buscará uma imagem surrealista. O interesse é por realidades afastadas do dado sensível tentando libertar a imaginação de sua comodidade. Nesse sentido, como salienta Mario De Micheli, o surrealismo: “parte de um princípio básico, o da tomada de consciência da ‘traição’ das coisas sensíveis: as coisas não dão mais emoção e consolo ao homem, são fixadas na escravidão de uma sociedade corrompida”.
Como dirá Lautréamont, o encontro casual de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa cirúrgica remete ao mundo onírico, lugar preferencial que a arte surrealista encontra seus conteúdos, campo da verdade efetiva liberta de uma realidade estilhaçada. Assim, a intenção de desmontar o princípio de identidade formal, organizado por uma objetividade tal como é, procura no inconsciente a figuração dos objetos estéticos tal como podem ser. Com esse impulso renovado à imaginação, abre-se o horizonte para o reprimido: aquilo tido como louco e o sonho esquecido serão as pontas de lança da afirmação surrealista.
O inconsciente é então esse impulso criador para além das conexões formais. Arranjado à criação artística, por ele se há a expansão da imaginação que nos desafia a ir além do posto. A apropriação da psicanálise busca, portanto, o rompimento das faculdades normativas que visam reduzir a imaginação aquilo que é visto como única realidade possível. Eis como o questionamento acerca da loucura e do patológico se coloca.
Esse fato é inegável: o surrealismo se constrói na relação com a psicanálise. Salvador Dalí, que inclusive conhece Freud – a despeito de sua traição ao movimento – foi seu grande divulgador. Conhecedor da obra freudiana, o pintor espanhol usa o método paranoico – crítico. Com ele, não só reafirma a forma – entendida como um princípio vazio reprimido que adormece no inconsciente como algo autônomo e, portanto, capaz de romper o círculo fechado da realidade – como ainda estabelece sua autonomia.
Esse caráter duplo reforça a dialética surrealista: negando a lógica formal da correlação entre a pintura e aquilo que é, Dali busca nos simples objetos cotidianos a inspiração que representa o desejo: aquilo que há a mais nesses objetos é fundamental. Ou seja, ele usa-os como pontes para atravessar a repressão de seus conteúdos. Por isso, o relógio não é só um relógio, uma borboleta não é só uma borboleta.
Que ele tenha sido amigo de Lacan, e que provavelmente a ideia do significante parta do surrealismo, não é mero acaso. Esses pequenos objetos cotidianos se tornam significantes que dão à obra artística sentidos à experiência estética advinda da vivência do pintor. Então, livre da repressão do significado ligado ao modo de vida vigente, esses objetos agora mostrados a partir do significante se ligam à imagem inconsciente. Eles trazem a autonomia subjetiva do indivíduo quando expressam algo que está para além do próprio objeto, ou seja, sua vivência em relação aos desejos.
Cem anos depois
O surrealismo foi uma tormenta para a boa consciência europeia, desafiador da moral e dos bons costumes, o seu escândalo foi arrebatador à imaginação. Por aqui, ele nunca foi bem visto, nossos modernistas – bons burgueses ilustrados – sempre tiveram desconfiança e repulsa aos modos escandalosos dos surrealistas. Um exemplo basta: Mario de Andrade se escandalizou ao ver um surrealista cuspir em padres na praça da Sé. A práxis surrealista, entretanto, a despeito de seus detratores, abriu caminhos à imaginação: repensar o sonho, lembrar dos afetos que nos atravessam e sair da posição passiva da denúncia trouxeram um resultado além da arte. O seu excesso, portanto, foi dar dignidade ao sonho e duvidar da normalidade. Cem anos depois, resta pouco dessa insurgência, mas ela viceja em cada descontentamento que temos com essa realidade de merda que é a vida contemporânea.
Na última década, um termo tem se proliferado de maneira espantosa no discurso político. Moralmente carregado e lançado a torto e a direito em disputas de internet, mesas de bar, espaços acadêmicos e palanques políticos. Mas, afinal, o que é identitarismo? Neste livro, o psicanalista Douglas Barros propõe uma interpretação original do fenômeno. Para ele, o termo nomeia sobretudo uma forma de gestão da vida social contemporânea que engole esquerda e direita.
Emblema maior do desaparecimento da Política (com p maiúsculo), o identitarismo é lido como um sintoma do século XXI. Implodindo a troca de acusações entre “identitários” e “anti-identitários”, Barros provoca: “o processo de identitarização da diferença se inicia com o colonialismo. É o colonizador europeu o primeiro identitário da história moderna.” Com um olhar da periferia do capitalismo sobre a colonização, o autor revisita, pelo prisma da identidade, o surgimento e desmonte do sujeito, do Estado e do capitalismo modernos para jogar luz sobre os impasses da política contemporânea, marcada pela proliferação de bolhas identitárias, em que as pessoas se veem obrigadas a desenvolver identidades fragmentadas como resposta, mesmo que inconsciente, à quebra de laços sociais e o endurecimento do neoliberalismo nas relações econômicas.
Articulando filosofia, teoria social e psicanálise, Douglas Barros apresenta uma análise que reconhece a necessidade histórica das lutas rotuladas como identitárias, sem perder de vista as disputas e capturas a que estão sujeitas no atual estágio de acumulação capitalista. Nos termos de Deivison Faustino, “uma valiosa contribuição a um debate novo, que pela primeira vez, encontra uma análise à altura.”
O livro de Douglas Barros tem prefácio de Rita von Hunty, orelha de Deivison Faustino, quarta capa de Christian Dunker e Maíra Moreira Marcondes e capa de Mateus Rodrigues.
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Douglas Rodrigues Barros é psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor filiado ao Laboratório de experiências coloniais comparadas, ligado ao Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor na pós-graduação em filosofia da Unifai. Investiga principalmente a filosofia alemã conjuntamente com o pensamento diaspórico de matriz africana e suas principais contribuições teóricas no campo da arte e da política. Escritor com três romances publicados, também é autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra) e Hegel e o sentido do político (lavrapalavra).
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