O pensamento lacaniano, a política radical e o compromisso com a prática realmente existente
Em entrevista ao Terrabayt, o filósofo e psicanalista Gabriel Tupinambá responde a perguntas sobre sua jornada intelectual do cinema à filosofia e à psicanálise, sua abordagem sobre organização política, a recepção do trabalho de Alain Badiou e a psicanálise lacaniana em “O desejo de psicanálise: exercícios de pensamento lacaniano”, que lança este mês pela Boitempo.
Gabriel Tupinambá
Ege Çoban entrevista Gabriel Tupinambá
Nesta entrevista, o filósofo e psicanalista brasileiro Gabriel Tupinambá, membro do Subconjunto de Prática Teórica (SPT) e Coordenador de Estratégia Social do Instituto Alameda, responde a perguntas de Ege Çoban sobre sua jornada intelectual do cinema à filosofia e à psicanálise, a influência de sua formação como intelectual na “periferia”, sua abordagem sobre organização política, a recepção do trabalho de Alain Badiou e a psicanálise lacaniana em O desejo de psicanálise: exercícios de pensamento lacaniano, que terá live de lançamento hoje (28/10) às 19h30 na TV Boitempo, com Gabriel Tupinambá, Christian Dunker, Carla Rodrigues, Carol Leão, mediação de Maikel Silveira:
Ege Çoban – Como em outros lugares, nossos leitores também se interessam bastante por biografias intelectuais. Você poderia nos contar a história de sua jornada intelectual, desde o início no cinema até seus interesses em filosofia e psicanálise?
Gabriel Tupinambá – Posso certamente contar uma história, pelo menos uma versão engraçada dessa jornada. Digo isso porque, quando eu tinha uns 14 ou 15 anos minha ideia era me tornar padre ou monge! Não me lembro se acreditava em Deus ou não (tenho a impressão de que mudava de ideia toda semana), mas lembro que uma amiga da escola me escreveu um bilhete dizendo que estava impressionada com o fato de eu estar tão envolvido com questões relativas a Deus, embora fosse ateu. Então, estranhamente, talvez eu quisesse me tornar padre… para impressionar garotas? Considerando os paradoxos gritantes que isso acarretaria, rapidamente mudei para a segunda melhor maneira que consegui pensar na época para falar simultaneamente com Deus e com as mulheres, que era a poesia – e originalmente fiz meus estudos de graduação em literatura, antes de desistir.
Foi só depois disso que decidi estudar cinema, mas mesmo assim eu nunca fui realmente um cinéfilo. No entanto, eu tinha muita experiência em trabalhar sob um olho dominador, invisível e que tudo vê, portanto, é muito provável que a escolha pelo cinema tenha sido uma tentativa de continuar tratando das minhas tribulações com sexo e Deus! Mas acredito que o tempo que passei dirigindo vários curtas-metragens, por cerca de três ou quatro anos, funcionou como uma crítica prática às crenças da minha adolescência: ele me expôs aos custos reais e ao trabalho coletivo necessário para construir o encantamento e fechamento do mundo cinematográfico e condicionou a existência de qualquer “visão de lugar nenhum” ao trabalho muito intrincado que é necessário para transformar vários “planos” parciais em uma única perspectiva fílmica coerente. Também consolidou uma paixão por empreendimentos coletivos complexos que submetem a divisão sócio-técnica do trabalho a um propósito que vai além de qualquer função instrumental – algo que ainda acredito que separa o cinema de qualquer outra forma de arte e que ajuda a explicar por que ele foi uma parte tão crucial dos experimentos comunistas no século XX.
Depois de dirigir uma série de curtas-metragens terríveis – e perceber que eu tinha mais talento para lidar com o processo de produção coletiva do que com as questões estéticas do cinema – desisti de minha já improvável carreira como diretor. Acho que, de certa forma, o cinema se dividiu em diferentes caminhos depois disso: o lado da produção coletiva motivou meu interesse em organização política, a questão da realidade das aparências influiu no meu interesse em filosofia, enquanto a dinâmica do olhar e do desejo foi encontrar um lugar na psicanálise.
A filosofia, a psicanálise e a política tornaram-se, então, os três principais fios condutores de minha vida intelectual, profissional e prática: fiz meu mestrado e doutorado estudando as relações entre Hegel, Lacan e Marx, de uma forma muito zizekiana; meu engajamento político também foi muito influenciado por uma sensibilidade psicanalítica e por meu engajamento com a recente recuperação da “ideia de comunismo” por filósofos como Badiou, Rancière etc; e, por fim, quando comecei a trabalhar como clínico, também tentei entender que tipo de luta política era inerente à minha categoria profissional – algo que, devido ao estranho status epistemológico da psicanálise lacaniana, acabou exigindo um pouco de filosofia para ser compreendido.
EC – O Brasil tem sido um país importante por suas contribuições às ciências sociais e à teoria crítica (mesmo que os trabalhos sobre a influente “tese da periferização” ainda não tenham sido traduzidos). Você poderia descrever se e como o fato de vir do Brasil afetou sua sensibilidade teórica?
GT – Uma parte que está faltando na história que contei – embora essa ausência seja, por si só, reveladora – é que eu nasci em uma família branca de classe média alta. Meus pais vieram de famílias de imigrantes pobres, mas meu pai era um empresário bem-sucedido e eu cresci em um ambiente social muito protegido e isolado entre os “novos ricos”. Hoje, acho que, devido ao passado difícil de meus pais, eles nunca conseguiram se encaixar totalmente na cultura das classes mais altas, mas também não se encaixavam muito no lugar de onde vieram, por isso minha irmã e eu crescemos bastante isolados. Se isso significou que fui uma criança e um adolescente muito alienado, também significou que nunca me acostumei com a maioria dos rituais sociais e valores compartilhados que servem para justificar e facilitar nossa posição social. Isso acabou sendo uma coisa boa, pois esse tipo de “idiotia social” me tornou um pouco mais atento à complexidade do mundo quando saí daquela pequena bolha familiar.
No entanto, grande parte da minha vida foi facilitada pela cor da minha pele, pelo meu gênero e pelo fato de eu ter sido criado em uma família rica, de modo que demorei muito tempo para me deparar com a necessidade de tomar uma decisão efetivamente política. Acho que foi o tempo que passei estudando no exterior que acabou me confrontando com a necessidade de fazer uma escolha: investir meu tempo e energia em uma carreira acadêmica que provavelmente preservaria meu estilo de vida, me daria algum reconhecimento e potencialmente me levaria para longe do Brasil, às custas de me sentir absolutamente desconectado da realidade, ou concentrar meus esforços em colocar todos os recursos que eu tinha, intelectuais ou não, a serviço do que parecia dar à vida significado e propósito reais. No entanto, não foi uma decisão consciente: eu era infeliz morando em Londres, nunca tive tanta liberdade na vida, mas sentia que nada importava, era terrível – de certa forma, eu já havia decidido que estar o mais próximo possível das contradições da minha vida valia mais a pena do que buscar uma vida que as afastasse da vista. Até chegar a essa conclusão, eu tinha apenas uma espécie de sensibilidade moral em relação ao sofrimento alheio e à desigualdade social, algo que não exigia de mim nada mais do que uma ética pessoal e uma grande capacidade de reprimir o que eu realmente via ao meu redor. Portanto, só depois que voltei ao Rio é que tive certeza de que queria me organizar politicamente. De qualquer forma, tudo isso diz respeito a uma espécie de jornada pessoal – e eu diria que, no geral, a maneira como isso tudo afetou a minha sensibilidade teórica e política foi negativa, isto é, como hábitos de pensamento e formas de entender a mim mesmo e aos outros que atrapalham a formação de ideias realmente úteis e um tino de estratégia política. Coisas que tenho de trabalhar constantemente, de uma forma ou de outra, para parar de ficar obcecado com meus próprios problemas e me concentrar em preocupações políticas concretas.
E acredito que foi somente depois de me organizar politicamente que o Brasil se tornou uma fonte mais produtiva de insights. Quando abordado com um ponto de vista crítico e político, este país confirma empiricamente, repetidas vezes, que a periferia do capitalismo é uma espécie de laboratório do futuro – a chamada “tese da periferização”, proposta por Chico de Oliveira e Paulo Arantes, à qual você aludiu anteriormente. Agora, a questão é que essa não é simplesmente uma tese que afirma que podemos ver as coisas com mais clareza a partir da periferia – também não há grande iluminação por aqui! O que acontece é que a obscura “matéria brasileira”, como diz Roberto Schwarz, nos coloca diante de uma espécie de enigma prático e teórico permanente. É como se a história tivesse dado um passo maior que as pernas quando as elites decidiram transformar esse território continental em um único país – e então essa espécie de nação natimorta, por conta desse mesmo fracasso, revelou-se ainda mais plástica e acolhedora para as necessidades do capital e seus padrões polimórficos de acumulação. Bastante paradoxal! E é o esforço de frequentar essa “matéria escura”, que se expressa por meio de estranhas dinâmicas sociais, econômicas e políticas, que muitas vezes leva a vislumbres de fenômenos que mais tarde acabam por assolar as chamadas nações capitalistas “avançadas”. Essa certamente não é uma característica singular do Brasil – o que leva, na verdade, ao aspecto político mais produtivo de viver e pensar os impasses brasileiros, que é o tipo de solidariedade que tais enigmas descortinam com a luta e o ponto de vista de outros militantes e movimentos de países igualmente (ou até mais) periféricos.
EC – Você vem trabalhando com a questão da organização há muito tempo, desde artigos como “Libertando Pensamento dos Pensadores” a textos mais recentes como “Contribuição à Critica da Organização Política”, escrito pelo coletivo Subconjunto de Prática Teórica, do qual você faz parte. Você poderia nos contar sobre as origens do SPT e como sua abordagem a essa questão mudou ao longo dos anos?
GT – A questão da organização coletiva surgiu como uma questão central em minhas investigações teóricas e na prática política como uma espécie de obstáculo. No início de meus estudos de mestrado, alguns amigos e eu decidimos estudar Lacan juntos. Mantivemos um pequeno grupo de estudos por muitos anos, chamado Pensée. Naquele momento, já estávamos chegando a Lacan com muitas outras influências – especialmente a Escola Eslovena de psicanálise – e, portanto, com algumas questões políticas em mente, e isso certamente desempenhou um papel importante na forma como lemos os escritos lacanianos. Por exemplo, tínhamos uma tendência a nos concentrar muito no que Lacan pensava sobre a lógica coletiva em seus primeiros trabalhos – como em seu texto clássico “Tempo Lógico e a Asserção da Certeza Antecipada” – e passamos muito tempo tentando entender seus experimentos institucionais posteriores – como a revista Scilicet, a estrutura dos “cartéis” etc., coisas que Lacan desenvolveu quando fundou sua própria escola de psicanálise. Não só isso, mas também decidimos implementar dispositivos semelhantes em nosso próprio grupo de estudo, como protocolos diferentes para leitura, escrita e crítica mútua. Acho que depois de três ou quatro anos escrevemos cerca de mil páginas de anotações sobre mais de dez dos principais textos de Lacan. E, além dessas anotações, também escrevemos algumas “proposições” básicas – em um estilo bem francês, minimalista e denso – sobre como estruturar um coletivo de pesquisa radical (como o que achávamos que éramos).
Bem, mais ou menos na mesma época em que estávamos elaborando essas ideias, eu me filiei a um partido socialista e estava tentando estabelecer uma espécie de centro de formação teórica de militantes no Rio. Assim, usei as proposições do Pensée – que tratavam da combinação de como se estuda teoria e como se organizam esses grupos de estudo – como base para escrever o projeto original do que mais tarde se tornaria o Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia. Uma observação rápida: a ideia era chamar o coletivo de “Círculo” tanto para recuperar os grupos de autodidatismo dos tempos soviéticos, como também para propor arrogantemente que continuaríamos o projeto “Circulo de Epistemologia” dos lacanianos-maoístas dos anos 1960 na França!
Ainda assim, o CEII foi planejado, originalmente, para ser um local de estudo, uma espécie de escola de formação de um partido. E isso não funcionou de jeito nenhum. Em primeiro lugar, porque eu era tão ridiculamente ingênuo e arrogante politicamente que não tinha ideia do tipo de confusão em que havia me metido, achando que um partido socialista atual adoraria ter um novato inexperiente organizando um monte de aulas sobre novas teorias e ideias comunistas, revisando e criticando as práticas políticas de esquerda. Devido à minha falta de experiência, ao público militante muito jovem que atraímos inicialmente e à proposta original de atuar como um instrumento do partido, o CEII não se aliou a nenhum grupo político específico e, portanto, evidentemente, todos desconfiaram profundamente do grupo desde o início! Conseguimos permanecer dentro do partido, aprendendo lentamente a lidar com essas tensões, por cerca de dois anos, quando finalmente decidimos que deveríamos nos tornar um coletivo autônomo, embora conexões duradouras com militantes e grupos dentro do partido tenham sido formadas e perdurado por muito tempo depois disso.
Mas também tivemos um segundo fracasso logo no início – um fracasso muito mais produtivo, que também ocorreu de forma mais endógena. O CEII deveria servir como um centro de discussão militante de ideias comunistas, mas logo no início ficou claro que apenas alguns militantes podiam participar das reuniões devido aos custos de transporte, o horário de trabalho, ou por sentirem que esse tipo de ambiente não era para eles, devido à pressão política de seus diferentes grupos e vários outros motivos. Era simplesmente incoerente falar sobre ideias igualitárias e não falar nada sobre o acesso desigual ao nosso próprio espaço. Portanto, ainda nessa fase inicial, decidimos inverter as coisas: em vez de nos organizarmos para estudar, decidimos concentrar nosso estudo na busca de melhores formas de organização. Acho que foi aí que o CEII de fato nasceu coletivamente – porque essa inversão não foi produto das ideias de nenhuma pessoa em particular, ela veio diretamente dos impasses que havíamos vivenciado coletivamente ao tentar estabelecer esse espaço. Isso foi por volta de 2013.
Também vale a pena observar que nossa solução para esse segundo problema também ofereceu um novo caminho para lidar com o primeiro, referente às tensões dentro das organizações de esquerda e entre elas. Acho que essa foi nossa primeira hipótese teórica coletiva, nascida de nossos impasses práticos: percebemos que as questões organizacionais atravessam diagonalmente as divisões ideológicas dentro da esquerda, oferecendo assim uma maneira de navegar por essas tensões ao mudar o foco das questões de princípios e teorias abstratas para a dinâmica concreta e a experimentação coletiva. Depois que nos tornamos um coletivo autônomo, colocamos esse princípio à prova, e foi incrível ver que o CEII poderia servir como um espaço útil para militantes vindos de partidos comunistas, sindicatos, grupos anarquistas, militantes traumatizados por seus espaços políticos anteriores, recém-chegados à política etc. – e essa abertura estava claramente relacionada à nossa capacidade de realizar essa mudança de perspectiva.
Tudo isso para dizer que o primeiro texto que você mencionou – “Libertando o Pensamento dos Pensadores“ – foi, na verdade, uma tentativa de sistematizar a experiência política do CEII após anos de envolvimento prático com a questão da organização coletiva. Outros textos foram escritos – por mim e por outros companheiros – mas esse foi o primeiro traduzido para o inglês, eu acho. É um texto relevante para mim porque ele meio que demarca o fim de uma primeira fase teórica na CEII: de 2011 a 2015, costumávamos buscar ideias para organizar e pensar politicamente, especialmente nas obras dos filósofos associados à recuperação da “ideia de comunismo” – Žižek, Badiou, Rancière etc. E eles são muito importantes para este texto, onde eu estava realmente tentando levar o trabalho deles o mais longe possível, tentando ver se eles poderiam nos ajudar a realmente explicar nossa prática e estratégia políticas. Acho que a conclusão a que chegamos foi que, mesmo que houvesse ideais importantes nesses trabalhos, esses pensadores não poderiam nos ajudar a desenvolver uma nova teoria da organização. Portanto, precisávamos começar a desenvolver nosso próprio enquadre teórico sobre o que tornava a CEII possível e útil politicamente – e foi assim que nasceu o Subconjunto de Prática Teórica: como um “subconjunto” da CEII. Seu principal objetivo era estudar nossa própria prática e seu método foi pego de empréstimo das técnicas de estudo do Pensée, reunindo os interesses de pesquisa particulares de cada pessoa com o objetivo de desenvolver um programa de pesquisa coletivo.
Entre 2016 e 2020, o SPT trabalhou como um grupo de pesquisa dentro do Círculo. No entanto, em 2020, o CEII estava passando por uma crise: nosso foco sempre foi a crítica interna das práticas esquerdistas e uma abordagem muito prática e experimental das ideias organizacionais, mas com a ascensão da extrema direita no Brasil, as pessoas tendiam a preferir usar seu escasso tempo livre para se envolver em grupos políticos mais combativos e mesmo aqueles que permaneceram no CEII não tinham mais tanto tempo e energia para continuar. Também chegamos à conclusão de que a forma organizacional específica da CEII havia se esgotado – portanto, a questão não era apenas a pressão externa de uma nova conjuntura, mas a nossa própria incapacidade de nos adaptarmos às novas condições. Assim, decidimos dissolver o coletivo em janeiro de 2021.
O SPT, no entanto, continuou seu trabalho – e começou a reunir militantes e pensadores provenientes de diferentes movimentos e experiências políticas, tanto no Brasil quanto no exterior. Isso ampliou radicalmente nossa tarefa, pois não estávamos mais tentando teorizar os resultados práticos da experiência da CEII, mas um conjunto muito mais amplo de experiências, reunidas por nossa nova composição política. Acho que esse momento foi retratado no outro texto que você mencionou, intitulado “Contribuição para a crítica da organização política”. Sinto que foi um período de transição porque também estávamos um pouco à deriva teoricamente, presos entre debates filosóficos e questões mais políticas, ainda tentando encontrar uma maneira de nos unirmos em torno de um projeto de pesquisa que contemplasse as pessoas que estávamos reunindo e o tipo de trabalho que queríamos fazer no futuro com outras organizações políticas.
Por fim, eu diria que depois de alguns anos nesse novo arranjo, talvez por volta do início de 2023, ocorreu uma nova mudança, pois conseguimos finalmente estabelecer os princípios básicos de uma abordagem sistêmica real da política que agora queremos construir e sistematizar adequadamente. Textos como “Working Through Political Organization” e o “Atlas of Experimental Politics” pertencem a esse período atual – bem como uma nova relação com organizações políticas em todo o mundo: começamos a realizar reuniões para discutir processos políticos em andamento com diferentes militantes e, muito recentemente, estabelecemos no Rio de Janeiro, em parceria com o Instituto Alameda, o Espaço Comum de Organizações, coletivo onde realizamos mensalmente enquetes militantes com diferentes grupos políticos, testando também as ideias do SPT.
EV – Uma das partes mais interessantes da sua pesquisa é em relação a Badiou. No SPT, vocês desenvolveram um interesse pela “fenomenologia objetiva” por meio da leitura do livro Lógicas dos Mundos, que levou ao manuscrito do A Primer on Political Phenomenology, escrito por Yuan Yao e por você. O que vocês acham útil em Badiou e em Logics of Worlds para o seu próprio desenvolvimento teórico?
GT – Acho que preciso começar minha resposta dizendo que (1) nunca houve um consenso dentro da SPT de que a obra de Badiou é necessária para nós ou que ela nos fornece uma orientação geral e (2) muitas pessoas no SPT ainda não se importam muito com ele não. Pessoalmente, eu sou um Badiouiano “hardcore” – mas, por essa mesma razão, tenho três tipos de problemas com seu trabalho:
(A) Problemas com os aspectos de sua filosofia que considero distorções de cunho pessoal do filósofo e que, portanto, são, em última análise, incompatíveis com sua própria teoria – eu destacaria aqui suas reflexões sobre sexualidade e gênero, ou algumas de suas conclusões sobre o que deve significar “política à distância do Estado”, etc. Acho que esses são preconceitos pessoais que foram generalizados para posições pseudoteóricas que se confundem com o restante de seu projeto;
(B) Problemas com aspectos contingentes de seu trabalho, que não são em si problemáticos, mas sim limitadores ou anacrônicos, como sua escolha irritante de focar quase todos os seus exemplos e interlocuções (com exceções importantes, é claro) em pensadores, artistas, matemáticos, etc, franceses, e alguns efeitos particulares de seu estilo de escrita e didática – não há nada inerentemente errado com essas coisas, e elas não podem ser substituídas por uma abordagem perfeitamente universal e plural, mas essas coisas também atrapalham a recepção e a compreensão do que é crucial em seu trabalho, levando a uma série de problemas que, muitas vezes, só são remediados contrastando esses fatores contingentes contra o rigor formal das construções;
(C) Problemas relacionados a como estender seu trabalho e abordagem para abranger questões e domínios que ele não abordou diretamente – esses são, obviamente, os melhores problemas, e acho que há muito poucos filósofos que foram tão generosos a ponto de conceder às pessoas acesso à “sala de máquinas” de sua teoria, para que possamos ajustá-la e atualizá-la, da maneira que ele fez ao colocar efetivamente o formalismo matemático no centro de suas construções conceituais. Por causa disso, se for possível encontrar novos resultados matemáticos que sejam consistentes com as teorias formais que ele mobilizou, e se for possível estender sua abordagem interpretativa geral a essas novas afirmações, ninguém – nem mesmo ele! – poderia realmente alegar que esses acréscimos não são, na verdade, parte do mesmo projeto. Badiou abriu mão do monopólio teórico de sua própria obra ao colocar o conceito sob os cuidados da matemática.
Novamente, essa pode ser apenas a minha opinião pessoal, já que o pensamento de Badiou é muito caro para mim, mas acredito que – conscientemente ou não – a SPT forneceu uma das melhores críticas ao trabalho filosófico de Badiou até hoje. É muito possível interpretar nosso trabalho como uma espécie de revisão “materialista” de Badiou. Entretanto, não podemos levar a analogia com a “inversão materialista” de Hegel feita por Marx tão a sério, porque Badiou não é um idealista, longe disso. Suas limitações têm mais a ver com o foco de seu trabalho – e, francamente, se eu fosse um professor francês com a chance de contribuir para a reformulação da filosofia ocidental moderna, eu também me concentraria nas questões do Ser, da Aparência, da Verdade, do Absoluto! – de modo que qualquer crítica a essas limitações não deve, portanto, “inverter”, mas “expandir” suas ideias a fim de demonstrar que algo importante e consistente com seu sistema permaneceu fora de seu alcance, por razões decorrentes de problemas do tipo A, B e C, descritos acima. Talvez seja melhor dizer que nossa crítica a Badiou tem a ver com o desenvolvimento de uma abordagem “metapolítica” – isto é, uma maneira de levar a sério o pensamento intrínseco aos processos políticos – que é, ao mesmo tempo, mais concreta e interna à política contemporânea do que a dele e, paradoxalmente, por essa razão, também mais compatível com seu próprio sistema filosófico. Estou me gabando um pouco, mas tenho muito orgulho da SPT por isso, mesmo que não ache que seja a única maneira de entender o que estamos tentando fazer – nem mesmo a maneira mais produtiva de abordar nosso programa de pesquisa, na verdade.
Com essa longa ressalva, vou falar sobre a influência do Badiou no nosso trabalho. Acho que a resposta vem em duas partes. Em primeiro lugar, há um fio condutor nessa história que antecede qualquer envolvimento específico com o mecanismo formal do “Lógicas dos Mundos” – um arco mais longo que diz respeito o fato de que muitas pessoas no CEII acabaram percebendo que a teoria organizacional que procurávamos estava muito mais próxima da abordagem política do próprio Badiou do que pensávamos inicialmente.
Muitos de nós – eu inclusive! – eram, na verdade, bastante avessos ao seu trabalho no início. Mas essa mudança de opinião não tem nada a ver com os conceitos de “fidelidade” e “evento”, o tipo de coisa em que as pessoas geralmente se concentram: o que ficou cada vez mais claro para nós no CEII foi o compromisso subjacente de Badiou com a ideia de que o mundo social, uma vez filtrado pela organização política, torna-se maior e mais claro – e que isso é, de alguma forma, uma função da construção coletiva concreta que criamos juntos. Isso pode parecer trivial para alguns, mas para mim continua sendo a pedra fundamental da contribuição de Badiou, pois implica, no fundo, uma inversão entre a ciência social e o pensamento político, entre analisar a conjuntura e agir politicamente, entre – em última análise – economia política e organização política, que, na minha opinião, muitas vezes não é explorada ou mesmo compreendida. Em termos muito simples, não conhecemos o mundo social primeiro e depois descobrimos em que política investir e como nos organizar. Em vez disso, a organização política é o meio pelo qual podemos distinguir o que são declarações meramente “verídicas” sobre as situações sociais e o que é que de fato contém alguma verdade na vida social – o que não quer dizer, por exemplo, que a crítica de Marx à economia política não seja parte integrante da luta política: ela deve ser entendida como uma expressão teórica específica de alguns dos resultados de um longo ciclo histórico de lutas contra o capital, lutas que forçaram a lógica do valor a aparecer precisamente porque também estávamos forçando o mundo a mostrar que poderia ser organizado diferentemente.
Agora, essa leitura de Badiou não foi o resultado de sentar com seus livros e simplesmente chegar a essas conclusões. Na verdade, depois de (tentar) ler Ser e Evento e algumas de suas outras obras pela primeira vez, desenvolvi o mesmo tipo de crítica genérica que a maioria de seus detratores (e apoiadores) costuma fazer: “Onde está a economia política? Onde está a negatividade? E a pulsão de morte? E o naturalismo? Onde estão as condições de possibilidade para a subjetividade?”, etc. Foi somente porque primeiro experimentamos, com o CEII, que havia algo sobre a organização política que permanecia incrivelmente subteorizado e que era, na verdade, uma parte obscura porém crucial da militância – reduzindo todos os desafios da liberdade coletiva a efeitos econômicos políticos, a algum conceito metafísico do negativo, à metapsicologia, a algum efeito cognitivo subjacente, etc – que começamos a procurar novas maneiras de nomear e abordar esse excesso político: a maneira como as organizações coletivas existem além daqueles que são organizados, embora dependam deles. E, sem esse problema prático, eu nunca teria mudado de ideia sobre o valor do trabalho de Badiou e nunca teria encontrado energia para estudá-lo de fato e tentar aprender pelo menos o básico da teoria axiomática dos conjuntos, da teoria das categorias e outras áreas da matemática que ele utiliza. Portanto, acho importante destacar que, em primeiro lugar, havia um problema político que motivava o interesse original na obra de Badiou, e esse problema dizia respeito a uma explicação materialista da natureza subjetiva da organização política, sua capacidade de servir como um ponto de vista robusto sobre mundo social e que é irredutível ao ponto de vista de agentes cognitivos individuais etc.
Tomar nota desse primeiro momento é crucial porque, caso contrário, o uso da “fenomenologia objetiva” pelo Subconjunto não fará sentido. Quando começamos a estudar o “Lógicas dos Mundos” coletivamente e percebemos que as ferramentas formais que Badiou estava empregando eram capazes de capturar traços muito básicos da teoria do valor de Marx – e, além disso, que se analisássemos outros aspectos da teoria dos tópos, além daqueles mobilizados por Badiou, poderíamos também expandir a correlação com Marx para incluir muitos outros detalhes das construções d’O capital – isso não era apenas uma boa notícia “científica”, no sentido de que a teoria do topos é, portanto, uma boa candidata para formalizar a teoria econômica. Lembre-se do ponto anterior: a filosofia de Badiou não está interessada em fornecer uma descrição teórica do mundo ou da realidade concreta, ela está apresentando uma descrição muito subdeterminada do esqueleto de situações e mundos – pois só processos concretos podem produzir determinações concretas da realidade. É um projeto comprometido com a ideia de que os processos políticos pensam seus mundos melhor do que a teoria pura – e isso implica que não podemos simplesmente acessar o que importa politicamente adotando algum tipo de visão filosófica “científica” ou imparcial. Assim, quando percebemos que as categorias cruciais da crítica da economia política poderiam ser reconstruídas dentro de um aparato formal e conceitual compatível com essa afirmação ainda mais fundamental sobre o papel especial da organização política, isso significou que poderíamos realmente desenvolver uma gramática comum capaz de transitar entre a economia política e a organização política com a mesma homogeneidade formal e conceitual que Badiou consegue transitar de uma descrição de situações e mundos para a descrição de procedimentos genéricos. Acho que esse foi o cerne da percepção que motivou grande parte do nosso trabalho que levou ao Primer on Political Phenomenology.
Portanto, para resumir, eu diria que o livro Lógicas dos Mundos do Badiou – e a maneira como ele reúne a teoria das categorias e uma brilhante reinterpretação da fenomenologia para combiná-la – foi relevante para nós, em primeiro lugar, porque era compatível com a intuição central relativa à dimensão subjetiva da organização política e, em segundo lugar, porque, ao mesmo tempo em que mantinha essa profunda conexão entre experimentação, pensamento e verdade, o livro proporcionou talvez a maneira mais robusta de sintetizar as categorias de Marx que tínhamos visto até então, com um aumento real de clareza e distinção conceitual de diferentes momentos na construção e – isso é bem recente – também um potencial surpreendente de integração dos processos descritos por todos os três volumes de O capital. Mas o valor desse segundo ponto é infinitamente aumentado por sua compatibilidade com o primeiro ponto, porque ele atesta ainda mais o fato de que uma teoria política comprometida com a ideia de que as organizações políticas oferecem um ponto de vista distinto da realidade social não é uma teoria política que está restringindo seu alcance para se concentrar em ações imediatas ou em uma visão personalizada das forças capitalistas; é, na verdade, uma teoria que pode proporcionar mais clareza até mesmo às construções mais abstratas – na verdade, ela contribui para uma crítica da economia política melhor e mais rigorosa.
Mais tarde, percebemos que a reformulação das categorias marxistas a partir da teoria dos tópos e da “lógica do aparecer”, também nos ajudava a ressaltar com as diferenças e semelhanças da lógica do valor com outras lógicas sociais – o que colocava problemas novos e interessantes, expandindo novamente o trabalho de Badiou para além de seu alcance imediato. E também percebemos que poderíamos ir muito mais fundo em nossa exploração dos diferentes aspectos da organização política do que aqueles abordados por Badiou, porque ele não está tentando trabalhar com as possibilidades de uma conjuntura política específica, mas apenas descrever a dimensão mais genérica e subdeterminada possível de qualquer processo político.
EC – Em um artigo recente para o e-flux, você define a abordagem SPT como um “trinitarismo organizacional”, uma posição que considera os problemas de composição, interação e inteligibilidade como três lados da mesma dinâmica. Quais seriam as condições de possibilidade para uma organização capaz de navegar por essas facetas simultaneamente?
GT – Essa pergunta flui muito bem da anterior. Um dos aspectos realmente incríveis da teoria do topos é como ela reúne álgebra, lógica e topologia – ou seja, ciências das operações, implicações e dos espaços – em uma espécie de equivalência produtiva: as estruturas de ordem definem como analisamos as partes de um espaço e tudo isso corresponde às propriedades lógicas da linguagem desse contexto. Essa equivalência é uma característica crucial da fenomenologia objetiva de Badiou, pois permite que ele mostre que as “juntas” materiais, das coisas lá fora – como as coisas são efetivamente divididas e combinadas – podem acarretar estruturas lógicas locais correspondentes.
Mas, como fica claro em Lógicas dos Mundos, Badiou está tentando fornecer uma estrutura muito geral para a fenomenologia objetiva, algo que ainda está muito distante da descrição de mundos especificamente sociais. Em nossa tentativa de mobilizar suas ideias e aproximá-las de uma teoria concreta de organização, recorremos ao trabalho do pensador soviético Alexander Bogdanov. Assim como Badiou, Bogdanov também propõe uma gramática que se destina a descrever tanto as estruturas econômicas quanto a organização política, em escalas menores e maiores. Ao contrário de Badiou, porém, ele faz isso apoiando-se na ciência natural de sua época. Ao tentarmos conciliar a teoria dos processos políticos de Badiou com a visão mais dinâmica de Bogdanov sobre as organizações, criamos essa terceira abordagem – que chamamos de “trinitarismo organizacional” – para oferecer uma visão mais processual da fenomenologia objetiva da organização coletiva. Essa abordagem afirma que a maneira como as partes de uma organização são compostas (abordagem semelhante à topologia) condiciona a forma como ela interage com outras organizações (estruturas semelhantes à álgebra), o que, por sua vez, condiciona o que se torna inteligível em seu ambiente (a lógica de tudo isso). Composição, interação e inteligibilidade se condicionam mutuamente, o que não é o mesmo que dizer que são descrições equivalentes, exatamente.
Essa proposição teórica nos proporcionou uma maneira mais formal de discutir a organização coletiva, que aproximou Badiou e Bogdanov, e que teve uma utilidade heurística imediata. Não acho que a questão seja tanto como construir organizações que naveguem nessas dimensões, já que nossa afirmação ambiciosa é que qualquer organização já está estruturada dessa forma. Adotar o ponto de vista organizacional é analisar qualquer processo coletivo como sendo constituído dessa forma, o que deve nos ajudar a reconhecer a racionalidade de processos coletivos radicalmente diferentes. Poderíamos entender o trinitarismo organizacional como uma expansão da famosa frase de Marx “o ser social determina a consciência social”, que não é uma proposição de como dirigir processos, mas uma proposta de qual perspectiva esclarece a lógica de fenômenos sociais e políticos.
Nesse sentido, uma pergunta melhor seria sob quais condições uma determinada organização política pode reconhecer a importância política e a “linguagem interna” de outros processos políticos – uma condição para a formação de movimentos políticos maiores, compondo alianças poderosas e redes de solidariedade. E o trinitarianismo organizacional afirma que a inteligibilidade da importância política de outras organizações depende de como um determinado grupo está estruturado. Idealmente, quanto mais heterogênea for uma organização, mais fácil será para ela interagir com diferentes organizações e, ao mesmo tempo, preservar algum grau de inteligibilidade de suas próprias prescrições e visão estratégica.
Esse é um ponto importante porque ajuda a esclarecer o que eu disse antes sobre o fato de SPT propor uma visão metapolítica que está menos distante da política real do que a de Badiou. Em poucas palavras, poderíamos dizer que, enquanto para Badiou o ponto de vista que une diferentes processos políticos não é propriamente político – é o ponto de vista da eternidade, que é mais bem abordado pela filosofia –, para SPT essa questão é uma preocupação comunista prática, o próprio problema estratégico de compor diferentes organizações e movimentos regionais. Podemos até explicar isso em termos da tese da periferização, mencionada anteriormente: a forma como o SPT teoriza isso é distinguindo a periferia como o lugar onde as diferentes lógicas sociais não estão “alinhadas” – as lógicas do valor, da propriedade e da comunidade não formam uma única estrutura normativa coerente – ao contrário do centro, onde esses modos sociais se alinham para formar o que chamamos de “modernidade”. Badiou, nesse aspecto, é um pensador moderno: ele acredita que as condições para a composição política decorrem naturalmente da existência de processos políticos reais, que são, por sua própria natureza, potencialmente conectados, enquanto SPT afirma que, sob condições periféricas, a composição não é um dado – a eternidade precisa ser construída, por assim dizer. Portanto, embora estejamos do lado de Badiou quando ele afirma que o tipo de organização necessária é um problema que cada processo político precisa resolver internamente, por meio da experimentação, não pensamos, como ele parece pensar, que a tarefa política tenha, portanto, terminado: O problema propriamente comunista de como adotar “o ponto de vista do movimento como um todo”, já proposto no segundo capítulo do Manifesto comunista, continua sendo um problema político que exige que construamos meios teóricos e práticos para que as organizações políticas se componham com outras, mesmo que seus interesses e visões de mundo não estejam imediata ou naturalmente alinhados, devido à própria natureza do espaço social capitalista atual.
EC – De Laplanche a Milner, a crítica interna do pensamento lacaniano se tornou uma tradição estabelecida. Como você situaria seu próprio livro, O desejo de psicanálise: exercícios de pensamento lacaniano, em relação a tentativas anteriores semelhantes de outros pensadores?
GT – Não pensei muito sobre isso, mas deixe-me tentar esquematizar algumas das maneiras pelas quais vi a psicanálise lacaniana ser criticada.
(A) Há as críticas diretas que tentam desacreditar Lacan como um charlatão, etc. – o livro de Borch-Jacobsen, Mestre Absoluto, pode ser um exemplo, talvez, mas há muitos textos e comentários de diferentes psicanalistas e psicólogos que apenas apontam que Lacan é incoerente ou obscuro, etc.
(B) Há aquelas que criticam Lacan por permanecer preso a um paradigma conservador, é um tipo de crítica mais política – eu diria que Anti-Édipo se encaixa aqui, pois Deleuze e Guatarri partem de uma posição política e então concluem que a teoria de Lacan fica aquém de alguma forma; há também críticas marxistas a Lacan que também se concentram na cumplicidade da psicanálise lacaniana com o patriarcado e a ideologia burguesa.
(C) Depois, há aquelas críticas que são mais internas à própria psicanálise, que recusam a perspectiva de Lacan porque ela não leva a uma boa prática clínica ou apontando que há fenômenos clínicos importantes que ela não pode explicar e que nos obrigariam a descartar a maior parte dela devido a esses contraexemplos – acho que o trabalho de Laplace se encaixaria aqui.
(D) Há também críticas mais implícitas, quase indiretas, que muitas vezes assumem a forma de defesas de Lacan, mas que exigem apresentações ou sistematizações tão diversas de seu trabalho a fim de argumentar a favor de seu rigor ou legitimidade que, em última análise, sugerem que Lacan não era claro ou rigoroso o suficiente – eu colocaria o trabalho de Jean-Claude Milner aqui, uma vez que ele é tão lacaniano quanto possível, mas seu trabalho adota recursos muito diferentes para expressar o que ainda são proposições lacanianas. As críticas de Žižek a Lacan também parecem assumir essa forma, já que ele não está tanto rompendo com as ideias de Lacan quanto afirmando que sua base teórica é mais hegeliana do que parece, etc.
(E) Por fim, há críticas às limitações da teoria de Lacan, no sentido de que a estrutura geral é preservada, mas se procura expandi-la de alguma forma para permitir novos desenvolvimentos – há muito material que circula nos seminários e escolas lacanianas que vai nessa direção, e o trabalho de Miller também se enquadra nessa categoria, assim como os trabalhos clássicos de Maleval, Porge, Allouch, Christian Dunker e outros, que tentam tornar os conceitos mais precisos, expandir seu alcance e assim por diante.
Acho que o meu livro adota uma estratégia ligeiramente diferente de qualquer uma dessas opções. Como a opção A, ele se esforça para colocar a “persona” de Lacan em questão, mas, diferentemente dela, separa Lacan do pensamento lacaniano. Como a opção B, ela tenta tornar a psicanálise mais receptiva à política radical, mas, ao contrário dela, não propõe uma mistura imediata de política e psicanálise. Como a opção C, ela afirma que são necessárias mudanças severas na estrutura teórica de Lacan, devido a compromissos metafísicos indesejados que ele mantém, mas, diferentemente dela, não está tentando criar uma orientação psicanalítica separada. Como a opção D, ela busca fornecer outro relato da experiência clínica lacaniana, mas, diferentemente dela, não a disfarça como uma mera exegese teórica. E, como a opção E, ela procura se dirigir aos praticantes do campo propondo ferramentas para expandir o alcance do pensamento lacaniano, mas, diferentemente dela, não tenta fazer isso concentrando-se em novos fenômenos clínicos que nos desafiariam externamente, como diagnósticos de época, novas apresentações de estruturas subjetivas, etc. Esse tipo de diagonal é possível graças a um tipo diferente de compromisso, que, na minha opinião, não costuma motivar grande parte da literatura sobre Lacan, que é um compromisso com a prática “realmente existente” e suas condições materiais básicas. Este é um livro que assume a perspectiva de um clínico regular que se preocupa com a continuação e a expansão da prática lacaniana e que reconhece que, para que essa prática sobreviva, precisamos ser capazes de revisar nossa teoria, nossos pressupostos técnicos e nossa política interna.
Por causa disso, tive uma experiência interessante ao promover o livro, quando ele saiu em inglês e russo, e conversar com as pessoas: ele parece atrair um público amplo – composto por pessoas que adotam todas as posições críticas que descrevi acima –, mas também parece decepcionar a todos, uma vez que não é coerente com nenhuma dessas abordagens críticas. Acho que seu público principal continua sendo o de jovens analistas em formação que acreditam que há algo de especial em uma prática clínica orientada pelos “insights” básicos de Lacan, mas que sentem de várias maneiras as diferentes deficiências de nossa comunidade analítica.
Ec – Uma de suas manobras mais discutidas nesse livro é a regionalização da “lógica do significante”. Ou seja, contra a definição de Miller da lógica do significante como “lógica da origem da lógica”, você defende uma compreensão delimitada dessa lógica sob os limites do ambiente clínico. Quais são as consequências dessa delimitação para a relação entre a psicanálise e a política?
GT – A ideia de regionalização é o produto de minha interpretação de um aspecto interessante do trabalho de Badiou. Ela está mais ou menos explicitamente em jogo em sua crítica à psicanálise no clássico artigo “A marca e a falta”, mas acredito que seja um operador crítico que é central para toda a sua maneira de filosofar. Acho que isso de fato ajuda a diferenciar seu trabalho de todo o paradigma da filosofia crítica, pois fornece uma base alternativa para o pensamento radical. Eu descreveria esse operador em duas etapas:
1) Em primeiro lugar, ele rejeita a ideia de nossa tarefa crítica é sempre tratar alguma teoria, estrutura ideológica ou estado de coisas como uma totalidade que só podemos mostrar que é incompleta, falha ou problemática ao descobrir seus pressupostos ocultos. No paradigma crítico, o mundo é uma espécie de totalidade absoluta e, se tentamos mostrar que ele não inclui algo, precisamos sair da totalidade – o que, por sua vez, cria um paradoxo (o que é esse lado de fora?). A maioria das soluções para esse impasse implica alguma teoria inconsistente da totalidade (todo todo tem uma exceção, etc.) e um elogio dessa inconsistência como prova de nosso poder crítico. Em vez de seguir esse caminho, a operação de regionalização coloca uma dada totalidade dentro de um domínio maior – o que implica que as totalidades são domínios relativos e não absolutos – e afirma que, do ponto de vista dessa totalidade maior, podemos ver como a anterior foi restringida dessa ou daquela maneira. Isso remete à nossa discussão anterior sobre a função da política como uma lente para analisar o mundo social, porque essa totalidade maior é a totalidade que só é visível do ponto de vista do engajamento com um processo político concreto. Assim, o desdobramento de novos desenvolvimentos produz o efeito colateral de mostrar que o que quer que tenha sido considerado uma totalidade era, de fato, uma construção parcial e restrita.
2) O segundo aspecto da regionalização é que esse processo, diferentemente das manobras da filosofia crítica, não é intelectual. Ninguém pode, pelo simples poder de acrobacias intelectuais, sair dos limites de seu mundo, a menos que haja um lugar real onde possamos nos apoiar fora dele. Portanto, em vez de partirmos da crítica de uma totalidade, devemos partir da construção concreta de novos lugares a partir dos quais possamos olhar para essa totalidade – ou seja, devemos partir de processos políticos, artísticos, científicos e amorosos concretos, que sirvam de base para interpretarmos as limitações do mundo, regionalizando seus parâmetros etc.
Portanto, a regionalização é uma forma de condensar a teoria dos procedimentos genéricos de Badiou e sua relação com a filosofia – e mostra que, para Badiou, a construção precede a crítica, que é o nome de uma relação entre duas totalidades, e não uma operação radical indecomponível e fundante.
No contexto da psicanálise, o que tentei fazer foi assumir a crítica inicial de Badiou a Miller – que não afirmava que a lógica do significante era falsa, mas que, devido à relação obscura da psicanálise com suas próprias limitações, foi indevidamente generalizada para servir como uma teoria geral do sujeito. O que Badiou não fez – e aqui, mais uma vez, acho que o livro está tentando se aproximar mais da prática real da psicanálise do que a própria filosofia de Badiou está tentando, levando a uma abordagem ligeiramente diferente – foi definir adequadamente o que é esse domínio analítico. A maior parte do meu livro é uma tentativa de mostrar que a psicanálise se baseia em um fechamento artificial que produzimos na prática clínica, uma totalidade concreta, e de mostrar que uma definição clara de nossos limites como analistas não enfraquece a teoria de Lacan, mas a esclarece, abrindo espaço para possíveis novos desenvolvimentos. Afinal, se algo não tem limites ou limitações, não podemos transpô-los, não podemos trazer nada de novo. Se soubermos tudo, não poderemos aprender nada. A regionalização é um tipo de operador que faz mais sentido para as pessoas com disposição prática ou militante, enquanto a crítica regular – que se esforça para mostrar que toda posição tem algum ponto cego que somente “as perguntas certas” podem revelar – coloca o teórico e o intelectual em uma posição muito mais central, como se, privados desse tipo especial de questionamento radical, não pudéssemos criar nada novo – o que é claramente falso.
Portanto, a primeira razão por trás do uso desse tipo de estratégia conceitual é tentar situar os limites da psicanálise para si mesma, para abrir espaço para uma nova compreensão de suas categorias e um senso mais claro de nossas próprias limitações atuais. A segunda razão é porque a definição de um domínio também abre espaço para a existência de outras formas de pensamento que não nos dizem respeito diretamente – e que, consequentemente, podem ser de grande utilidade para nós, analistas. Não creio que haja qualquer conexão necessária entre a psicanálise e a política atual, pelo menos nenhuma conexão maior do que aquela entre a política e qualquer outro campo ou prática humana. Portanto, regionalizar a teoria psicanalítica, para mim, significa, em primeiro lugar, redescobrir o referente adequado de nossos conceitos, o que, por sua vez, esclarece que temos pouquíssimos recursos para falar sobre como esses referentes são constituídos, como nosso domínio clínico é adequadamente constituído, e isso, esperamos, abre novos e interessantes desafios, tanto internos à psicanálise quanto externos a ela, no que diz respeito à sua relação com outros campos de pensamento, como a política radical.
Uma última observação que acho que vale a pena fazer, e que diz respeito à segunda condição para a operação bem-sucedida da regionalização, que é a construção de um domínio maior: meu livro é absolutamente devedor de um movimento mais amplo de psicanalistas que, mesmo que invisivelmente para a maioria, já compartilham o diagnóstico de que a psicanálise lacaniana deve se transformar para preservar suas ideias centrais, e que já experimentam, diariamente, maneiras de fazer isso. Isso – junto com o movimento político mais amplo do qual faço parte e sobre o qual já falei longamente acima – constitui essa totalidade maior a partir da qual proponho analisar os desafios específicos da psicanálise hoje.
EC – Atualmente, você está trabalhando em colaboração com o Instituto Alameda. Poderia nos contar sobre as atividades e as metas dessa organização?
GT – O Instituto Alameda é um instituto de pesquisa – com sede no Reino Unido e no Brasil – focado nos temas de catástrofe e transição, ambos interpretados de forma ampla: catástrofe como uma espécie de estado geral de crise, ou múltiplas crises, e transição tanto ecológica quanto socialista. A metodologia da Alameda é promover projetos de pesquisa que abordem essas questões e, ao mesmo tempo, manter algum diálogo com organizações políticas, de modo que os pesquisadores permaneçam fundamentados na experiência política real e que esses processos políticos também possam se beneficiar dos resultados da pesquisa. Atualmente, trabalho como chefe de Estratégia Social no Alameda: minha função é facilitar essa ponte entre pesquisadores e movimentos políticos. Na verdade, esse é meu trabalho principal hoje – reduzi o número de dias em que faço trabalho clínico para abrir espaço para trabalhar no Alameda, o que tem sido uma ótima experiência, permitindo que eu trabalhe em estreita colaboração com diferentes movimentos políticos e pesquisadores incríveis.
O Alameda também estabeleceu uma parceria com o Subconjunto de Prática Teórica no Rio de Janeiro, no estabelecimento do Espaço Comum das Organizações, de que falei anteriormente. Nessa parceria, o ECO realiza eventos frequentes com pesquisadores do Alameda, buscando conexões entre os temas de trabalho do Instituto e nossa prática política, e também aproveito a experiência das enquetes militantes para descobrir questões teóricas em aberto que poderiam se tornar projetos de pesquisa do Alameda.
EC – E, por fim, pode nos dizer no que está trabalhando atualmente? Podemos esperar novos trabalhos em um futuro próximo?
GT – Acho que a principal coisa que está por vir é o primeiro livro do Subconjunto de Prática Teórica, que estamos escrevendo atualmente. Estamos conversando com diferentes editoras, mas nada definitivo ainda. A ideia do livro é condensar os resultados de nossa pesquisa até o momento e fazê-lo de forma que possa servir como uma espécie de “livro-texto” para pessoas interessadas em formar espaços como o ECO e usá-lo como material básico para discussão e interlocução com diferentes movimentos políticos.
Além disso, estou atualmente preparando a edição em castelhano de O desejo de psicanálise, que vai sair pela Alma Negra, editora chilena. Vai sair também um texto novo expandido algumas ideias do livro, mas não sei ainda por qual revista. Mas, para falar a verdade, não tenho tido muita vontade de escrever sobre psicanálise atualmente: estou muito mais empolgado com a perspectiva de ajudar a montar uma frente política dentro da comunidade analítica, com o objetivo de pressionar as instituições a promoverem mudanças organizacionais na forma como a formação e as condições de trabalho da psicanálise são tratados. Até tenho coletado algumas notas esparsas sobre o que poderia ser uma continuação desse primeiro livro, mas nada sério ainda.
Entrevista publicada originalmente no site turco Terrabayt.
Extremamente original, O desejo de psicanálise contribui para a superação dos limites atuais da psicanálise lacaniana, além de propor uma prática psicanalítica que se pretenda pública. Mais que uma aplicação da vertente lacaniana à política, trata-se de uma leitura marxista, com suporte da filosofia e das ciências, que reavalia os impasses e os méritos da clínica e teoria de Lacan. Já reconhecida internacionalmente, a obra foi primeiro publicada em língua inglesa. Agora chega ao país natal do autor com lançamentos também em russo e espanhol.
O desejo de psicanálise, de Gabriel Tupinambá, tem tradução de Gabriel Lisboa Ponciano, apresentação de Carla Rodrigues, prefácio de Slavoj Žižek, texto de orelha do Coletivo Margem Psicanálise, texto de quarta capa de Christian Dunker e capa de Livia Viganó sobre Pequena flor Urano (2024), de Darks Miranda (foto de Julia Thompson).
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