Tariq Ali entrevista Rashid Khalidi: “Os palestinos estão pagando por toda história europeia de ódio aos judeus”

Confira a seguir a primeira parte da entrevista de Rashid Khalidi a Tariq Ali, na qual o historiador palestino aborda a história política e intelectual do movimento nacional da Palestina, suas relações com os regimes árabes vizinhos, as hipocrisias do dito “processo de paz” e os vasos comunicantes entre Israel e o complexo-industrial-militar estadunidense.

Imagem: hosny salah (Pixabay).

Tariq Ali entrevista Rashid Khalidi

Rashid Ismail Khalidi é um dos mais proeminentes historiadores da Palestina e do Oriente Médio da atualidade. Advindo de uma família notável de Jerusalém, nasceu em Nova York no fatídico 1948 – sua família, assim como centenas de milhares de palestinos expulsos, não pôde retornar à sua terra natal após a Nakba. Filho do escritor e diplomata palestino Ismail Khalidi e sobrinho de Hussein Khalidi, que fora prefeito de Jerusalém (1934-37), seu interesse em história e geopolítica começou em casa. Nas mesas de jantar, era comum o assunto percorrer os bastidores da política internacional. Seu pai trabalhou por uma década e meia na Divisão de Assuntos do Conselho de Segurança da ONU e estava lá durante momentos-chave da política da região, como a Guerra dos Seis Dias, em 1967. “Desde cedo, aprendi a perceber a diferença entre o que sabíamos ser verdade e o que era noticiado”,1 conta.

Depois da morte do pai, em 1968, Khalidi traçou uma trajetória acadêmica prestigiosa. Formou-se em Yale, em 1970, e obteve seu doutorado na Universidade de Oxford, em 1974. Sob orientação de Albert Habib Hourani, apresentou um estudo aprofundado da política britânica no Oriente Médio pré-Primeira Guerra Mundial, analisando os antecedentes do Acordo Sykes-Picot e da Declaração de Balfour. Na sequência, mudou-se para o Líbano, país de sua família materna, e lá, entre 1976 e 1983, lecionou na Universidade Americana de Beirute e na Universidade do Líbano, além de ser pesquisador do Institute for Palestine Studies, cofundado em 1963 por seu primo, o renomado historiador Walid Khalidi. Acompanhou em primeira mão as tensas tratativas pela evacuação da OLP de Beirute diante da invasão israelense em 1982.2

Após o massacre de Sabra e Shatilla e com o acirramento das tensões no país, a família partiu para os Estados Unidos com um recém-nascido. A previsão era passar um ano fora, mas a guerra civil libanesa se agravou eles nunca voltaram para sua casa em Beirute, onde os três filhos haviam nascido. Khalidi passou dezesseis anos lecionando na Universidade de Chicago, onde também dirigiu o Centro de Estudos Internacionais. Entre 1991 e 1993, aconselhou a delegação palestina nas negociações de paz em Madri e Washington, tema de seu livro Brokers of Deceit [Negociadores do engano].3 Em 2002, passou a editar o Journal of Palestine Studies e, no ano seguinte, assumiu a recém-criada cadeira Edward Said de estudos árabes na Universidade de Columbia.

No primeiro semestre de 2024, sua universidade foi palco de uma série de ocupações estudantis contra o massacre patrocinado pelos EUA em Gaza. Em maio, horas depois da tropa de choque invadir um dos prédios ocupados e prender dezenas de estudantes, Khalidi fez um discurso apoiando os manifestantes e condenando a administração universitária. Depois de mais de vinte anos à frente da cátedra, ele se aposentou em junho, desvinculando-se da Columbia.

Nesta edição, a Margem Esquerda traz uma densa conversa entre Khalidi e Tariq Ali. Publicada com o título “The Neck and the Sword”4 [O pescoço e a espada], a entrevista versa sobre a história política e intelectual do movimento nacional palestiniano, suas relações com os regimes árabes vizinhos, as hipocrisias do dito “processo de paz”, os vasos comunicantes entre Israel e o complexo industrial-militar estadunidense, as realidades da ocupação e os cálculos (ou erros de cálculo) do Hamas, bem como os desafios e as perspectivas para as próximas décadas.

Tariq Ali – Comecemos com o presente, não só no sentido dos horrores infligidos à Palestina agora, mas o presente como parte do ainda ativo passado palestino. A brutal repressão anglo-sionista da Grande Revolta Árabe de 1936-39 foi seguida pela Nakba de 1948, a Guerra dos Seis Dias de 1967, o cerco a Beirute de 1982 liderado por Ariel Sharon, os massacres de Sabra e Shatila, as duas Intifadas e a contínua chuva de terror por parte de Israel desde então. Ainda assim, o genocídio do pós-7 de outubro parece ter um impacto global maior que todos esses acontecimentos.
Rashid Khalidi – Sim, alguma coisa mudou em nível global. Não sei por que aqueles episódios históricos não tiveram o efeito de mudar completamente a narrativa – a narrativa popular, em especial. Não quero especular sobre fatores como as mídias sociais. Mas esse tem sido o primeiro genocídio que uma geração testemunha em tempo real, nos seus telefones. Foi o primeiro em tempos recentes em que os Estados Unidos, a Inglaterra e os países ocidentais foram participantes diretos, diferente dos do Sudão e de Mianmar? Será que o trabalho dos militantes pró-Palestina sobre uma ou mais gerações preparou as pessoas para isso? Não sei dizer. Mas você tem razão quando diz que, como resultado dos horrores infligidos a Gaza durante oito meses contínuos, e dos que estão sendo infligidos agora, algo novo aconteceu. O deslocamento de 750 mil pessoas em 1948 não teve o mesmo impacto. A Revolta Árabe de 1936-39 foi quase completamente esquecida. Nenhum desses eventos prévios teve um efeito parecido com esse.

TA – A Revolta Árabe sempre me fascinou como um dos maiores episódios da luta anticolonial, que recebeu muito menos atenção do que merece. Começou como uma greve, depois uma série de greves, até se tornar uma enorme revolta nacional que deixou os ingleses “nas cordas” por três anos. Você poderia nos explicar as origens dela, seu desenvolvimento e consequências?
RK – A Revolta Árabe foi essencialmente uma revolta popular, em escala massiva. A liderança Palestina tradicional foi pega de surpresa, assim como Arafat e as lideranças da Organização para Libertação da Palestina (OLP) foram pegos de surpresa com a Primeira Intifada em 1987. Ambas as insurreições se iniciaram com incidentes menores; no caso da Revolta Árabe, foi a morte em batalha do xeque ‘Izz al-Din al-Qassam em novembro de 1935, por forças britânicas. Nascido em 1882 em Jableh, na costa da Síria, al-Qassam foi um intelectual religioso, treinado em Al-Azhar e militante anti-imperialista que lutou contra as forças ocidentais na região, começando com os italianos na Líbia, em 1911, depois as forças francesas na Síria, em 1919-20. Ele se instalou na Palestina controlada pelos britânicos, onde viveu e trabalhou principalmente entre os camponeses e os pobres urbanos. O assassinato de al-Qassam teve uma amplitude enorme; dentro de alguns meses tinha ajudado a detonar a mais longa greve geral do entreguerras na história colonial. O melhor relato dessa história é de Ghassan Kanafani, o grande escritor palestino assassinado pelos israelenses em 1972; era para ser o primeiro capítulo de sua obra sobre a luta palestina, inacabada quando de sua morte.5 A análise de Kanafani se sustenta até os dias de hoje. Entre outras coisas, ele salientou o impacto econômico sobre as classes populares do aumento da imigração judaica para a Palestina nos anos 1930, depois que Hitler chegou ao poder; a demissão de trabalhadores árabes de fábricas e obras, conforme a política de “mão de obra exclusivamente judaica”, de Ben-Gurion; o despejo de 20 mil famílias camponesas das suas terras, vendidas aos colonos sionistas por donos de terras absenteístas; o aumento da pobreza. Essas revoltas populares eclodem quando as pessoas atingem um ponto em que perceberam que não poderiam mais continuar como antes, e nesse caso a ira social se somou a poderosos sentimentos nacionalistas e religiosos. Os palestinos se impuseram contra todo o poderio do Império Britânico, que em um século e meio não havia sido obrigado a conceder independência a nenhuma colônia, com exceção da Irlanda em 1921. A Revolta Árabe foi esmagada pelo que ainda era o império mais poderoso do mundo, mas os palestinos lutaram por mais de três anos, com cerca de um sexto da população masculina morta, ferida, presa ou exilada. Nos anais do período entreguerras, foi uma tentativa sem precedentes de derrubar o domínio colonial. Só foi suprimida com o envio de 100 mil tropas e a RAF (Força Aérea Britânica). Essa é uma página esquecida da história da Palestina.

TA – Essa derrota não levou também a uma desmoralização no seio das massas palestinas, de modo que, quando a Nakba começou propriamente, em 1947, eles ainda não haviam se recuperado dos horrores de 1936-39?
RK – A derrota da Revolta Árabe criou um legado pesado, que afetou os palestinos por décadas. Como Kanafani escreveu, a Nakba, “o segundo capítulo da derrota – do final de 1947 a meados de 1948 –, foi notável por sua brevidade: era apenas o epílogo de um capítulo longo e sangrento ocorrido entre abril de 1936 e setembro de 1939”.6 O que os britânicos fizeram foi depois copiado em quase todos os detalhes pelos líderes sionistas de Ben-Gurion em diante. Só por isso já vale a pena recordar o custo para a sociedade palestina. Pelo menos 2 mil casas foram explodidas, plantações foram destruídas e centenas de rebeldes foram fuzilados por portarem armas de fogo. Tudo isso acompanhado de toques de recolher, detenção sem julgamento, exílio interno, tortura, práticas como amarrar os habitantes dos vilarejos na frente das máquinas a vapor, como escudos contra os ataques de combatentes da liberdade. Em uma população árabe de cerca de 1 milhão de pessoas, 5 mil foram assassinados, mais de 10 mil, feridos, e mais de 5 mil presos políticos foram deixados apodrecendo em prisões coloniais.  

TA – No processo de aniquilação da Revolta Árabe os britânicos deram um valioso treinamento em contrainsurgência às forças sionistas que estavam trabalhando com eles.
RK – Sim. Especialistas em contrainsurgência, como Orde Wingate e outros experts em tortura e assassinato, ensinaram aos sionistas todas as suas técnicas coloniais sujas. Os britânicos trouxeram veteranos da Índia, como Charles Tegart, o notório chefe de polícia de Calcutá, alvo de seis tentativas de assassinato por nacionalistas indianos. As mesmas fortalezas e campos de prisioneiros construídos por Tegart estão ainda em uso por Israel nos dias de hoje. Eles trouxeram gente da Irlanda e de outras partes do império, como o Sudão, onde Wingate começou, e onde o primo do seu pai, Reginald Wingate, fora governador-geral e oficial de inteligência antes disso.

TA – Orde Wingate, um nome esquecido há muito tempo. Eu duvido que muitos leitores tenham sequer ouvido falar da sua figura doentia, de quem [Bernard] Montgomery disse que a melhor coisa que fez foi estar no avião que caiu e o matou em Burma, em 1944. Quem foi ele? Ele tinha algum vínculo especial com as forças sionistas? Me lembro vagamente de uma série da BBC de 1976 em que ele foi retratado como um herói.
RK – Ele era um assassino colonial de sangue frio, que acabou como major-general e foi odiado por muitos do seu próprio lado, como as palavras de Montgomery sugerem; Montgomery também descreveu Wingate como “mentalmente desequilibrado”. Churchill, que não se fazia de rogado quando o assunto era infligir sofrimento a populações submetidas, chamou Wingate de “louco demais para comandar”. Ele nasceu na Índia britânica, em uma família religiosa da igreja Plymouth Brethren. Cristão fundamentalista e literalista bíblico, ele promovia a versão do Velho Testamento de uma redenção judaica. Chegou na Palestina como capitão na inteligência militar, justamente quando a revolta de 1936 estava começando. Sabia árabe, aprendeu hebraico e se tornou figura-chave do treinamento de integrantes do Haganá como “Esquadrões Especiais Noturnos” – em outras palavras, esquadrões da morte –, que localizavam e matavam habitantes dos vilarejos palestinos nas montanhas, assim como os grupos de militares e colonos israelenses fazem hoje. Sua notoriedade era tamanha que, quando explodiu a guerra europeia de 1939, figuras árabes proeminentes demandaram que Wingate fosse expulso da região. Ele foi. Seu passaporte foi carimbado proibindo seu retorno. Seu trabalho estava feito. Ele treinou muitos dos homens que se tornaram comandantes do Palmach e mais tarde do Exército israelense, como Moshe Dayan e Yigal Allon. Vários lugares em Israel carregam seu nome, e ele é corretamente considerado o fundador da doutrina militar israelense.

TA – Ele os ensinou bem.
RK – Sim. O que antes fora uma especialidade colonial britânica se transformou em uma especialidade colonial israelense. Tudo que os israelenses fizeram, eles aprenderam dos britânicos – incluindo as leis, as regulações emergenciais de defesa de 1945, por exemplo, que os britânicos usaram contra a Irgun. As mesmas leis estão ainda vigentes, agora usadas contra os palestinos. Tudo isso veio do manual colonial dos britânicos.

TA – Uma vitória – ou mesmo um empate – da Revolta Árabe teria estabelecido as bases de uma identidade nacional palestina e aumentado sua força para as batalhas que viriam. Assim como [Ghassan] Kanafani, você argumentou que as vacilações da liderança tradicional palestina tiveram um papel-chave na derrota, curvando-se, como fizeram – na Conferência de Saint James, por exemplo – aos reis árabes, que haviam sido colocados em seus tronos pelos britânicos…
RK – Assim como agora, a liderança palestina estava dividida. Eles estavam estorvados por sua própria incapacidade de chegar a um acordo sobre uma estratégia apropriada para mobilizar a população e criar um fórum de representatividade nacional, uma assembleia popular em que esses assuntos poderiam ser discutidos. Diferentemente do que ocorreu na Índia, no Iraque e em outras partes da África, os britânicos negaram aos palestinos qualquer acesso ao Estado colonial. Então o argumento em defesa de uma assembleia popular para romper decisivamente com as estruturas do controle colonial era muito importante.

TA – Outra condição de fundo para a Revolta foi a emergência do fascismo na Europa.
RK – A partir do momento em que os nazistas tomaram o poder, toda a situação mudou para os judeus no seu relacionamento com o mundo e com o sionismo. O que é totalmente compreensível. Isso produziu mudanças na Palestina também: entre 1932 e 1939, a proporção de judeus na população cresceu de 16% ou 17% para 31%. De repente os sionistas tinham uma base demográfica viável para tomar a Palestina, o que não tinham em 1932.

TA – Os palestinos se tornaram vítimas indiretas do judeocídio europeu.
RK – Absolutamente. Os palestinos estão pagando por toda a história europeia de ódio aos judeus, desde os tempos medievais. Eduardo I expulsou os judeus da Inglaterra em 1290, os franceses os expulsaram no século seguinte, os éditos espanhóis e portugueses, nos anos 1490, os pogroms russos de 1880 e, por fim, o genocídio nazista. Historicamente, esse é um fenômeno quintessencial da cristandade europeia.

TA – E se não tivesse havido um judeocídio na Europa e a Alemanha fascista tivesse sido somente fascista, sem a obsessão de exterminar os judeus?
RK – Esse é um grande “e se…”. Mas olhe para a situação em 1939. Já havia um forte projeto sionista, com apoio imperial britânico, por razões que nada tinham a ver com judeus e sionismo. Tinha a ver com interesses estratégicos. A Declaração de Balfour foi feita pelo homem responsável por emplacar a lei mais antissemita da história do Parlamento britânico, o Aliens Act de 1905. A classe dominante britânica não se importava com os judeus per se. Talvez se importassem com a leitura que faziam da Bíblia, mas eles se interessavam sobretudo pela importância estratégica da Palestina e do Oriente Médio, como porta de entrada para a Índia, muito antes de 1917. Esse era o interesse deles, do início ao fim. Quando foram forçados a sair, em 1948, eles o fizeram porque já tinham desistido da Índia em 1947, e já não precisavam mais da Palestina da mesma maneira. Mesmo que Hitler tivesse sido assassinado, haveria um projeto sionista, com apoio imperial britânico. Ainda assim o sionismo teria tentado tomar a totalidade do território palestino, que sempre foi seu objetivo, e ainda assim teria tentado criar uma maioria judia através de limpeza étnica e imigração. Eu não poderia especular mais do que isso.

TA – Mas não havia também correntes antissionistas dentro das comunidades judaicas?
RK – Certamente. Havia judeus comunistas, judeus assimilacionistas. A grande maioria das populações judaicas perseguidas do Leste Europeu decidiu emigrar para colônias de povoamento branco: África do Sul, Austrália, Canadá, Nova Zelândia e, acima de tudo, Estados Unidos; alguns também foram para a Argentina e outros países latino-americanos. Essa é a maioria [dos países] para onde a maior parte da população judaica do mundo foi, além daqueles que ficaram na Europa. O antissionismo era um projeto judeu. Antes da ascensão de Hitler, os sionistas eram uma minoria, e seu projeto era altamente contestado nas comunidades judaicas. Mas o Holocausto produziu um tipo de uniformidade compreensível no apoio ao sionismo.

TA – Derrotas costumam ter o efeito de parar tudo por um tempo; aí a resistência ressurge, de diferentes formas. No caso de 1936-39, contudo, imediatamente depois da derrota, eclodiu a Segunda Guerra Mundial – que começou na China, apesar de muitos a chamarem de uma guerra europeia. Qual foi a atitude da liderança palestina nesse momento? Na Indonésia, na Malásia, na Índia e em partes do Oriente Médio alguns grupos de movimentos nacionalistas disseram: o inimigo do nosso inimigo é nosso amigo, ainda que temporariamente. Sendo o nosso inimigo o Império Britânico, isso significa alemães e japoneses. Em seu livro sobre o Egito, Anouar Abdel-Malek escreve que, quando parecia que [Erwin] Rommel iria tomar o país, multidões se reuniram nas ruas de Alexandria, gritando: “Adiante, Rommel, adiante!”. Queriam qualquer um, menos a Inglaterra. Qual foi a reação na Palestina?
RK – A reação na Palestina foi altamente dividida. A facção minoritária da liderança se alinhou com os alemães, seguindo o Grande Mufti. Ele tinha uma extraordinária carreira militar: os franceses o expulsaram de Beirute, os ingleses o enxotaram do Iraque, quando reocuparam o país em 1941, e depois o expulsaram do Irã. Ele tentou ir para a Turquia, mas os turcos não o deixaram ficar, então ele acabou em Roma, e depois em Berlim. Mas a maioria dos palestinos não adotou essa linha. Muitos se uniram ao Exército britânico para lutar com as Forças Aliadas. Claro que muitos líderes foram mortos pelos britânicos, tanto no campo de batalha quanto executados. Outros foram exilados. Os ingleses adoravam exilar seus oponentes nacionalistas nas ilhas sob seu protetorado: Malta,Seychelles, Sri Lanka e as Ilhas Andamão. Meu tio foi mandado para as ilhas Seychelles por alguns anos, junto com outros líderes palestinos, e depois exilado em Beirute por outros tantos anos. A liderança, via de regra, entendia que a Inglaterra nunca poderia ser uma nação amiga. Dá para ler isso nas memórias do meu tio – ele se tornou virulentamente antibritânico. Ele fora sempre nacionalista e antibritânico, mas a Revolta [Árabe] mudou de maneira extraordinária a visão dos palestinos. Antes, a liderança tentava sempre se conciliar com os britânicos, nos moldes de várias elites coloniais cooptadas. Isso mudou com a aniquilação da Revolta. Em última análise, a derrota da Revolta e depois a Segunda Guerra Mundial deixaram os palestinos mal-preparados para o que viria depois, quando duas novas superpotências – Estados Unidos e União Soviética – apoiaram o sionismo, enquanto os britânicos colaboraram in loco com os sionistas e os jordanianos para prevenir o estabelecimento de um Estado palestino naquele território. Os palestinos não estavam suficientemente organizados para enfrentar o assalto dos militares sionistas, que começou em novembro de 1947, meses antes do fim do Mandato Britânico, em 15 de maio de 1948, quando a repartição da ONU entraria em vigor, e os exércitos árabes entraram na briga. Àquela altura, as forças sionistas tinham tomado Jaffa, Haifa, Tiberias, Safad e uma dúzia de outros vilarejos, expulsando cerca de 350 mil palestinos, e já haviam superado em muito o que havia sido designado como Estado Árabe no Plano de Repartição da ONU. Ou seja, os palestinos já haviam perdido antes mesmo da proclamação do Estado de Israel e da deflagração da guerra árabe-israelense.

TA – Vamos chegar ao papel dos Estados Unidos em tudo isso. Mas como você explica o apoio da União Soviética aos sionistas, fornecendo armas tchecas para que eles continuassem na luta?
RK – Stálin deu uma guinada repentina, como você sabe. De uma firme potência antinacionalista e antissionista, a União Soviética subitamente se transformou em uma defensora de um Estado judeu. Isso foi um choque enorme para os partidos comunistas do mundo árabe. Havia várias motivações, penso eu. Foi por certo uma tentativa de cobrir o lance dos Estados Unidos, e havia uma sensação de que talvez Israel pudesse ser um país socialista a se alinhar à União Soviética. Stálin também queria minar o poderio britânico no Oriente Médio. Lembre-se de que ele havia passado sua juventude lutando no sul do que mais tarde seria a União Soviética, durante a Guerra Civil Russa, quando os britânicos foram os maiores apoiadores do Exército Branco – os financiando, armando e treinando. Eles os apoiaram com tropas e armadas do mar Báltico ao mar Cáspio e ao mar Negro. Stálin tinha desde cedo desenvolvido uma animosidade em relação aos britânicos e uma obsessão com a ameaça que eles representavam no sul da União Soviética. Ele agora via esse momento como uma oportunidade para minar os regimes árabes marionetes dos britânicos na região.

TA – Foi uma intervenção política desastrosa. Mas não durou muito.
RK – Alguns anos. Mas sim, totalmente. Se você olhar a votação na Assembleia Geral da ONU, sem a União Soviética e seus anexos Ucrânia e Bielorrússia, assim como os países que eles influenciavam, os estadunidenses teriam dificuldade em impor a resolução de repartição. Talvez eles o fizessem, mas o resultado poderia ter sido outro. E o acordo de armamentos tcheco foi crucial para as vitórias de Israel contra os exércitos árabes no campo de batalha.

TA – Isso nos traz às elites árabes – as monarquias e califados instalados pela Inglaterra depois do colapso dos otomanos –, sua colaboração com os britânicos e seu fracasso em ajudar a derrotar essa entidade que foi criada pelo Império Britânico.
RK – As monarquias do Egito, da Jordânia e do Iraque tiveram o papel mais importante aqui. Elas estavam sujeitas a pressões opostas, de cima e de baixo. Por um lado, os britânicos não tinham a menor vontade de ver um Estado palestino. Eles ainda mantinham uma enorme hostilidade contra os palestinos, ainda que também tenham se tornado hostis aos sionistas, por causa da campanha sangrenta levantada contra eles pela Irgun, a Gangue Stern e a Haganá, no final da Segunda Guerra Mundial. A Inglaterra se absteve na votação da ONU sobre a repartição. Um Estado judeu seria estabelecido e nada poderia ser feito para evitar isso. Mas eles esperavam manter o equilíbrio de poderes através dos regimes clientes e manter influência em parte da Palestina através do emir Abdullah, da Transjordânia, cujo Exército era comandado por oficiais britânicos. Por outro lado, havia uma pressão por parte da opinião pública. O mundo árabe havia muito se preocupava com o sionismo. Quando eu estava pesquisando sobre esse assunto, descobri inúmeros artigos antigos de jornal sobre a Palestina, em publicações de Istambul, Damasco, Cairo e Beirute. Havia voluntários da Síria e Egito lutando na Palestina durante a Revolta Árabe. Então esses regimes vizinhos estavam sob pressão popular para fazer alguma coisa sobre a catástrofe que estava se desenvolvendo em 1947-48, com os sionistas em clara vantagem, e os refugiados destituídos chegando às capitais árabes. Os britânicos queriam que os jordanianos invadissem a região para anexar a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. O Egito e os demais países árabes foram forçados a intervir por conta da pressão popular. Mas o fizeram de maneira pouco incisiva e somente depois que os britânicos haviam abandonado o local. Isso teve um enorme efeito de radicalização no jovem oficialato envolvido, incluindo Abdel Nasser. Nas suas memórias, ele escreve algo como: ‘não nos foram dados os meios com os quais lutar, mas à medida que lutávamos contra os israelenses, pensávamos na monarquia corrupta controlada pelos britânicos em casa’. Junto com outros dois colegas próximos do grupo nacionalista Free Officers, Nasser foi lotado em Gaza e Rafah, e observou em primeira mão a ira dos soldados rasos contra o Alto Comando no Cairo. Ele cita um soldado que ficava repetindo a cada ordem sem sentido: “Vergonha, vergonha”, na entonação prolongada e sarcástica do egípcio do interior.7 A guerra aumentou a popularidade dos Free Officers e, em última instância, levou à queda da monarquia em 1952. O mesmo aconteceu com os iraquianos e os sírios. Praticamente assim que a guerra acabou, ocorreram uma série de golpes na Síria, seguidos pela revolução de 1952 no Egito, e no Iraque em 1958. Todos os oficiais militares envolvidos haviam lutado na Palestina.

Notas
1 Chris Hedges, “Casting Mideast Violence in Another Light” [perfil de Rashid Khalidi na editoria “Public Lives”], The New York Times, 20 abr. 2004.
2 Sobre a experiência, Khalidi escreveu Under Siege: PLO Decisionmaking During the 1982 War
(Nova York, Columbia University Press, 1985).
3 Rashid Khalidi, Brokers of Deceit: How the US Has Undermined Peace in the Middle East (Boston, Beacon, 2013).
4 Publicada originalmente em New Left Review, n. 147, maio/jun. 2024, p. 5-38, e traduzida aqui por Luiz Guilherme Osório.
5 Ghassan Kanafani, A revolução palestina de 1936 a 1939: antecedentes, detalhes e análise (trad. Letícia Bergamini Souto, São Paulo, Expressão Popular, 2024)
6 Ibidem, p. 115.
7 “Nasser’s Memoirs of the First Palestine War”, traduzido para o inglês por Walid Khalidi para a edição do Journal of Palestine Studies publicada no inverno de 1973, é um relato fascinante do caos e da falta deliberada de planejamento do corrupto Alto Comando no Cairo.

Confira a entrevista completa na revista Margem Esquerda #43, com especial sobre Gaza.



Como não poderia deixar de ser, Gaza está no centro da nova edição da Margem Esquerda. A revista abre com uma densa entrevista com o historiador palestino-americano Rashid Khalidi, por muitos considerado herdeiro intelectual de Edward Said. Na sequência, o dossiê de capa esquadrinha a atual situação palestina em reflexões de Arlene Clemesha, Samah Jabr, Tithi Bhattacharya, Bruno Huberman e Ilan Pappé. É do artista plástico palestino Yazan Khalili, o ensaio visual da edição. Fechando o volume, nosso editor de poesia traduz e comenta os versos pungentes de Rafaat Alareer, assassinado em dezembro de 2023 por um bombardeio aéreo israelense no norte de Gaza, junto com dois irmãos e quatro sobrinhos.

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Tariq Ali é jornalista, escritor, historiador, cineasta e ativista político. Nascido em 1943 no Paquistão, atualmente vive na Inglaterra, onde colabora com diversos periódicos e é um dos editores da revista New Left Review. É especialista em política internacional e tem se destacado com análises sobre o Oriente Médio e a América Latina. Pela Boitempo, publicou O poder das barricadas: uma autobiografia dos anos 60 (2008).

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