A esquerda tem o que dizer

Diante da afirmação taxativa que tem se apresentado no debate político após o primeiro turno das eleições municipais, segundo a qual “a esquerda nada tem a dizer para a periferia e os mais pobres”, venho aqui, modestamente, alinhavar algumas coisas que acredito que consistem naquilo que temos a dizer aos trabalhadores (e que a esquerda tem dito já há bastante tempo).

Imagem: Gerd Altmann (Pixabay).

Por Mauro Luis Iasi

“Temos que reconhecer a inteligência da reação,
que conseguiu fazer (das) posições defensivas mínimas
o objetivo fundamental de seu inimigo de classe.”
Che Guevara

Diante da afirmação taxativa que tem se apresentado no debate político após o primeiro turno das eleições municipais, segundo a qual “a esquerda nada tem a dizer para a periferia e os mais pobres”, venho aqui, modestamente, alinhavar algumas coisas que acredito que consistem naquilo que temos a dizer aos trabalhadores (e que a esquerda tem dito já há bastante tempo).

1. Caros pobres, a pobreza não é uma sina, azar ou maldição, tampouco resulta da falta de esforço ou mérito, mas o resultado inevitável de uma forma particular de organizar a produção social da vida: o capitalismo, modo de produção que quanto mais produz riqueza, gera inevitavelmente mais pobreza e miséria no polo oposto da sociedade.

2. O fato da maioria dos pobres, e da classe trabalhadora em geral, não ter a menor ideia do que é o capitalismo não impede que este modo de produção determine suas vidas, inclusive, não saber como funciona nossa sociedade é um elemento importante para manter esta ordem injusta e desumana.

3. A existência de periferias nas grandes cidades não se dá por falta de planejamento ou gestões qualificadas, mas é o resultado direto da forma de cidade adequada ao capitalismo, isto é, uma cidade que se fundamenta em um sistema que concentra poder, riqueza e propriedades, concentra também espaços e territórios adequados a cada função industrial, comercial, financeira, moradia e outras. Cada uma das funções do capital precisa de seus trabalhadores (produção, circulação, consumo, reprodução, etc.) e estes trabalhadores têm que ser expropriados de todos os meios que permitiram a eles garantir sua existência, tendo que se vender no mercado de trabalho. Para garantir os salários baixos, o capital expropria mais do que aqueles que vai usar diretamente, formando uma superpopulação relativa. Uma vez organizada a expropriação do espaço necessário para o capital, este excedente de população é empurrado ao redor das cidades, geralmente, sem estrutura de moradia, saneamento, serviços públicos, transporte, etc., formando as periferias.

4. Para o capital, tudo tem que ser mercadoria, para que sua produção e venda gere lucro para os capitalistas. Desta maneira, tudo que satisfaz uma necessidade humana pode ser vendido na forma de mercadoria para gerar lucro, não apenas os objetos, alimentos, roupas, mas também serviços como saúde, educação, transporte, tratamento de água, energia elétrica e tudo mais. Nós, pobres, temos que trabalhar para ganhar dinheiro e comprar as mercadorias necessárias para garantir nossa vida e de nossas famílias. Os ricos que vendem as mercadorias ganham muito dinheiro, garantem uma qualidade de vida muitas vezes melhor e acumulam seus lucros formando fortunas.

5. Como tudo foi transformado em mercadoria, a cidade também é mercantilizada. Os serviços – o transporte, a saúde, o tratamento de água, a distribuição de energia – são prestados por empresas e o próprio espaço urbano vira objeto de mercantilização. Até mesmo aquele espaço para onde fomos expulsos, em algum momento, pode ser visto como possibilidade de lucro para o crescimento da cidade, expulsando-nos novamente.

6. Bairros nobres, bairros de classe média, bairros pobres, periferias e favelas dividem o espaço urbano entre as classes que compõe esta sociedade. A cidade é o desenho urbano da divisão social do trabalho. O que precisamos saber é que esta sociedade é uma sociedade de classes.

7. As classes não se dividem apenas pela riqueza e a propriedade, mas também entram em luta pelo fundo público, isto é, a parte da riqueza taxada por impostos. As classes dominantes, proprietárias das empresas que mercantilizam nossas vidas, graças ao seu grande poder econômico, influenciam as eleições, formam bancadas legislativas e elegem governantes que irão garantir que o fundo público seja utilizado prioritariamente para satisfazer seus interesses. Os trabalhadores e pobres, divididos e desorganizados, acabam ficando com a menor parte do fundo público, com medidas, na maioria, paliativas e que não dão conta de nossas necessidades.

8. Para que isto funcione, a massa de trabalhadores e pobres, não pode se organizar e votar de acordo com seus interesses de classe; por isso, existem poderosas máquinas eleitorais, controle de regiões e formas de manipulação que garantem que a maioria da população vote em uma minoria de privilegiados. É mais fácil comprar um pastor do que convencer cada ovelha.

9. A política é, fundamentalmente, uma correlação de forças. A classe dominante é poderosa economicamente, controla meios de comunicação, espaços políticos e meios repressivos. A maior força dos trabalhadores vem de seu número e de sua posição econômica, já que somos nós que de fato fazemos tudo funcionar. Nossa fraqueza é a divisão e a aceitação de ideias e valores de nossos inimigos como se fossem nossos. No fundo, não queremos lutar contra eles, mas sermos iguais a eles. Mas não há vaga nas classes dominantes, eles não gostam da gente e não nos querem ao seu lado, só querem usar alguns para manipular a maioria, como capachos e capitães do mato. Querem nos ver divididos, desorganizados e alienados, para votarmos como gado naqueles que nos exploram e dominam.

10. Trabalhadores e a maioria da população, com toda a diversidade que isto implica, organizados e conscientes do como funciona esta sociedade e das classes que dela se beneficiam nos explorando e dominando, podem mudar a sociedade para que ela atenda os interesses e necessidades da maioria, mudando as formas de produção da vida, de propriedade e de distribuição da riqueza socialmente produzida. No entanto, para isto, é necessário que compreendamos que não é possível mudar a sociedade sem derrotar aqueles que fazem de nossas vidas miseráveis a riqueza que neles se concentra.

11. Por isso, é fundamental que os trabalhadores, os pobres, os que foram expulsos para as periferias, os que sofrem com o machismo, a homofobia, o racismo, o ódio aos pobres, entendam que não se pode conciliar com aqueles que lucram às custas de nossa miséria. Entendam que os ricos farão tudo por nós, menos sair de nossas costas e parar de nos explorar para concentrar a riqueza social que produzimos e eles acumulam privadamente.

12. Se esta é a cidade do capital, da exploração, da mercadoria, como a forma adequada desta sociedade, ela pode ser a cidade dos que trabalham, moram, vivem, criam seus filhos e partilham igualmente a riqueza que todos nós produzimos, priorizando a vida, o meio ambiente e a coletividade.

13.  Por fim, entender que a conciliação de classes faz mal para a saúde, a educação, o transporte, a moradia, a segurança, o saneamento, a arte e a cultura, o lazer, o esporte, a sexualidade, o tratamento do lixo, o patrimônio histórico, as vias públicas, faz mal para a cidade… para o Estado… para o país e para o futuro que podia ser nosso.

Neste ponto, alguém podia argumentar que a esquerda não diz isto tudo. Aí que alguns analistas distraídos se enganam. A esquerda nunca parou de afirmar tudo isto e defender mudanças profundas. Quem anda esquecido destes pontos, se empenhou tanto em se disfarçar de centro e esconder seus princípios de esquerda que agora não os encontra mais.

Como já disse e volto a dizer: “nós podemos fazer desta desgraça um país, mas para isto temos que derrotar aqueles que ganham muito dinheiro, transformando este país em uma desgraça”.

“Como não considerar um embusteiro
                Aquele que ensina aos famintos
Outra coisa que não acabar com a fome?”
Bertolt Brecht


Confira o Café Bolchevique, coluna mensal de Mauro Iasi na TV Boitempo:


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Mauro Iasi professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, educador popular e militante do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

2 comentários em A esquerda tem o que dizer

  1. juniaferrari // 18/10/2024 às 12:43 pm // Responder

    Mauro, seus apontamentos são claros e até óbvios para nós que dividimos um exíguo espaço reflexivo neste nosso país. Inclusive tenho você como uma referência bibliográfica importante. Mas, infelizmente, é preciso encarar que conteúdos dessa natureza não dialogam com as urgências das nossas periferias. É preciso fortalecer redes de ajuda mútua nessas bordas precárias, muito mais do que discursos. Pelo menos é isso que a direita evangélica tem feito, e precisamos reconhecer, com maestria.

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  2. Emanuel Bonfante Demaria Junior // 19/10/2024 às 10:27 am // Responder

    Grande e sábio Mauro Iasi! Um comunista de VERDADE!

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