Estados Unidos, guerra e revolução
A mais recente edição brasileira de “A guerra civil dos Estados Unidos” – é mais do que bem-vinda, principalmente graças à sua relevância para pensarmos o passado no presente. Tanto lá quanto cá, estamos no meio do redemoinho da luta de classes e diante das disputas de formas de consolidar e intensificar a subjugação e a exploração dos trabalhadores.
Imagem: WikiImages (Pixabay).
Por Lindberg Campos
A mais recente edição brasileira de A guerra civil dos Estados Unidos – coletânea de artigos, documentos e cartas de Marx e Engels redigidos entre 1860 e 1869, resultantes de uma série de reflexões a propósito da Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-65) – é mais do que bem-vinda, principalmente graças à sua relevância para pensarmos o passado no presente. O fio condutor do livro coincide com uma percepção aguda da forma como o tempo faz as coisas darem no seu contrário. Embora seja verdade que o Norte industrializado não tenha começado a polir os fuzis para abolir a escravidão sulista, mas para preservar a União, agindo apenas defensivamente, as classes escravagistas confederadas empreenderam uma guerra para parir e fazer prosperar uma constituição que, no fundamental, só diferia em um ponto daquela de Washington: a defesa da expansão da “instituição peculiar da escravidão”. Ou seja, os proprietários de escravos pegaram em armas para “lutar pela liberdade de escravizar outras pessoas” (p. 22). Tanto lá quanto cá, estamos no meio do redemoinho da luta de classes e diante das disputas de formas de consolidar e intensificar a subjugação e a exploração dos trabalhadores. Em períodos como o nosso, se há alguma vantagem, é que tudo vai se politizando velozmente, e os que defendem um regime de apropriação ainda mais feroz são forçados a se expor, até que começamos a vislumbrar que o que de fato desejam é uma espécie de nova escravidão disfarçada de assalariamento ou de microempreendedorismo.
Para a nossa sorte, esse volume conta com um prefácio, assinado por Marcelo Badaró Mattos, no qual encontramos ideias e referências que se convertem em pistas não apenas para viabilizar uma possível caracterização da estilística dos artigos como “jornalismo científico” – devido, em boa medida, a uma determinação do próprio veículo de distribuição do jornal, a saber, a articulação, hoje em dia incomum, entre pesquisa e linguagem corrente –, mas também para o mapeamento das teses centrais dos escritos em questão. Ele identifica ao menos duas: 1) a “centralidade da escravidão para a ‘acumulação primitiva’ de capital” – o que compromete as lendas liberais das origens do capitalismo –; e 2) a “importância de sua abolição para a luta da classe trabalhadora”, com reverberações globais inegáveis. Em relação ao primeiro argumento, Marcelo nos lembra da insistência de Marx na articulação entre a escravidão infantil na indústria têxtil da Inglaterra e a economia escravista dos latifúndios de algodão cru no Sul dos Estados Unidos, o que aprofundava brutalmente a exploração do trabalho com o intento de acumulação de capitais. Isto é, se antes da Revolução Industrial a ligação entre produção capitalista inglesa e a escravidão sulista era mais pautada pelos ganhos advindos do comércio internacional de escravizados, após o esforço de industrialização o que passa a preponderar é a obtenção sem precedentes de mais-valor, aproximando o trabalho escravo – na extração de matéria-prima para saciar o apetite da classe dominante inglesa e suas máquinas – com o trabalho aviltado e dito livre nas fábricas. É precisamente neste ponto que a primeira tese se amarra à segunda. A existência da escravidão negra nos Estados Unidos criava uma muralha para a classe trabalhadora na Inglaterra, desvalorizando-a, chantageando-a com a queda em uma situação muito mais desvantajosa e limitando o patamar de suas reivindicações. Sendo o capitalismo uma totalidade mundial, “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro”, diz Marx em O capital, citado por Marcelo, principalmente tendo em vista que foi a abolição que desbloqueou “a luta pela redução da jornada de trabalho para oito horas” (p. 10) na Grã-Bretanha. Isso nos chama atenção para algo que facilmente esquecemos a respeito do internacionalismo inerente ao marxismo: o grau de exploração de um trabalhador no Sudeste Asiático colabora para a depredação da vida de um trabalhador no Brasil.
Entretanto, as mais variadas vertentes da historiografia burguesa tendem a ignorar, ou minimizar, o papel de revoltas populares nos fenômenos históricos, conferindo ênfase desmedida às ações de sujeitos ilustres, como monarcas, chefes de Estado, comandantes militares, etc. De fato, Marx rapidamente identifica e fulmina as tentativas pioneiras de mascarar a magnitude da questão da escravidão negra para o desenvolvimento do capitalismo globalmente. Dado que a liberdade dos escravizados é enxergada não somente como causa primeira da guerra, mas particularmente como o fator decisivo para o seu desfecho, talvez valha a pena reconstituir essa contenda na trincheira ideológica da luta de classes.
Órgãos da imprensa de Londres – como de costume, porta-vozes informais de frações burguesas do que era então o principal centro irradiador e organizador do capitalismo – vocalizam “seu tom hostil contra o Norte e as suas simpatias, que mal conseguem esconder, para com o Sul”, ao mesmo tempo que dizem sentir “um profundo horror à escravidão”. O núcleo dessa argumentação, sempre segundo Marx, parece girar em torno da crença de que “a atual guerra americana não é pela abolição da escravidão” e que, portanto, não haveria razão para apoiar os nortistas automática e irrestritamente. Ainda que seja correto afirmar que “a guerra não foi empreendida com a perspectiva de pôr um fim à escravidão”, não se deve ignorar o fato de que “não foi o Norte, mas o Sul que empreendeu essa guerra” – e isso é essencial porque aponta para o detalhe que faz toda a diferença. Com efeito, apesar de ser necessário reconhecer que os dirigentes políticos dos milhões de pessoas livres no Norte tenham praticado muito mais do que uma tolerância inaceitável – a bem da verdade, uma colaboração muito mal dissimulada com o punhado de donos de escravos do Sul –, eles só começaram a se mexer para “salvar a União” de um Sul que, ao reiterar a que veio, não deixava espaço para ambiguidade: “iniciou a guerra proclamando veementemente a ‘instituição peculiar’ como o único e principal objetivo da rebelião” (p. 22). Em outras palavras, “a principal diferença entre a nova Constituição […] e a constituição de Washington e Jefferson era que agora, pela primeira vez, a escravidão era reconhecida como um instituto inerentemente bom e o fundamento de todo o edifício do Estado”, pois “trata-se de fundar uma grande república escravagista” (p. 46). Penso que não custa reiterar ao menos mais uma vez que
todo o movimento residia e reside na questão da escravidão. Não no sentido de saber se os escravos nos estados escravistas existentes devem ser emancipados ou não, mas se os 20 milhões de homens livres do Norte deveriam continuar a se subordinar a uma oligarquia de 300 mil proprietários de escravos; se o gigantesco território da República deveria se tornar um viveiro de estados livres ou de escravidão; e, por último, se a política nacional da União deveria fazer da expansão da escravidão pelas armas no México, na América Central e na América do Sul o seu lema. (p. 53-4)
Essa posição de Marx tem a ver com a sua intuição muito bem informada a respeito da provável e desejável conclusão da Guerra Civil dos Estados Unidos, isto é, a metamorfose da guerra constitucional em guerra revolucionária por meio do desfraldar da “abolição da escravidão” como bandeira de batalha do Norte e da formação de batalhões de negros libertos, incentivando, inclusive, que escravizados espalhados pelo território sulista se rebelassem, sabotassem e fugissem para se unir à luta dos unionistas, obrigando, assim, os homens brancos do Sul a se dividirem entre o trabalho produtivo e o campo de batalha (p. 213). Nesse sentido, a transição de uma perspectiva defensiva e constitucional – garantir a soberania da União sobre todos os estados e pôr um fim à expansão do solo escravo – para uma ação ofensiva, e mais propriamente revolucionária – acabar com a escravidão em todo o território e treinar regimentos de negros para o combate –, teria que se expressar em uma política que revolucionasse mais profundamente as relações institucionais e sociais no bojo do país já conflagrado. A tática era trazer e estimular as revoltas de escravizados que já ocorriam há muito tempo para viabilizar a metamorfose da contenda entre frações burguesas em uma revolução que mudasse permanentemente o caráter do regime como um todo.
Feito esse breve panorama dos assuntos mais diretamente políticos, penso que podemos terminar com um rasante sobre alguns dos temas militar e econômico abordados nesse volume, de tal sorte a destacá-los para os leitores possivelmente interessados nessas questões.
Logo de início, Engels observa que os primeiros meses de conflitos armados foram marcados por um “estéril sistema de guerra”: “um milhão de homens, divididos quase igualmente em dois campos hostis, estão há seis meses diante uns dos outros sem terem realizado uma única grande ação”. Para ele, isso ocorreu porque os dois lados beligerantes eram compostos no fundo apenas de voluntários, o que terminou por desorganizar toda a incipiente estrutura militar estadunidense, já que não havia oficiais em número suficiente para “influenciar a enorme massa de recrutas inexperientes que se acumulam no palco de guerra”. Ou seja, mesmo que fossem treinados, não haveria sargentos ou coronéis para liderá-los.
Além do mais, um conjunto de pontos básicos de organização militar é listado para demonstrar a impraticabilidade daqueles exércitos se movimentarem e atacarem de forma combinada. Engels recorda que, mesmo que houvesse coronéis civis razoavelmente instruídos para a infantaria, não haveria o hipismo militar – distinto da simples equitação civil – necessário para sustentar a cavalaria. Pior ainda seria a montagem e a mobilidade do “complexo maquinário” exigido pela armação da artilharia. Ainda que tudo isso fosse garantido, as condições histórico-geográficas dos Estados Unidos impunham sérios limites aos dois oponentes: sendo as regiões de conflito comparativamente pouco povoadas, não haveria a infraestrutura de armazéns para guardar munições, alimentar os soldados e propiciar a reprodução: “o exército deve ser seguido por armeiros, seleiros, carpinteiros e outros profissionais para manter o equipamento militar em boas condições. Todos esses requisitos estão claramente ausentes na América”. Em suma, na prática tiveram de partir do nada. Na realidade, nem o Norte nem o Sul tinham “exércitos regulares”, já que as guerras com as quais tinham se envolvido – contra a Inglaterra (1812-14) e o México (1846-48), esta última resultando na apropriação de aproximadamente metade do território mexicano – não demandaram uma organização militar muito sofisticada graças à sua extensão e ao fato de os mexicanos terem se defendido “sobretudo com uma turba”. A própria característica da guerra civil (Bürgerkrieg) condicionou a emergência de duas tropas imensas e desajeitadas de um milhão de voluntários, que colapsaram a estrutura militar existente (p. 101-4). Ao longo de meses, Engels publicou escritos militares referentes a essa guerra. Resumi aqui apenas um deles, e recomendo, portanto, a leitura de todos.
De outro ângulo, uma das consequências mais primárias dessa guerra civil no mercado global foi o bloqueio dos portos sulistas imposto pelos nortistas, o que desencadeou uma desarticulação da economia dos Estados Unidos e um grave desarranjo nas principais economias europeias, sobretudo no que se referia ao comércio de algodão. Em uma palavra, a alternativa que sobrava para os ingleses era uma reorganização às pressas ou ir até lá buscar a matéria-prima à força. Esse dado da interrupção de cadeias produtivas escancara, entre outras coisas, a complementaridade entre o latifúndio escravocrata e a indústria de ponta, bem como o segredo da produtividade do dito livre comércio. Por fim, vale ressaltar que essa edição também se destaca por incluir esse grupo de escritos, deixados por Marx, para entender essa e outras implicações mais imediatamente econômicas da guerra e que não são comumente coletados nos volumes dedicados à Guerra Civil estadunidense.
Referência bibliográfica
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A guerra civil dos Estados Unidos (Trad. Luiz Felipe Osório e Murillo van der Laan). São Paulo: Boitempo, 2022.
Texto originalmente publicado na revista Margem Esquerda #40.
Reunião dos escritos dos dois intelectuais sobre a Guerra Civil dos Estados Unidos, abordando questões como escravidão, etnia, colonialismo e eurocentrismo. Explora temas atuais, como a relação entre racismo e luta de classes, e destaca a importância da emancipação humana.
A guerra civil dos Estados Unidos tem seleção e organização de textos de Murillo van der Laan, tradução de Luiz Felipe Osório e Murillo van der Laan, prefácio de Marcelo Badaró Mattos, texto de orelha de Cristiane L. Sabino de Souza e capa de Camila Nakazone sobre desenho de Cássio Loredano.
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Lindberg Campos é professor de literaturas de língua inglesa na Universidade Federal de Campina Grande e entre suas publicações destacam-se “A Laranja Mecânica de Stanley Kubrick” (2020), “Ascensão do Inglês em São Paulo” (2023) e “A Santa Joana dos Matadouros como Crítica do Modo de Representação Capitalista: Da Crítica da Alienação Religiosa à Crítica da Economia Política” (2023).
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