Pensar a Palestina após Gaza: uma breve historiografia da Nakba

O povo palestino resiste há um século à sua desumanização, desenraizamento e expropriação. Rejeita a implantação do colonialismo em suas terras e repete, também há cem anos, que jamais teve problema com o povo judeu, com quem conviveu em paz ao longo dos tempos – diferentemente da Europa, cuja história de perseguição aos judeus culminou no Holocausto.

“On Love and Other Landscapes”, de Yazan Khalili

Por Arlene Clemesha

O mundo assiste, em 2023-24, a um dos maiores assaltos militares já perpetrados sobre uma população civil indefesa e desarmada. Sob o argumento de aniquilar o Hamas, as Forças Armadas de Israel almejam diretamente as instalações e a população civil da pequena faixa costeira. Cercado, isolado e de fato preso na Faixa de Gaza, o povo palestino está submetido a um bombardeio de proporções gigantescas, somado a uma longa e cada vez mais intensa política de restrição de água potável, mantimentos, medicamentos e demais itens indispensáveis à vida. Todas as situações que estão hoje sob o escrutínio das agências de direitos humanos e cortes internacionais – desde o massacre indiscriminado, os ataques a pessoas em busca de alimento e o bombardeio proposital de residências até as torturas, as valas comuns e as próprias declarações de intenções genocidas por parte das lideranças israelenses, para não mencionar os grotescos vídeos, postados no TikTok e demais mídias sociais, de soldados e civis israelenses zombando dos palestinos enquanto grassam o genocídio, fazendo chacota de sua fome, da destruição de seus lares, de suas vestimentas encontradas entre os escombros, enfim – evidenciam e refletem um longo processo de desumanizacão do povo palestino e nos obrigam a não apenas contextualizar, mas revisitar o significado da Nakba1 na história palestina para compreender como chegamos até aqui.

O povo palestino resiste há um século à sua desumanização, desenraizamento e expropriação. Rejeita a implantação do colonialismo em suas terras e repete, também há cem anos, que jamais teve problema com o povo judeu, com quem conviveu em paz ao longo dos tempos – diferentemente da Europa, cuja história de perseguição aos judeus culminou no Holocausto. Aliás, foi entre outras coisas como forma de expiar a culpa europeia pelo crime contra a humanidade representado pela morte de 6 milhões de judeus nos campos de concentração e extermínio nazistas, que a Europa forneceu apoio decisivo à criação do Estado de Israel. Depois de consumado o genocídio judeu, em 1947 a Palestina foi cindida por determinação da ONU – sem consultar nem dar voz aos palestinos – e transformada no palco de uma nova limpeza étnica e massacre colonial.

Para Ilan Pappé, o “aspecto mais imoral” da Resolução 181 da Assembleia Geral da ONU é que ela não previa qualquer mecanismo para impedir a limpeza étnica da Palestina. O movimento sionista já declarava abertamente, nos anos 1930, o seu desejo de desarabizar a Palestina;2 e o primeiro plano de partilha, o Plano Peel, lançado pela Grã-Bretanha em 1937, previa a “transferência populacional” e foi recebido com revolta pelos palestinos. Com efeito, é muito improvável que os países que votaram a favor do Plano de Partilha em 29 de novembro de 1947 não soubessem que ele provocaria grandes movimentações populacionais. Pode-se dizer, como faz Pappé, que esses países “contribuíram diretamente para o crime que estava prestes a ocorrer”.3

Os ataques a vilarejos e centros urbanos começaram na forma das assim denominadas “operações retaliatórias”, lançadas pelas milícias Haganá, Irgun e Lehi (a última mais conhecida como Bando Stern) logo no início de dezembro de 1947, na sequência aos atos de vandalismo de palestinos contra ônibus e mercados nos protestos contra a partilha de seu território. Não obstante esporádicos, os primeiros ataques, ocorridos entre dezembro de 1947 e início de março de 1948, levaram ao êxodo de quase 75 mil palestinos.4 Entre as primeiras operações esteve a lançada pela Irgun contra o vilarejo de Khisas, ao norte do lago Hula, em 18 de dezembro de 1947, atacado no meio da noite com dinamite e explosivos. A Irgun matou quinze aldeões e expulsou o restante para além da fronteira mais próxima, com a Síria.

Mas o marco inicial da limpeza étnica da Palestina, para Ilan Pappé, ficou a cargo da ação da Haganá em Wadi Rushmiyya, bairro árabe de Haifa, também em dezembro de 1947. Haifa era uma cidade mista com 75 mil habitantes árabes e igual número de judeus. Na manhã seguinte à partilha, a população árabe da cidade foi submetida a uma campanha de terror promovida pela Irgun e pela Haganá. Os ataques empregaram bombas e barris de pólvora e explodiram as casas para que a população não tivesse para onde retornar. Foram vários episódios que levaram a população palestina a abandonar a cidade até que, em abril de 1948, sobrassem apenas 4 mil palestinos em Haifa. A cidade viu também o estabelecimento do primeiro gueto palestino em Israel.5

Pappé destaca que tanto a versão dos historiadores israelenses tradicionais quanto a do revisionista Benny Morris estão muito longe da verdade ao retratar o caso de Haifa como um exemplo de boa vontade sionista para com a população palestina local.6 Na análise dele, em fevereiro de 1948, já se constatava uma transição das “operações de retaliação” para operações de expulsão coercitiva. Além de muitos vilarejos terem sido esvaziados, às vezes vários por dia (Pappé cita uma ação que esvaziou cinco no mesmo dia), também o foram bairros inteiros das porções árabes de Jerusalém, Jaffa e a já mencionada Haifa, nos três primeiros meses de 1948, antes do início da guerra árabe-israelense propriamente dita, em 15 de maio.

Com efeito, a implementação do Plano Dalet (o plano de guerra sionista) em 10 de março de 1948 representou um divisor de águas.7 Pappé demonstra que foi com base no mapeamento secreto da Palestina, empreendido pelo Fundo Nacional Judeu, e na formação dos “arquivos dos vilarejos”, que o Plano Dalet traçou as regiões que o movimento sionista deveria conquistar para além das fronteiras designadas pelo plano de partilha da ONU. Designou também o destino de 1 milhão de habitantes palestinos desses territórios8 e os métodos a serem empregados para expulsá-los – segundo Pappé: cercar e bombardear vilarejos e núcleos populacionais; atear fogo às casas, propriedades e bens; expulsar os moradores; demolir as casas; e, finalmente, plantar minas nos destroços para impedir o retorno dos moradores expulsos. Cada unidade paramilitar recebeu uma relação específica de vilarejos e bairros que seriam seu alvo.

O Plano Dalet foi a quarta e última versão de planos anteriores que tinham descrito apenas vagamente como a liderança sionista pretendia lidar com a presença de tantos palestinos na terra que o movimento nacional judeu reivindicava. Nas palavras de Pappé, “o quarto e último traçado dizia clara e inconfundivelmente: os palestinos têm de sair”. O historiador conclui ainda que, não obstante a muito citada ausência de uma ordem explícita de Ben-Gurion para a realização da limpeza étnica da Palestina – um dos argumentos empregados por Benny Morris para eliminar a hipótese da intencionalidade por trás da expulsão –, documentos dos arquivos das Forças de Defesa de Israel “mostram claramente que, ao contrário das afirmações de historiadores como Benny Morris, o Plano Dalet foi entregue aos comandantes de brigada não como uma diretriz vaga, mas como um conjunto de ordens operacionais de ação, claras e diretas”.9

Para o historiador palestino Walid Khalidi, o objetivo do plano foi tanto quebrar a resistência palestina, como criar um fato consumado que nem a ONU, nem os Estados Unidos, nem os países árabes conseguiriam reverter. Isso explica, segundo ele, a velocidade e a virulência dos ataques aos centros populacionais árabes.10 Passou a ser crucial, aos olhos de Ben-Gurion, acelerar a operação desde que os Estados Unidos sinalizaram que poderiam retirar seu apoio ao plano de partilha. Em fevereiro de 1948, dada a violência do conflito e a ideia de que o yishuv talvez não fosse capaz de instaurar e defender um Estado judeu, o Departamento de Estado estadunidense reconsiderou o seu apoio à partilha e, em 12 de março, apresentou uma nova proposta para a ONU, sugerindo a instauração de uma tutela internacional de cinco anos sobre a Palestina, para que ambas as partes chegassem a uma nova fórmula que suplantasse a desastrosa partilha. Os membros da ONU, reunidos na antiga sede de Flushing Meadows, Nova York, gostaram da ideia, mas, se ela não avançou, foi em boa medida devido a pressões do lobby sionista sobre o presidente Harry Truman. Como bem lembra Adel Manna: “Nesse momento crítico, a União Soviética optou por declarar seu firme apoio a favor da resolução de partilha e estabelecimento imediato de um Estado judeu. Ela ofereceu não apenas apoio político para o lado sionista, mas garantiu o fornecimento de armas pela Tchecoslováquia”.11

À medida que o plano militar era executado, dezenas de milhares de palestinos eram forçados a marchar, levando apenas a roupa do corpo, formando rios de refugiados que inundavam os países árabes fronteiriços na esperança de em breve retornar. Manna argumenta, inclusive, que a população palestina da Galileia era ciente de sua completa falta de preparo e condições para se defender do ataque das milícias sionistas. Ele conta que o termo que se passou a empregar para dizer que um vilarejo tinha sido atacado e derrotado era que o vilarejo “caiu”. Os palestinos da Galileia rejeitavam a ideia de que tivessem lutado uma guerra para a qual sequer estavam preparados; diziam que a aldeia ou o país “caiu” feito fruta madura do pé. O romance de Elias Khoury Porta do sol é centrado na Galileia e retrata esse sentimento quando Yunis, de seu leito no hospital, diz que “por Deus, não foi uma guerra, foi como um sonho”: “Filho, não acredite que os judeus venceram a guerra de ‘48. Nós não lutamos em ‘48, nós não sabíamos. Eles venceram porque nós não lutamos. Eles também não lutaram: simplesmente venceram, foi como um sonho”.12

Israel foi criada em 78% do território da Palestina histórica, e não nos 52% designados pela ONU. Nele permaneceram apenas cerca de 150 mil palestinos. A Faixa de Gaza recebeu 200 mil refugiados, cujos descendentes representam 70% da população atual. Outros 550 mil palestinos fugiram principalmente para a Cisjordânia, Jordânia, Síria e Líbano. O importante autor e defensor do direito de retorno Salman Abu Sitta foi expulso de Bersebá aos dez anos de idade, junto com sua família. Refugiou-se em Gaza e depois migrou para Londres, onde se formou engenheiro civil. Abu Sitta mapeou os 530 vilarejos palestinos esvaziados, destruídos e eliminados pelas invasões das milícias sionistas e do Exército de Israel, de finais de 1947 até os armistícios de 1949, e demonstrou que é falsa a ideia de que não há espaço para o retorno dos refugiados palestinos às suas terras e cidades de origem.

O percurso dos estudos historiográficos e recentes pesquisas em acervos militares e civis israelenses na década de 1980 enterraram as velhas narrativas sionistas relativas a um suposto “êxodo voluntário” dos palestinos. Na virada do século XXI, novas descobertas documentais do período do Mandato Britânico colocaram em xeque inclusive a versão de que a expulsão (agora amplamente aceita como fato histórico) dos palestinos existiu, mas teria sido consequência da guerra – ou que ela teria sido um objetivo sistematicamente perseguido durante a guerra e no contexto dela. A nova interpretação dizia que a guerra teve início no dia seguinte à aprovação da partilha da Palestina pela ONU, para pôr em prática um plano que previa a desocupação para a criação de um Estado étnico e majoritariamente judeu. Ou seja, o paradigma da guerra (como sendo a causa da expulsão dos palestinos) foi substituído pelo da limpeza étnica. Com ele, passou-se a entender que a guerra de 1948 foi empreendida para executar a limpeza étnica da Palestina, e que o Plano Dalet era efetivamente um plano para realizá-la. O plano foi colocado em ação em 10 de março, dois meses antes do início da primeira guerra árabe-israelense, em 1948.

Mais recentemente, os estudos da área passaram a empregar o termo “Nakba contínua” para referir-se ao fato de que o processo de expulsão, que teve seu auge em 1948, continua até os dias de hoje.13 A limpeza étnica do Neguev foi realizada principalmente de 1948 a 1952.Em 1967, outros 350 mil palestinos foram deslocados da Cisjordânia. Fora dos períodos de guerra, o deslocamento forçado ocorre por outros meios: leis e dispositivos discriminatórios, invasão e roubo de casas palestinas por colonos radicais e ordenações da “administração civil” israelense que controla a Cisjordânia (de fato um governo militar), relativas às autorizações de utilização de terras. Há cerca de duas décadas, os beduínos do vale do Jordão são atacados e reiteradamente expulsos de suas terras. A “questão beduína” representa um dos recentes pontos focais da política de limpeza étnica e expansão territorial israelense na Cisjordânia.

O pensamento nacionalista árabe sob a influência de Constantine Zurayk – o historiador sírio que cunhou o termo al-Nakba e o empregou como título de seu livro de 1948 – interpretou a Nakba como um evento do passado e foi, assim, induzido a erros em momentos cruciais de sua história. O primeiro deles foi a estratégia nacionalista árabe de Gamal Abdel Nasser, que consistiu em aceitar as fronteiras de 1949 como uma realidade estanque que poderia ser futuramente resolvida pela via das armas. Não apenas esse dia nunca chegou, como a derrota de 1967, interpretada “com as ferramentas do passado”,14 foi vista como uma espécie de repetição do desastre. O segundo foi o processo de Oslo. Nesse caso, “a rendição palestina pressupunha que a Nakba estivesse no passado”.15 Não sendo um evento do passado, mas sim um processo contínuo, Oslo tornou-se uma rendição e uma armadilha mortal para a liderança palestina.

A partir dos anos 2000, da falência dos Acordos de Oslo e da Segunda Intifada, vimos crescer, no campo da ascendente direita e extrema direita sionista, a tendência a se admitir com impressionante facilidade que a Nakba foi intencional,16 mas que lamentavelmente ela foi incompleta em 1948. Passou-se a vislumbrar a possibilidade de que novas levas massivas de palestinos fossem expulsos da Cisjordânia, de Jerusalém, ou de Israel propriamente dita. Ou seja, foi criada uma elaboração discursiva a favor da continuidade da limpeza étnica da Palestina. Pode-se dizer, como faz Elias Khoury, que essa seria uma “nova história sionista israelense”. Nela, “as atrocidades de 1948 são lidas numa chave teológica que justifica a limpeza étnica como uma necessidade para evitar uma nova Shoah”.17

O mesmo arcabouço argumentativo – de instrumentalização do antissemitismo e da memória do Holocausto – é empregado hoje para justificar o pior momento do longo processo de eliminação do povo palestino de suas terras. As assertivas de que seria necessário “eliminar o Hamas para prevenir um novo Holocausto” foram empregadas, inclusive, para justificar que o governo israelense fizesse pouco caso dos reféns, em prol do alegado objetivo de defesa.18 Em última instância, a instrumentalização da memória do Holocausto para justificar o que se reconhece como um novo genocídio corre o sério risco, segundo Enzo Traverso, de prejudicar essa memória.19

Não devemos em absoluto ignorar que o antissemitismo jamais deixou de existir. Ele continua presente na retórica de certos grupos neonazistas e neofascistas, com consequências nefastas e violentas, ou mesmo em expressões populares. Mas os grandes partidos da extrema direita europeia, como o Rassemblement National de Marine Le Pen, entre outros, adequaram a velha retórica antissemita, substituindo-a por um racismo contra muçulmanos e árabes combinado com um apoio total ao Estado de Israel. Proliferam teorias conspiratórias sobre uma suposta tomada da Europa e a subversão da sua cultura por imigrantes árabes e muçulmanos.20 Mas isso não significa a substituição pura e simples do antissemitismo pela islamofobia. As duas vertentes de pensamento racista coexistem na Europa, principalmente desde as décadas de descolonização.

Tampouco devemos ignorar que a indignação de pessoas comuns ao redor do mundo contra o chocante morticínio da população palestina corre o risco de transbordar em expressões de preconceito e raiva contra judeus, na medida, principalmente, em que o Estado de Israel se arroga a posição de representante mundial dos judeus. Essa posição foi rejeitada por mais de 17% dos judeus estadunidenses, que em 2019-20 já diziam que o Estado de Israel não era importante para a sua identidade judaica. Outros 37% declararam que era importante, mas “não essencial”.21 Desde outubro de 2023, cresce esse distanciamento. Ao mesmo tempo, reconhecer a permanência nociva do antissemitismo não significa aceitar a retórica do “novo antissemitismo” defendida pela International Holocaust Remembrance Alliance, que classifica toda crítica ao Estado de Israel, seu governo e suas políticas, como uma nova forma de antissemitsmo.22

Feitas as necessárias considerações, o fato é que falar sobre uma suposta “volta do antissemitismo” tornou-se a melhor maneira de não falar sobre o genocídio palestino. A questão em foco não é o antissemitismo, que deve ser reconhecido e combatido, mas aquilo que o discurso do antissemitismo tenta ocultar e até mesmo justificar. Fazendo coro ao alerta de Traverso, “se uma guerra genocida é lançada em nome da ‘luta contra o antissemitismo’, são os nossos valores éticos e normas políticas que saem manchados: os pressupostos da nossa consciência moral – a distinção entre opressor e oprimido, perpetradores e vítimas – correm o risco de serem virados de ponta-cabeça”.23

Após Gaza, o significado da Nakba na história palestina ganhou uma nova conotação. Saem fortalecidas as pesquisas de Ilan Pappé, bem como de Nur Masalha, que demonstram a preparação da limpeza étnica de 1948, chegando à conclusão de que a da guerra de 1947-49 foi o meio encontrado para realizá-la. Da mesma forma, a visão de Elias Khoury, que enxergou e articulou o caráter contínuo da Nakba. Mais que isso, Gaza instaura o paradigma do genocídio na história da Palestina, que ultrapassa aquele da limpeza ética. Gaza, assim, não é a culminação nem o fim de um processo, e muito menos a exceção a ele. Desde os escritos de Tareq Baconi nos anos 2010, entendemos que Gaza aponta a direção da história palestina.

Não será fácil voltar a pensar em soluções em prol da convivência pacífica na região a partir do genocídio que hoje se vive na Faixa de Gaza e que deixará sua marca irreparável por gerações. Sugiro olhar primeiro para o passado, para entender, honestamente, como chegamos até aqui, para onde aponta o curso da história e qual o tamanho do desafio pela frente. A grande diferença entre a resistência argelina que livrou seu país de mais de cem anos de colonialismo francês e a resistência palestina (hoje liderada pelo Hamas, gostemos ou não) é que o israelense não tem para onde regressar. Isso nos obriga a pensar e apelar por soluções conjuntas e em prol da convivência. Mas elas só poderão surtir efeito onde houver um reconhecimento profundo do sentido da Nakba e das injustiças historicamente perpetradas contra os palestinos.

Texto publicado na revista Margem Esquerda #43.

Notas
1 O termo, cunhado por Constantine Zurayk em 1948 para designar a catástrofe representada pela expulsão de 750 mil palestinos e a morte de 15 mil em 1947-48, traz a conotação de um evento brusco, disruptivo e causador de profunda miséria humana.
2 Nur Masalha, Expulsion of the Palestinians: The Concept of “Transfer” in Zionist Political Thought,1882-1948 (Beirute, Institute for Palestine Studies, 1992).
3 Ilan Pappé, The Ethnic Cleansing of Palestine (Oxford, Oneworld, 2007), p. 35 [ed. bras. A limpeza étnica da Palestina, trad. Luiz Gustavo Soares, São Paulo, Sundermann, 2012).
4 O número é apresentado por Ilan Pappé e refere-se aos que foram afetados pelos ataques iniciais de dezembro a janeiro de 1948; ibidem, p. 40.
5 Tom Segev, 1949: The First Israelis (Nova York, MacMillan, 1986), p. 53 e 56.
6 Ilan Pappé, The Ethnic Cleansing of Palestine, cit., p. 58.
7 A periodização surgida entre os “novos historiadores” facilita a compreensão do impacto que o Plano Dalet teve sobre a guerra. Essa periodização faz distinção entre três períodos: os meses iniciais, de dezembro de 1947 a março de 1948, quando os ataques e contra-ataques foram mais esporádicos; os meses de março a maio de 1948, quando foi colocado em execução o Plano Dalet e os ataques aos vilarejos e centros urbanos tornaram-se não apenas sistemáticos, mas operacionalmente guiados por instruções claras para cada batalhão referente a que região cairia sob seu comando e os métodos a serem empregados para executar a limpeza étnica; e os meses de guerra árabe-israelense, de maio de 1948 ao final desse ano, e os armistícios do início de 1949.
8 Ilan Pappé, “The 1948 Ethnic Cleansing of Palestine”, Journal of Palestine Studies, v. 36, n. 1, 2006, p. 16-7.
9 Ibidem, p. 17.
10 Walid Khalidi, “Palestine and Palestine Studies: One Century after World War I and the Balfour Declaration”, Journal of Palestine Studies, v. 44, n. 1, Special Issue: Operation Protective Edge, outono de 2014, p. 139; disponível on-line.
11 Adel Manna, “Al-Nakba and Its Many Meanings in 1948”, em Nakba and Survival: The Story of Palestinians Who Remained in Haifa and Galilee (Berkeley, University of California Press, 2022), p. 36.
12 Elias Khoury, Porta do sol (trad. Safa Jubran, Rio de Janeiro, Record, 2008), p. 43.
13 Enquanto muitos expressaram a ideia de que a expulsão dos palestinos não terminou com a guerra em 1949, mas continuava em escala menor e menos intensa, Elias Khoury foi provavelmente o primeiro a elaborar o seu caráter contínuo. Para ele, a Nakba não terminou em 1949 nem foi reeditada em 1967, porque seria o próprio fio condutor de uma história em execução. Ex-combatente da liberdade, ou fida’i em árabe, ferido ao redor dos vinte anos de idade, o romancista libanês trocou o rifle pela caneta e passou a coletar os fragmentos de histórias palestinas e a tecer narrativas que registram o longo e ininterrupto sofrimento e resiliência desse povo. Ver, dele, “Rethinking the Nakba”, Critical Inquiry, v. 38, n. 2 (Chicago, v. 38, n. 2, inverno 2012), p. 262.
14 Ibidem, p. 256.
15 Ibidem, p. 265.
16 Avi Shlaim, “The Debate About 1948”, International Journal of Middle East Studies, v. 27, n. 3, ago. 1995, p. 292.
17 Elias Khoury, “Rethinking the Nakba”, cit., p. 264.
18 Jamie Dettmer, “How the Holocaust Shapes Israel’s War in Gaza”, Politico, 2 fev. 2024.
19 Enzo Traverso, “On Islamophobia and Antisemitism”, Verso Blog, 16 ago. 2016.
20 Ideias articuladas em alguns livros, notadamente Submissão, de Michel Houellebecq (trad. Rosa Freire Aguiar, São Paulo, Alfaguara, 2015).
21 Justin Nortey, “U.S. Jews Have Widely Differing Views on Israel”, Pew Research Center, 21 maio 2021.
22 Neve Gordon, “Antisemitism and Zionism: The Internal Operations of the IHRA Definition”, Middle East Critique, 22 mar. 2024.
23 Ver Enzo Traverso, Gaza Faces History (Nova York, Other Press, 2024).


Na próxima segunda-feira (07/10) às 17h30, não perca a live A Palestina após Gaza, com debate entre Andrew Fishman, Arlene Clemesha e Bruno Huberman, que marca o lançamento da Margem Esquerda #43, na TV Boitempo:


Como não poderia deixar de ser, Gaza está no centro da nova edição da Margem Esquerda. A revista abre com uma densa entrevista com o historiador palestino-americano Rashid Khalidi, por muitos considerado herdeiro intelectual de Edward Said. Na sequência, o dossiê de capa esquadrinha a atual situação palestina em reflexões de Arlene Clemesha, Samah Jabr, Tithi Bhattacharya, Bruno Huberman e Ilan Pappé. É do artista plástico palestino Yazan Khalili, o ensaio visual da edição. Fechando o volume, nosso editor de poesia traduz e comenta os versos pungentes de Rafaat Alareer, assassinado em dezembro de 2023 por um bombardeio aéreo israelense no norte de Gaza, junto com dois irmãos e quatro sobrinhos.

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Arlene Clemesha é professora de história árabe contemporânea do departamento de letras orientais da USP, onde dirigiu o Centro de Estudos Árabes. Integrante do conselho diretivo do Common Action Forum, sediado em Madri, é autora, entre outros, de Marxismo e judaísmo: história de uma relação difícil (Boitempo, 1998).

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