A eleição em São Paulo
Na luta política é preciso arriscar para vencer. A disputa eleitoral não reproduz as condições de uma luta entre somente dois inimigos. Às vezes é como o bilhar, uma jogada triangular decide. Atrair o voto antibolsonarista majoritário exige enfrentar de frente Pablo Marçal.
Imagem: Reprodução/Lourival Ribeiro e Rogerio Pallatta/SBT
Por Valerio Arcary
As eleições municipais deverão confirmar, em dimensão nacional, uma relação política de forças desfavorável para a esquerda. Mas há um paradoxo. As duas correntes com maior implantação nacional são o lulismo e o bolsonarismo. Acontece que o centrão deverá ser o campo mais fortalecido nestas eleições. O desmoronamento do PSDB, partido que ocupou o lugar de liderança política-ideológica da classe dominante durante 25 anos, abriu uma crise de direção dos capitalistas.
O pêndulo da representação deslocou, vertiginosamente, para a direita. Surgiu uma extrema direita à frente de uma fração radicalizada da burguesia. E ocorreu uma pulverização da direita dura “histórica”. O papel do PSDB como centro político-eleitoral foi ocupado pelo centrão no Congresso Nacional, com Arthur Lira na Câmara dos deputados e Rodrigo Pacheco no Senado.
Mas o centrão não é um aglomerado de Centro. O centrão é uma frente esdrúxula de aliança de dez partidos de direita, entre eles, o União Brasil, herdeiro do PFL/democratas e PSL, partido usado por Jair Bolsonaro para se eleger em 2018, PSD chefiado por Gilberto Kassab, Partido Progressista, que tem um fio de continuidade com a Arena da ditadura militar, representado por Ciro Nogueira, Republicanos, construído a partir da influência da Igreja Universal de Edir Macedo e presidido por Marcos Pereira, MDB liderado por Baleia Rossi e Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo, além do Podemos, e da fusão do PTB/Patriotas.
Esse é o formato que a direita assumiu no Brasil, e deverá ser o campo político que vai sair melhor das eleições municipais. Não tem condições de disputar o poder nacional. Mas sem ele o bolsonarismo, tampouco, pode derrotar Lula em 2026.
Três tendências mais poderosas se expressaram até agora na reta final do primeiro turno das municipais de 2024: (a) o favoritismo da reeleição dos atuais prefeitos como um fenômeno nacional; (b) uma polarização entre a direita e extrema direita no Norte e Centro-Oeste; onde o bolsonarismo venceu em 2022, no Rio de Janeiro e Belo Horizonte no Sudeste, e na maior parte das cidades do Sul; (c) um fortalecimento da extrema direita à escala nacional com capilaridade ampliada.
Transversalmente, a polarização entre as duas correntes mais poderosas, o lulismo e o bolsonarismo, se manifesta com mais força no Nordeste e na capital de São Paulo. Candidaturas do PSOL e do PT podem chegar ao segundo turno em São Paulo, Fortaleza, Porto Alegre, Teresina, Natal e Goiânia; e também são competitivas em algumas cidades grandes e médias como Araraquara, São Carlos e Campinas, no interior de são Paulo, e Contagem, Juiz de Fora em Minas Gerais.
A eleição em São Paulo é a “mãe” de todas as batalhas. Mesmo se perder em quase todas as capitais fora do Nordeste, se a esquerda ganhar em São Paulo equilibra o desfecho do balanço eleitoral. A hipótese mais provável é que Guilherme Boulos deve conquistar um lugar no segundo turno. Mas o quadro, poucos dias antes da votação, é de inquietante incerteza por cinco razões:
(a) um empate técnico triplo se mantém, depois de uma campanha de uma violência inusitada e implacável, e exposição nas TVs e rádios por um mês, com pequenas oscilações na margem de erro da mediana das pesquisas; (b) a definição de voto de última hora, a hora da arrancada, deve favorecer Guilherme Boulos e Pablo Marçal, que são as candidaturas que têm maior consolidação de voto, e maior engajamento nas ruas e nas redes sociais; (c) as taxas de rejeição mais elevadas de Boulos e Marçal são um indicativo lateral, mas não irrelevante; (d) Ricardo Nunes mantém apoio de uma parcela dos eleitores de Lula nas camadas populares; (e) Tabata Amaral revela resiliência com uma votação que oscila em torno de 10%.
Embora o empate técnico seja triplo, a disputa decisiva parece ser por uma vaga entre Ricardo Nunes e Pablo Marçal que competem pelo mesmo espaço. O desenlace desta luta é imprevisível porque depende, essencialmente, do destino dos votos que respondem ao apelo da extrema direita, e repousa sobre três fatores:
(a) Pablo Marçal terá, provavelmente, uma arrancada final por que sua candidatura se apoia no núcleo mais radicalizado do bolsonarismo, e pode se beneficiar, também, de um surpreendente voto “silencioso” ou envergonhado que não é captado pelas pesquisas que Nunes não atrai; (b) Ricardo Nunes se beneficia, como a maioria dos prefeitos, de uma avaliação positiva ou até mesmo apenas regular do mandato pelas obras realizadas, mas que conta quando as expectativas estão muito rebaixadas, e vai insistir em se posicionar ao centro como opção de “segurança” contra Guilherme Boulos e Marçal; (c) o cálculo tático de voto útil em Ricardo Nunes porque seria o candidato que teria, em princípio, melhores condições de derrotar Guilherme Boulos no segundo turno.
Guilherme Boulos tem um pezinho no segundo turno, mas vai ser com “emoção”. Três principais fatores legitimam esta avaliação: (a) o espaço antibolsonarista é majoritário, afinal, Lula (47,5%) venceu Bolsonaro (37,99%) na capital, apesar da votação de Simone Tebet (8,1%) e de Ciro Gomes (4,32%), e sua presença pode ser qualitativa para atrair votos de Ricardo Nunes, enquanto a ausência de Jair Bolsonaro enfraquece Pablo Marçal, e o papel de Tarcísio de Freitas não compensa o carisma de Lula. (b) Guilherme Boulos permanece na frente nas pesquisas espontâneas, o que indica a consolidação dos seus 25%, ou algo entre 28% de 30% dos votos válidos, se a abstenção não for nem muito maior nem menor que 15% (14% em 2022, embora fossem eleições gerais), enquanto o voto de Ricardo Nunes é pouco consolidado, e a rejeição de Pablo Marçal fora do bolsonarismo seja imensa; (c) o volume de campanha impulsionada pela militância depois do debate da rede Globo pode ser um fator “arrastão” incontível para uma onda de voto útil contra o perigo do fascista Pablo Marçal, desidratando a votação de Tabata Amaral.
Acontece que a subestimação da extrema direita tem sido o mais constante erro da esquerda brasileira desde 2018. A orientação da campanha de Guilherme Boulos foi o combate contra os dois candidatos do bolsonarismo. Não escolheu um inimigo principal, ainda que com um foco maior em Ricardo Nunes. Esta escolha obedeceu ao cálculo de que Ricardo Nunes se posicionou durante toda a campanha, até esta última semana, eleitoralmente, à frente de Pablo Marçal.
Mas as pesquisas, por mais importantes que sejam, são sempre um ontem, uma foto no retrovisor. A extrema potência da campanha de Pablo Marçal é evidente nas ruas e nas redes e, mais recentemente, até nas pesquisas. Na luta política é preciso arriscar para vencer. A disputa eleitoral não reproduz as condições de uma luta entre somente dois inimigos. Às vezes é como o bilhar, uma jogada triangular decide. Atrair o voto antibolsonarista majoritário exige enfrentar de frente Pablo Marçal.
Acertar a linha para o último debate vai ser decisivo. Mas o mais importante será inflamar a confiança e incendiar o entusiasmo da militância de que é possível vencer. Uma vitória se conquista com muita luta.
Guilherme Boulos no segundo turno: às ruas, às ruas, às ruas!
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Valerio Arcary é doutor em história pela USP, professor do Centro Federal de Educação Tecnológica e autor de As esquinas perigosas da História (Xamã, 2004). Pela Boitempo, publicou Ninguém disse que seria fácil (2022).
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