Crítica à crítica do identitarismo

Os supostos críticos do identitarismo têm um programa claro em vista: reestabelecer algo impossível de ser restabelecido, ou seja, a fé na falsa universalidade burguesa. Todo o empenho deles é, afinal, defender o Estado democrático de direito cuja materialidade nas quebradas do país é a mesma do caviar.

Por Douglas Barros

Terrível estado da questão

Não é preciso ir tão longe para se dar conta do nível de rebaixamento que hoje o debate sobre o identitarismo sofre por essas bandas, basta uma pequena consulta e logo vemos que o canal Brasil Paralelo – símbolo da extrema-direita cujo revisionismo e falsificação histórica são uma constante – toma esse tema como um dos principais norteadores de seu “conteúdo”.

Outra pesquisa revela um antropólogo que insiste em dizer que “ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo”. Entre ambos há um casamento desinteressado pelo objeto que dizem criticar: eles depositam no pós-modernismo e na teoria crítica – seja lá o que querem dizer com isso – o mal causado por “essas criaturas” que reivindicam suas identidades e não se lixam para o universalismo.

Trata-se de uma tese cínica que não resiste a qualquer exame mais detalhado. Uma noção empírica que, ao obliterar a radicalidade da questão, prefere culpar as identidades excluídas do processo de modernização capitalista pelo mal-estar contemporâneo. Logo, o problema da universalidade não é a abstração promovida pelo direito respaldado na e pela propriedade, mas de grupos “histéricos” que querem mudar “até as palavras com as quais nos relacionamos”. O problema não é o da desigualdade sócio-racial, herança de um processo colonial jamais superado como horizonte administrativo, mas de grupos que querem “privilégios” como as cotas.  

Nessa toada o que resta senão o abraço carinhoso da casa-grande? Que esse tipo de abordagem tenha ganhado espaço nos grandes meios de comunicação não só revela a verdade do debate brasileiro como evidencia a maneira pela qual isto que se chama “identitarismo” revela um sintoma mais profundo do que reza a santíssima cartilha da direita.

Condições de possibilidade da gestão da identidade

Os autointitulados críticos do identitarismo, não por acaso, deixam de lado aquilo que estruturou as condições de possibilidade do gerenciamento das identidades excluídas das benesses do capitalismo. No último quarto do século XX, o aumento exponencial da produtividade e a transformação tecnológica resultaram numa nova cosmovisão. Graças à consolidação das redes e fluxos de mercado mundo afora se efetiva de maneira dramática uma nova gestão. Isso tudo nem é tocado.

No embrião dessas radicais transformações estão as crises. Não há dúvida de que nos anos 1970 a crise econômica, causada por uma estagflação – a mortífera combinação entre inflação e recessão; preços elevados e baixo poder de compra, endividamento maciço e desemprego – abriu alas para uma radical transformação no sistema de produção social. Essa crise foi fundamental ao impulso do capitalismo rumo à sua nova figura: o neoliberalismo.

Paul Volcker, presidente à época do Federal Reserve, tendo em mente as lições tiradas de 1930, diante de graves sintomas de recessão, decidiu elevar a taxa de juros para combater a inflação. No começo dos anos 1980, o índice inflacionário é revertido, mas a recuperação da economia norte-americana tem um impacto decisivo na América Latina. Lembremos: nos anos 1970 muitos governos latinos optaram por projetos de desenvolvimento financiados por capitais estrangeiros mediados por bancos norte-americanos e europeus. O que isso tudo tem a ver com identitarismo? Veremos.

Com a decisão de Paul Volcker, a elevação da taxa de juros enxugou o dinheiro no esteio da circulação fazendo com que as dívidas contraídas pelos países da região sul disparassem. Com dólares em menor circulação, uma abrupta subida no seu valor dilapidou as moedas dos países que realizaram o financiamento tornando impossível a eles honrarem suas dívidas. Foi esse processo que em 1982 levou o México à moratória causando seu colapso econômico.

No Brasil, vimos um lastro de inflação que depreciou radicalmente os valores da antiga moeda e aprofundou de maneira radical as desigualdades de renda nos anos 1980. Assim, a fuga de capitais impôs o aprofundamento do subdesenvolvimento às economias latinas que, sob regimes ditatoriais, ainda apostavam na sonhada possibilidade de se desenvolver.

Não obstante, a crise dos anos 1970 altera também a paisagem industrial das economias desenvolvidas. Essa década se tornou, portanto, o lugar de entrecruzamento da revolução tecnológica, da transformação do ideário econômico e do surgimento de um discurso responsável por dirigir uma nova cosmovisão orientada a partir da gestão identitária da vida social.

A jurisdição passou a advir de órgãos políticos internacionais e agências reguladoras que, no ambiente internacional, buscavam maximizar vantagens competitivas das empresas sob sua tutela. A concorrência passou a integrar países se regulando por uma nova propriedade: a informação.

A propriedade da informação se torna uma nova propriedade privada que, por sua vez, redefine as relações de classe e orienta as formas de gestão governamentais.1 Com a informação assegurada pela internet, a esfera da circulação se ampliou, com o controle sofisticado da produção, possibilitando também a organização da distribuição massiva. O poder da informação se tornou decisivo para constituição de fluxos direcionados de produção mediados por ferramentas probabilísticas na gestão da demanda. O excedente é que isso permitiu também orientar uma gestão governamental de grupos de pertencimento demarcados pela identidade.

Assim, a nova infraestrutura, resultante da revolução microeletrônica e da comunicação, possibilitou uma economia efetivamente global. Os mercados de capitais tornaram-se interdependentes e integrados; a unidade temporal dinâmica uniu, sob o manto das transações financeiras, países do mundo inteiro e agentes de mercados de várias regiões do globo. Para o sucesso da empreitada foi imperioso o processo de desregulamentação e de liberalização radical de transações internacionais.

Em 1987, em Londres, cidade-símbolo da Revolução Industrial, se cumpriu uma etapa decisiva do novo espírito do velho capitalismo: a consolidação financeira através da construção de mercados digitais e integrados pela internet.2 Isso permitiu mobilizar capitais de todas as fontes e de qualquer lugar.

As “maravilhas” desse admirável mundo novo foram centrais para organizar uma infraestrutura tecnológica que, através de sistemas interativos de informação organizados por computadores potentes, tornou possível lidar com a alta complexidade das transações. Na sombra desse processo, um poderoso esquema de gestão dos conflitos políticos se processava com a organização identificatória de grupos “vulneráveis”.

Diante do fracasso das promessas liberais, que previam a integração dos racializados, e daqueles cuja identificação fosse divergente da hegemonia dominante, a identidade se centra como forma de gestão para a pacificação social. Esses pressupostos, delimitados pela identificação estatal, serão ativados de maneira inédita para reconfigurar a organização social e integrar identidades à meritocracia e à competição necessárias ao novo modelo de gestão.

Daí a entrada em ação dos dispositivos de governo que orientam as demandas de grupos específicos. Há uma via de mão dupla exercida por eles: por um lado, enfraquecem a autonomia dos grupos divergentes, por outro, servem à identificação estatal que possibilita a otimização das demandas orientando a gestão das identidades. Assim, com a reversão da política em gestão, com a violência radical da vigilância, com a militarização do espaço social, a administração da identidade impõe uma adesão forçada à colaboração.

A tal universalidade

O resultado dessas mudanças demonstrou que aquele universalismo relacionado ao Estado democrático de direito não podia mais ocultar o sistema de exclusão das identidades, historicamente excluídas, que precisarão ser postas em vigilância, pois fica evidente o retumbante fracasso de sua absorção pela velha figura do capitalismo: o fordismo.

Já nos anos 1950 fica manifesto aquilo que o conservador Tocqueville previra no século XIX: a democracia liberal era incapaz de resolver o problema da raça. O direito, na sua suposta imparcialidade, organizado a partir da abstração da realidade histórica, se viu numa encruzilhada. Com os modelos aritméticos de abstração em nome da troca e dos contratos, diante das contradições no terreno social, o aparato jurídico se deparou com sua verdade: sua universalidade estava restrita ao homem branco e proprietário.

Assim, a falsa universalidade formal do direito veio para o teto quando o processo de globalização tornou inabsorvível o grosso da população mundial diante da crise permanente do capital. É precisamente nesse momento que a identidade se assenhora de maneira contraditória do quadro sócio-político via gestão. A centralidade na gestão identitária expressa, portanto, um sintoma do ocaso das formas de absorção de identidades excluídas no desenvolvimento capitalista.

Se o objetivo do capital, enquanto sujeito do processo, nada mais é do que transformar dinheiro em capital, é preciso relembrar que, num momento de difícil acesso à informação, as ações eram valorizadas de acordo com a lucratividade das empresas. Eram os lucros no final do balanço que incentivavam o financiamento. Com a revolução informacional, ocorre algo que muda radicalmente esse critério: a valorização de um título não tem mais relação direta com os lucros de curto prazo de uma empresa.

A valorização de ações das empresas durante a década de 1990 passaram a se autonomizar na sua relação com o desempenho lucrativo direto na produção. Um exemplo dentre vários basta para mostrar esta tendência que se revelaria como norma: a Yahoo, com apenas 673 empregados, foi avaliada em US$33,9 bilhões, apesar de ter uma receita trimestral de US$16,7 milhões, já a Boeing, só um pouco mais valorizada que a Yahoo – US$35,8 bilhões –, empregava 230 mil trabalhadores e tinha uma receita trimestral de US$347 milhões de dólares.3

E o que isso tem a ver com a gestão da identidade? A imagem é tudo e o processo de valorização financeira é mediado pela aparência de segurança que conta, no caso dos Estados, com medidas tutelares organizadas pelo Banco Mundial. A necessidade de que o ambiente favorável para os negócios necessite de um governo local como um vigilante de qualquer possível conflito se torna a regra global. A vida social de um país será administrada tal como uma empresa cujas expectativas de valorização futura se dão por meio da boa imagem produzida internacionalmente.

Se o valor financeiro se autonomiza em relação ao desempenho real dos lucros, isso é permitido também pelas expectativas propiciadas no ambiente institucional. Assim, para garantir os investimentos, toda a política estatal terá que ser submetida à economia, e aquilo que não foi passível de resolução precisará ser posto em vigilância. É aqui que entra uma verdadeira cadeia de pacificação social através da vigilância e produção de identidades.

O que à primeira vista parece uma simples dispersão da produção comandada pela pulsão do lucro é, na verdade, muito mais complexo: uma combinação de alianças e projetos de cooperação que precisam de proteção local, descentralização de grandes empresas aliadas a uma rede de pequenas e médias empresas conectadas. O excesso desse processo é a manutenção da gestão estatal que dilui qualquer possível conflito político. O fato de que a ideia da identidade apareça como um dado global não é mera coincidência. Todas as “democracias” do mundo falam em termos identitários.

Sendo assim, a reestruturação produtiva ocasionou também uma reestruturação da engenharia social cujos impactos serão enormes. A reunião e dispersão de mão de obra, em qualquer lugar e a qualquer momento, operacionalizaram uma concorrência entre trabalhadores causando a individualização e a autorresponsabilização no lugar da velha solidariedade de classe. É nesse ambiente que a identidade entra como paradigma sobrevivencialista de gestão.

Os supostos críticos do identitarismo, mencionados acima, sequer intuem isso porque eles têm um programa claro em vista: reestabelecer algo impossível de ser restabelecido, ou seja, a fé na falsa universalidade burguesa. Todo o empenho deles é, afinal, defender o Estado democrático de direito cuja materialidade nas quebradas do país é a mesma do caviar. O identitarismo para eles é um ato de escolha, uma proposição política feita por “gente mal-intencionada” que quer “destruir o universalismo” em nome do “relativismo” e da “autoridade grupal”. O caráter conspiratório da análise vem a galope. O fato, entretanto, de direcionarem sua acidez aos grupos historicamente excluídos diz muito da posição de classe que ocupam.

Notas
1 Cf. WARK, M. O capital está morto. Traduzido por Dafne Melo. São Paulo: Editora Funilaria e sobinfluência edições, 2022.
2 Cf. HAUSMANN & STURZENEGGER. U.S. and Global Imbalances: can dark matter prevent a Big Bang?
3 ROUBINI, N. A economia das crises: um curso relâmpago sobre o futuro do sistema financeiro internacional. Tradução Carlos Araújo. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2010.


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Douglas Rodrigues Barros é psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor filiado ao Laboratório de experiências coloniais comparadas, ligado ao Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor na pós-graduação em filosofia da Unifai. Investiga principalmente a filosofia alemã conjuntamente com o pensamento diaspórico de matriz africana e suas principais contribuições teóricas no campo da arte e da política. Escritor com três romances publicados, também é autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra) e Hegel e o sentido do político (lavrapalavra).

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