“A substância” e o imperativo corrosivo da melhor versão de si mesmo

A psicanálise coloca os ideais no centro de muitas das problemáticas dos sujeitos contemporâneos. Quando o ideal se mostra muito consistente, a singularidade fica comprometida e as narrativas que universalizam corpos e subjetividades podem se tornar muito destrutivas. A melhor versão de si mesmo, jargão do coaching e do discurso neoliberal de produtividade acaba por se transformar em um imperativo corrosivo que, claro, incide com mais ferocidade sobre as mulheres.

Por Cauana Mestre

Seja a melhor versão de si mesmo! Quantas vezes você já ouviu esse imperativo? Levá-lo às últimas consequências é a premissa do filme A substância, da diretora francesa Coralie Fargeat. Elizabeth Sparkle (Demi Moore) é uma atriz e dançarina que acaba de completar 50 anos. Depois de dominar o estrelato e ganhar seu lugar na calçada da fama, ela é descartada por ter atingido uma idade que, para as mulheres, é sinônimo de irrelevância e invisibilidade em uma sociedade que idolatra a juventude. Elizabeth, de início, parece feliz dançando no programa televisivo que leva seu nome, até ouvir o diretor — interpretado por Dennis Quaid — falar sobre sua idade e seu corpo. O personagem de Quaid se chama Harvey, o que talvez antecipe muita coisa sobre o filme: o nome pode ser uma referência a William Harvey — médico britânico que descobriu e descreveu os caminhos circulatórios do sangue no corpo humano no século XVII — e carrega ainda outros significados em inglês, como força ou batalha. Os homens, nesse filme, portam uma violência asquerosa e associam a masculinidade não apenas à força viril, mas ao ridículo da covardia.

Depois de ouvir as agressões e antecipar uma demissão, Elizabeth sofre um grave acidente. “Milagrosamente nada lhe aconteceu”, diz o médico, mas é tarde demais, pois ela já está destruída. Então aparece A substância, antídoto contra o envelhecimento que lhe permitira criar, a partir de si mesma, um outro self: sua versão mais jovem, a melhor versão, interpretada por Margaret Qualley. Mas há um aviso: é preciso trocar a cada 7 dias, vivendo cada uma das duas versões alternadamente para manter o equilíbrio — mais um imperativo que recai sobre a mulher, sempre pressionada a sustentar múltiplos papéis sem deixar nada escapar. Não há equilíbrio com os ideais sem matá-los um pouco, como faz Virginia Woolf com o Anjo da Casa, ideal da mulher dócil que lhe impedia de escrever. No filme de Fargeat, é fácil prever que as coisas vão sair do controle, afinal, quando deixamos nossos ideais no comando, o mundo inteiro se torna hostil.

Body horror é um subgênero do terror que explora o corpo humano de forma explícita. Então você já pode imaginar o que está em cena aqui: o corpo humano feminino abusado, transfigurado, manipulado, aterrorizado. Não por acaso o sangue é um elemento primordial da obra e causa tanto mal-estar que é impossível não pensar sobre o rechaço social que existe em torno da menstruação, um rechaço que obriga as meninas a esconderem essa parte tão natural da biologia feminina desde o primeiro contato com o sangramento. O corpo de Demi Moore — essa mulher extraordinariamente linda —, todo aberto e deitado no chão frio de um banheiro asséptico, é uma das expressões mais radicais que o cinema já produziu sobre as violências que cometemos contra as mulheres diariamente.

Em A filha perdida, de Elena Ferrante, a personagem Leda decide passar alguns dias no idílico litoral da Itália, onde reflete sobre sua condição de mulher e mãe. Assim que chega ao apartamento alugado, depara-se com uma linda cesta de frutas sobre a mesa, mas, ao examiná-las, percebe que estão podres. Em outra parte do livro, da boneca da menina Elena sai um líquido escuro parecido com vômito e, do seu umbigo, salta aos poucos uma minhoca. Ferrante também é categórica em narrar as ambivalências escondidas da vida feminina, em particular da maternidade — e grande parte do sucesso de sua obra é consequência dessa honestidade. No filme de Fargeat, no entanto, já não estamos no campo da metáfora: tudo é extremamente gráfico, explícito e excessivo.

A psicanálise coloca os ideais no centro de muitas das problemáticas dos sujeitos contemporâneos. Quando o ideal se mostra muito consistente, a singularidade fica comprometida e as narrativas que universalizam corpos e subjetividades podem se tornar muito destrutivas. A melhor versão de si mesmo, jargão do coaching e do discurso neoliberal de produtividade acaba por se transformar em um imperativo corrosivo que, claro, incide com mais ferocidade sobre as mulheres. É assim que clínicas se enchem de pacientes em busca de uma perfeição estética inalcançável, entupindo os corpos de procedimentos e vendendo representações cada vez mais generalistas de beleza.

A substância se passa no que parece ser uma Los Angeles distópica, mas nem tanto. A indústria do cinema americano é uma das grandes culpadas pela misoginia da qual a própria Demi Moore padeceu depois de ser uma das atrizes mais bem pagas do cinema mundial durante seu sucesso que, como quase sempre, foi vigoroso na juventude. Ela nos faz pagar pelas atrocidades acometidas contra as mulheres oferecendo, agora, não apenas sua beleza estonteante, mas uma atuação impecável no que talvez seja o melhor papel de sua carreira.

Ao sair do filme, discuti com meu marido a necessidade dos momentos finais. Não teria sido melhor encerrar um pouco antes daquele excesso intragável? Agora entendo que não, pois a violência, diferentemente da agressividade, é sempre um excesso e é assim que precisamos vê-la para entender o poder que ela tem de nos destruir.

Não sei como é seu estômago para corpos deformados e sangue em abundância, mas talvez eu possa assegurar que nada te prepara para esse filme. Ainda assim, eu recomendo que você o assista e que se deixe marcar por ele. Pode ser que você o considere genial, como eu, pode ser que o odeie e pode até ser que você se levante e vá embora antes de ele acabar, mas garanto: você não vai esquecê-lo.

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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.

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