O que é imperialismo ecológico?
No atual estágio do aceleracionismo, a periferia precisa vencer a barreira da invisibilidade que lhe é imposta para desnudar a hipocrisia das boas intenções institucionais – governamentais e não governamentais –, que não só não trazem soluções reais, como ainda têm responsabilidade sobre a recriação bestializada da rapinagem dos recursos naturais (muitos dos quais não renováveis) e da vulnerabilização social extrema.
Por Maria Orlanda Pinassi
“O capitalismo tem roubado tudo aquilo em que consegue botar as mãos,
incluindo petróleo, nutrientes do solo e metais raros.”
Kohei Saito em O capital no Antropoceno
No breve período de 2016 a 2023, Kohei Saito publicou três livros substanciais sobre a crise climática, um drama sem precedentes que assola todo o planeta. Entre eles há diferenças importantes; ainda assim, é possível supor uma trilogia que acompanha o amadurecimento das ideias articuladas por esse jovem filósofo, professor da Universidade de Osaka, em torno da obra marxiana, da ecologia e da revolução.
O ecossocialismo de Karl Marx apresenta os primeiros resultados da sua investigação acerca das pegadas ecológicas de Marx, distinguindo-se daqueles que John Bellamy Foster chamou de “ecossocialistas da primeira fase” (André Gorz, James O’Connor, Michel Löwy e Alain Lipietz), os quais, apesar de reconhecerem as contribuições de Marx sobre a questão, consideram-nas “incompletas e datadas demais para terem, atualmente, real relevância”. Saito, ao contrário, aponta a atualidade da produção marxiana sobre a temática.
A teoria da alienação de Marx, densamente estudada por István Mészáros, foi referência importante na construção de suas análises tanto quanto para os “ecossocialistas da segunda fase”, a chamada escola da ruptura metabólica, criada há duas décadas por John Bellamy Foster e Paul Burkett, entre outros. E, se pensarmos nos escritos de juventude (Manuscritos de 1844) sobre as mediações de primeira ordem (não alienadas) e as mediações de segunda ordem (alienadas e fetichizadas sob o capital), Marx parecia de algum modo antecipar as noções de metabolismo (Cadernos de Londres, 1851) e de ruptura metabólica entre ser e natureza, que seriam bases fundamentais de sua metodologia. O termo foi apropriado por Marx depois de exaustiva leitura (feita entre 1865 e 1866) de livro de Justus von Liebig dedicado à química agrícola.
Em seu terceiro e mais recente livro publicado na língua inglesa, Marx in the Antropocene: Towards the Idea of Degrowth Communism [Marx no Antropoceno: para uma ideia de comunismo do decrescimento], ainda não publicado no Brasil, Saito aporta numa terceira fase de ecossocialistas1 na medida em que aprofunda os estudos da questão ambiental em Marx percorrendo a infinidade de apontamentos contidos nos Cadernos ecológicos. Dessa vez, mais do que a problemática da alienação, seu interesse maior recai sobre os Cadernos de ciências naturais, de 1868.2 O impacto causado pelas anotações de Marx em seus últimos quinze anos de vida sobre Liebig, química agrícola, biologia e mineralogia reforçou a ideia de que a ecologia ocupou um lugar prevalecente nos seus escritos.
O capital no Antropoceno, ora lançado pela Boitempo – o segundo conforme a trilogia suposta –, faz a transição entre o primeiro e o terceiro estudos que possuem viés mais exegético. Aqui, Saito mergulha nos aspectos fenomênicos da realidade social e ambiental das últimas décadas apresentados em linguagem mais ágil, em exposição mais didática. O formato adotado parece compor material de intervenção política visando a substantivar a necessidade urgente de se criarem mecanismos de uma luta radical contra os padrões de produção e de reprodução permanentemente ativados para a expansão e a acumulação de riqueza para o capital. Para isso, investiga as causas que para ele são sempre decorrentes do processo de produção destrutiva; as explicações permanecem mediadas pelo universo conceitual de Marx; e, ao abordar as saídas para a crise climática, faz um mapeamento das mais variadas experiências de luta popular ensejadas desde o Norte ao Sul global.
Como se disse, Saito alerta para a urgência de um combate definitivo ao capital, pois, de modo inédito, a humanidade enfrenta os limites mais absolutos do sistema, sobretudo em função da emissão de CO2 para a atmosfera pela queima ininterrupta de combustíveis fósseis desde a Revolução Industrial. A tecnologia revolucionária deu livre curso a um crescimento desmedido da economia e, consequentemente, aos seus efeitos cumulativos sobre a elevação descontrolada da temperatura, secas e chuvas extremas, incêndios gigantescos, derretimento das calotas polares e elevação do nível dos mares, zonas de sacrifício em expansão, contaminação generalizada dos bens comuns e perda acentuada da biodiversidade. No entanto, como ele enfatiza, é a imensa e esmagadora maioria vulnerável dos povos que habitam o Sul global que mais padece as consequências do expansionismo destrutivo, sendo compelida a um sem-fim de migrações climáticas e a uma vida errática em busca de sobrevivência por meio de trabalhos degradantes. Tudo isso é demonstrado para comprovar a irracionalidade autofágica do sistema de reprodução do metabolismo socioambiental do capital.
Saito expõe, como poucos críticos do mundo privilegiado, a questão socioambiental desde a incorrigível desigualdade substantiva que preside tal forma societária para a qual hierarquia e dominação são imperativas. O enfoque torna evidentes os limites e impossibilidades das saídas ensejadas pelo próprio sistema. Por isso, não é mero acaso o fiasco de todas as promessas de controle pelos organismos internacionais – Conferência da ONU sobre a Mudança do Clima (UNFCCC COP), Painel Internacional sobre Mudanças Climática (IPCC), Green New Deal etc. O mesmo fiasco decorre da tentativa de se forjarem um keynesianismo ambiental e um desenvolvimento sustentável (ODS), de se estabelecerem metas para reduzir ou mesmo de atingir emissão zero de CO2 e de se obter êxito no controle dos impactos socioambientais com a produção de energias renováveis. O fiasco não é fortuito, pois resulta da necessidade primordial de preservar a desigualdade, o roubo, a produtividade, a exploração e a transferência dos danos ambientais para o Sul global. Diante da total incapacidade de frear o ritmo do crescimento, nada soa mais sem sentido do que o propósito de desmaterializar o capital.
A estratégia de transferência de danos mediante o imperialismo ecológico tem vida longa na história do capitalismo; no entanto, ela se atualiza em conformidade às exigências do crescimento. Hoje, isso se apresenta da seguinte forma: para os países do centro, os promissores carros elétricos e a inteligência artificial (além de fazerem a fortuna de uma estreitíssima elite de ocasião) surgem como a salvação para o dilema entre expandir a economia e preservar o meio ambiente (decoupling). Enquanto isso, nas profundezas da periferia, multiplicam-se as crateras abertas pela extração dos minerais essenciais à Indústria 4.0, predominam os campos pelados e esterilizados pela monocultura, pela transgenia e pesticidas caros ao agronegócio; o trabalho escravo e o banditismo também são fatores recorrentes no processo em que todos os biomas destruídos se veem pela ganância. Enfim, no atual estágio do aceleracionismo, a periferia precisa vencer a barreira da invisibilidade que lhe é imposta para desnudar a hipocrisia das boas intenções institucionais – governamentais e não governamentais –, que não só não trazem soluções reais, como ainda têm responsabilidade sobre a recriação bestializada da rapinagem dos recursos naturais (muitos dos quais não renováveis) e da vulnerabilização social extrema.
Lembre-se de que este livro se iniciou com uma crítica ao “estilo de vida imperialista” e ao “imperialismo ecológico”. É uma crítica à forma como vidas ricas e confortáveis nos países desenvolvidos são possíveis através da expropriação da riqueza do Sul global e da transferência dos danos ambientais (Saito, O capital no Antropoceno, p.208)
Crescer sem degradação socioambiental é, portanto, uma contradição nos termos sob a égide do capital. No horizonte, a extinção de tudo o que vive deixou de ser apenas um risco fartamente anunciado por cientistas para tornar‑se uma realidade próxima caso perdure o padrão de crescimento e espoliação sem limites da civilização pautada na lei do valor, no trabalho abstrato e no dinheiro.
Para Saito, assim, a crise é a própria expressão da produção e da reprodução de riquezas para o capital; não é episódica, mas condição imanente ao sistema, condição essa que se agrava no acúmulo de contradições e de fenômenos decorrentes de uma economia que se agiganta sem qualquer preocupação com os estragos causados por esse crescimento. Desse modo, nosso autor não só confirma a atualidade do universo conceitual de Marx, que por inúmeras vezes alertou para a onipotência do capitalismo, como abre mais janelas ao dar ênfase à última fase do revolucionário alemão.
Um dos momentos mais interessantes de O capital no Antropoceno apresenta instigante análise do conteúdo encontrado nos quatro esboços de cartas redigidos por Marx (1881) para responder aos questionamentos de Vera Zasulich e demais socialistas russos acerca do papel que o alemão atribuía às comunas russas no processo de transição revolucionária. Mais do que a conhecida resposta lacônica de Marx para Vera, são os detalhes abordados nos esboços que comprovam a sua preocupação real a respeito de uma forma de produção agrícola nacional, coletiva e sustentável que teria muito a contribuir. Para Saito, enfim, o episódio revela um importante ponto de inflexão a respeito do desenvolvimentismo capitalista vislumbrado por Marx e da tomada de posição em torno de um comunismo decrescionista (O capital no Antropoceno, p. 117).
Podemos discordar por vezes das proposições analíticas de Kohei Saito acerca das suas afirmações sobre a ecologia e o decrescionismo contidos na obra marxiana, mas temos que admitir que esse jovem marxista é criativo e ousado. Faz-nos pensar, nos provoca e nos desafia a romper a bolha interpretativa e anti-histórica que se formou em torno de Marx.
Notas
1 A respeito do debate em torno das interpretações em torno do Marx ecológico, ver Laura Luedy e Murillo Van der Laan, “Dualismo cartesiano apocalíptico ou monismo social antiecológico? As disputas entre a escola da ruptura metabólica e a ecologia-mundo”.
2 Kohei Saito foi um dos organizadores desses Cadernos.
Qual é a relação entre capitalismo, sociedade e natureza? Em O capital no Antropoceno, o filósofo japonês Kohei Saito propõe uma interpretação dos estudos de Karl Marx frente aos problemas ambientais que enfrentamos no século XXI. A mensagem central da obra é que o sistema capitalista dominante, de alta financeirização e busca ilimitada do lucro, está destruindo o planeta, e só um novo sistema, pautado pelo decrescimento, com a produção social e a partilha da riqueza como objetivo central, é capaz de reparar os danos causados até aqui.
Best-seller com mais de 500 mil exemplares vendidos, o aguardado livro do filósofo japonês Kohei Saito revela, de maneira acessível, como o sistema capitalista dominante, de alta financeirização e sua busca ilimitada do lucro, está destruindo o planeta.
A obra tem tradução direta do japonês de Caroline M. Gomes, apresentação de Maria Orlanda Pinassi, orelha de Jean Tible e capa de Maikon Nery.
🚀Assine o Armas da crítica até o dia 15 de outubro e receba:
📕📱 Um exemplar de O capital no Antropoceno, de Kohei Saito em versão impressa e e-book
📅Calendário Boitempo 2025
🔖 Marcador + adesivo
📰 Guia de leitura multimídia no Blog da Boitempo
📺 Vídeo antecipado na TV Boitempo
🛒 30% de desconto em nossa loja virtual
🔥 Benefícios com parceiros do clube
***
Maria Orlanda Pinassi é professora aposentada de sociologia da Unesp. Autora, entre outros, de Da miséria ideológica à crise do capital (Boitempo, 2009), atualmente pesquisa neoliberalismo no Brasil, mineração, Amazônia e lutas sociais.
Deixe um comentário