Brasil e as drogas: a vanguarda do atraso?
A "guerra às drogas" nunca foi apenas um controle sobre substâncias psicoativas, mas um modo de organização da sociedade que extrapola a regulação das substâncias e incide sobre a vida das pessoas entendidas pelo capitalismo racializado como indesejáveis, apesar de paradoxalmente necessárias para a expansão do capital.
Por Thiago Rodrigues e Daniela Ferrugem
Pode parecer óbvio, mas é importante lembrar: a “guerra contra as drogas” é travada contra pessoas e não contra “as drogas”, afinal, estas são substâncias inanimadas. As pessoas em questão, por sua vez, são precisamente as mais pobres, de pele mais escura, migrantes, imigrantes, periféricas, faveladas e com baixo nível de educação formal mundo afora.
Apesar de ser encabeçada e impulsionada pelos Estados Unidos a partir dos anos 1970, a war on drugs não é uma novidade. Séculos de preconceitos de raça, de classe, de gênero, de origem e contra a experimentação de estados alterados de consciência estavam incrustados na superestrutura de sociedades em todo o globo quando as primeiras leis e tratados antidrogas começaram a ser produzidos na década de 1910. Também no Brasil.
Do mesmo modo que não foi preciso que nenhuma potência estrangeira impusesse à sociedade brasileira o racismo, a exploração do capital, a violência de gênero e as formas genocidas contra povos originários, a proibição às drogas e os seus dispositivos repressivos têm raízes locais antigas. Em alguns casos, o proibicionismo praticado por brasileiros antecipou-se a tendências mundiais, como com a maconha.
Foi do Brasil a primeira lei municipal a criminalizar a maconha (no Rio de Janeiro de 1830); foram médicos e diplomatas brasileiros que defenderam, nos anos 1920, que a maconha deveria ser proibida em todo o mundo por ser o “ópio dos pobres”; e a Cannabis foi proibida antes aqui (1932) do que nos Estados Unidos (1936). Hoje os tempos são outros, práticas sociais e costumes foram modificados, mas o regime de proibição das drogas – o proibicionismo – segue demonstrando ter grande capacidade de se adaptar às demandas de lucratividade do capital. No Brasil, portanto, existe um proibicionismo à moda da casa.
Para funcionar, o proibicionismo precisa de alguns elementos: 1) a existência de valores morais que repudiem estados alterados de consciência e prazeres sensoriais, 2) a presença estrutural de práticas racistas, xenofóbicas e de ódio a divergentes sexuais ou comportamentais, 3) a necessidade de conter pela violência uma massa cada vez maior de excluídos e marginalizados, 4) um aparato jurídico-político controlado por e a serviço de uma elite a fim de administrar essa massa em crescimento, 5) o investimento da indústria farmacêutica e da classe médica para o uso de algumas substâncias enquanto outras, associadas a terapêuticas de grupos sociais marginalizados e racializados, são perseguidas, 6) o funcionamento de um poderoso mercado legal para drogas cujo consumo é estimulado, tanto para o uso recreativo (álcool, tabaco), quanto para o médico (benzodiazepínicos, opioides, anfetaminas e, crescentemente, o canabidiol – CBD – extraído da Cannabis).
O Brasil testa positivo para todos os itens acima e, apesar das movimentações progressistas no edifício global do proibicionismo, o país continua apegado ao proibicionismo, com algumas poucas brechas que se abrem enquanto muitas portas se fecham, ou ameaçam bater, no ambiente fascistoide-neopentecostal em que está afundado.
Alvos negros
A “guerra às drogas” nunca foi apenas um controle sobre substâncias psicoativas, mas um modo de organização da sociedade que extrapola a regulação das substâncias e incide sobre a vida das pessoas entendidas pelo capitalismo racializado como indesejáveis, apesar de paradoxalmente necessárias para a expansão do capital. Trata-se de uma política que tem na sinergia entre ódio de classes e racismo o dispositivo ideal para atualizar o colonialismo, ajudando a conformar as disputas no interior da luta de classes.
É a classe trabalhadora, e sobretudo a juventude negra, a mais vitimada pelas disputas por territórios, pelas incursões militarizadas das polícias contra traficantes e pelos conflitos dos grupos ilegais entre si. Décadas de confrontos armados em nome dessa “guerra” criaram as condições para que a circulação de inúmeras outras mercadorias, bens e serviços ilegais se tornassem altamente lucrativas nas cidades do Brasil.
É nas periferias que as violências do proibicionismo se mostram mais deletérias, já que todo o tecido social é controlado a partir do poder do tráfico e das tentativas do Estado de contra-arrestá-lo. É nas favelas e periferias que as escolas são fechadas quando há confrontos, que o comércio é extorquido, que a vida cotidiana da população é marcada pela brutalidade policial, pela coação de facções e de milícias e pela ameaça constante de uma “bala perdida” fatal. Nas áreas urbanas precarizadas, que concentram a população mais vulnerável e marginalizada, a “guerra às drogas” funciona como dispositivo de controle social que é operado simultaneamente pelas práticas disciplinares e repressivas de milícias, por facções do tráfico e por forças de segurança do Estado. Essa imensa população é, portanto, sobregovernada e superexplorada num ambiente estruturado pelas “disputas do tráfico, das milícias e de uma polícia que se faz presente não para a garantia da segurança e da vida, mas para a repressão, quando não o extermínio”.1
Passos à frente, passos atrás
Em junho de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu um longo julgamento no qual ficou decidido que pessoas flagradas com até quarenta gramas de maconha ou seis pés de Cannabis deveriam ser consideradas “usuárias” e não “traficantes”. A decisão veio como uma tentativa de superar o vácuo deixado pela Lei n. 11.343/2006, que diferenciou traficantes de usuários, mas não estabeleceu uma métrica quanto às quantidades de drogas ilegais máximas para definir quem era o quê. A lei deixou a decisão a cargo da autoridade policial (delegado/PM), o que terminou por oficializar a seletividade penal,2 fenômeno pelo qual apenas um determinado perfil de pessoas é efetivamente impactado pelo aparato repressivo estatal.
No caso brasileiro, esse perfil é o de pessoas negras, pobres, de baixa escolaridade, moradoras de favelas e periferias. O resultado da Lei de Drogas foi um crescimento exponencial da população carcerária brasileira. Hoje, o Brasil tem a terceira maior população prisional do mundo, com aproximadamente 850 mil presos. Estima-se que um terço deles esteja nessa condição por crimes relacionados a drogas.3
Ao contrário do alardeado, o STF não “descriminalizou” (deixou de considerar a conduta crime), tampouco “despenalizou” (diminuiu as penas), o uso ou porte de maconha. O art. 28 da Lei de Drogas não foi alterado, permanecendo a previsão de “penas alternativas à prisão”. Portanto, a pessoa condenada por uso ou porte de Cannabis continuará perdendo o réu primário e ficando com a ficha suja. A polêmica foi grande, mas a decisão nada teve de radical. Além disso, ela bizarramente não se estende às outras drogas ilegais, que continuam sem métrica definida.
Para completar, a votação no STF foi constrangida pelo trâmite simultâneo da Proposta de Emenda Constitucional n. 45, que visa incluir a criminalização do uso de drogas na Constituição Federal. Tirando o período da Lei Seca nos Estados Unidos, entre 1920 e 1933, quando o álcool foi proibido por uma emenda constitucional, o Brasil inovaria ao ser o único país do mundo a incluir o proibicionismo na sua Carta Magna. Ainda assim, há avanços, principalmente quanto à autorização para o uso de CBD no tratamento de uma série de condições médicas graves.
Segundo o jurista marxista Piotr Stutchka, o direito é um arranjo normativo que espelha “relações sociais segundo os interesses da classe vencedora”.4 O proibicionismo, ao mesmo tempo, é e não é isso. De fato, o regime de ilegalidade das drogas potencializa os instrumentos à disposição do Estado para controlar a massa de pessoas que Achille Mbembe precisamente denominou de vidas matáveis.5
No entanto, o proibicionismo não é apenas uma imposição das elites. Existe uma hegemonia proibicionista no sentido gramsciano, ou seja, a ilegalidade das drogas não é meramente imposta pela força ou pela doutrinação ideológica, mesmo que os aparelhos hegemônicos de hoje – mídias sociais, serviços de streaming etc. – difundam constantemente o “perigo dos cracudos” ou a “ameaça das facções”.
As bases morais das posturas antidrogas são profundas e estão atadas à própria hegemonia burguesa capitalista. Uma pesquisa de 2023 indicou que 61% das pessoas são contrárias à legalização das drogas, enquanto 22% são favoráveis. Sobre o uso medicinal da maconha, o apoio foi de 56%.6 O repúdio ao uso recreativo segue firme, mas algo se move na correlação de forças sobre as drogas em nossa sociedade civil.
No Brasil, para inverter a famosa frase de Lênin, quando se trata das drogas, caminha-se um passo à frente, dois passos atrás. Cada conquista de direitos e consequente enfraquecimento da lógica repressiva é combatido com uma artilharia pesada, pois a questão das drogas está capturada pela chamada “pauta dos costumes”. A centro-esquerda se amedronta diante da ultradireita, enquanto poucos na política institucional bancam enfrentar o debate. Entre as forças progressistas existe o perigo de que a luta socialista, necessariamente interseccional – antirracista, antiproibicionista, antipatriarcal, antiLGBTfóbica e classista –, seja fracionada por escolhas táticas diante das dificuldades impostas pelo ultraconservadorismo. São tortuosos, enfim, os caminhos do antiproibicionismo no Brasil.
Texto publicado na revista Margem Esquerda n.43.
Notas
1 Mário Theodoro, Sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil (Rio de Janeiro, Zahar, 2022), p. 29.
2 Ver Valeria Vegh Weis, Marxism and Criminology: A History of Criminal Selectivity (Chicago, Haymarket, 2018).
3 Ver Ipea, “Critérios objetivos no processamento criminal por tráfico de drogas: natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais estaduais de justiça comum” (Rio de Janeiro, Ipea, 2023), disponível on-line.
4 Piotr Stutchka, O papel revolucionário do direito e do Estado: teoria geral do direito (São Paulo, Contracorrente, 2023), p. 200. Ver também Moisés Alves Soares e Ricardo Prestes Pazello, “O pioneiro da crítica jurídica marxista: trajetória e pensamento de Piotr Stutchka”, em Gustavo Gomes e Renata Schittino (orgs.), Estado, direito e marxismo (São Paulo, Usina, 2023), p. 191-214.
5 Ver Achille Mbembe, Necropolítica (trad. Renata Santini, São Paulo, n-1, 2018).
6 Ver André Lucena, “Maioria da população defende descriminalização da maconha, aponta pesquisa”, Carta Capital, 29 set. 2023, disponível on-line.
Na revista Margem Esquerda n.43, o especial Drogas e marxismo: uma introdução oferece um panorama multifacetado dessa questão ainda tão ignorada nas esquerdas, com reflexões sobre o consumo de álcool na União Soviética, a crítica de Marx aos manicômios, as experiências de Benjamin com psicotrópicos, a economia política da guerra às drogas e um balanço do atual “debate” sobre a legalização no Brasil com textos de Daniela Ferrugem, Gustavo Racy, Henrique Carneiro, Júlio Delmanto, Luciana Boiteux, Pedro Costa e Thiago Rodrigues.
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Thiago Rodrigues é doutor em ciência política pela PUC-SP e em relações internacionais pela Sorbonne (Paris III). É professor associado no Instituto de Estudos Estratégicos da UFF, pesquisador da RedeMarx e do PsicoCult InEAC/UFF). Autor, entre outros, de Drogas e capitalismo: uma crítica marxista (Autografia, 2024).
Daniela Ferrugem é doutora em serviço social pela UFRGS, onde é vice-líder do Aya – grupo de estudo, extensão e pesquisa em serviço social, relações sociais de exploração/opressão de raça/etnia e gênero. Integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, é autora de Guerra às drogas e manutenção da hierarquia racial (Letramento, 2019).
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