Política, baixaria e cadeiradas
Nesta briga, eu torço para a cadeira. O país arde em chamas, mas as barricadas estão vazias. As ruas estão tomadas por carros e engarrafamentos, as bandeiras estão guardadas e as bocas caladas. A política morreu e o que vemos são os festejos comemorativos daqueles que a mataram.
Imagem: Mauro Iasi.
Por Mauro Luis Iasi
“Um idiota nunca aproveita a oportunidade.
Na verdade, muitas vezes, o idiota é a oportunidade que os outros aproveitam.”
Millôr Fernandes
Existia, até pouco tempo, um mito segundo o qual a sociedade iria se aperfeiçoando graças à sociedade de mercado e ao Estado democrático. Fukuyama, de forma mais caricatural, mas outros pensadores sofisticados como Hannah Arendt, Habermas ou Bobbio, também cultivaram esse mito.
No entanto, a democracia avançada tem produzido rufiões e malandros muito mais que estadistas. Podemos aqui, sem a pretensão de uma lista exaustiva, lembrar de Berlusconi, Trump, Bolsonaro e o pateta do Milei, só para citar alguns. É sempre uma saída fácil atribuir a tais personagens um caráter excepcional, alguém que não seria da chamada “classe política” como se essa anomalia sociológica não fosse composta, em sua maioria, por um tanto de desclassificados, demagogos e despreparados para qualquer forma de exercício de poder salvo em seu próprio interesse e daqueles que os financiam e comandam.
O que os patetas mais explícitos revelam em seu exagero, como na caricatura, nada mais é que traços daquilo em que se transformou a figura do político. Alguns disfarçam na linguagem rebuscada, no terno impecável, no maneirismo treinado, a malandragem inata e os interesses escusos. Neste sentido, o bufão parece ao senso comum mais autêntico.
A genial criação de Dias Gomes, o famoso Odorico Paraguaçu, saiu das telas para assumir uma forma mais contemporânea de picareta. Interessante que víamos o personagem da novela como uma reminiscência de uma época passada de oligarcas e coronéis, mas o atual fanfarrão assume a forma de youtubers, tiktokers, blogueiros e afins, jovens, irresponsáveis, bocudos, irreverentes, desafiadores, falsamente antissistema, que ganham o centro do picadeiro da política.
É compreensível que uma geração anterior de malandros, que construíram seus personagens na televisão, como Datena e Luciano Huck, por exemplo, sintam um certo ciúme dos moleques que ganham notoriedade nas redes sociais e se lançam como aventureiros na política.
É divertido ver os porta-vozes da ordem tentando levar a sério a crise de legitimidade da política, conclamando pela seriedade e responsabilidade, o zelo pelo interesse público, o respeito às instituições sagradas, tentando vestir desesperadamente o rei nu e bêbado que envergonha o distinto público. O caráter burlesco e violento que vai assumindo a cena política, a meu ver, não pode ser compreendido a golpes de discursos moralizantes, pois eles acabam assumindo a feição que completa perfeitamente o circo, como o mestre de cerimônia do picadeiro com seu fraque e cartola no meio a malabaristas de colã e palhaços coloridos, ou um pastor pregando moralidade em um bordel.
O caráter burlesco da política é a expressão da crise da democracia burguesa e suas formalidades institucionais. Faz muito tempo que ninguém leva a sério tal atividade, principalmente aqueles que vivem dela, direta ou indiretamente, salvo alguns abnegados e seus princípios, como Glauber Braga que não por acaso está sendo ameaçado de cassação como se tentasse fazer um monólogo shakespeariano no programa dos Trapalhões. Faz muito tempo que ninguém discute a sério o país, seus problemas e as raízes profundas de nossas mazelas, muito menos propostas reais. Há um verdadeiro divórcio entre o que se diz nas eleições e as ações dos candidatos uma vez eleitos.
Os chamados “debates” converteram-se em arena de trivialidades, mentiras deslavadas, atuação e factoides para bombar nas redes e repercutir nos programas de televisão. Os assim chamados “programas de candidatos”, tornaram-se uma formalidade que não precisa guardar nenhuma coerência com partidos e suas convicções, muito menos com aquilo que de fato se pretende fazer.
Decisões são tomadas orientadas por institutos de pesquisa como qualquer mercadoria, agora potencializada pela mágica dos algoritmos, na velha arte de falar o que acredita-se que as pessoas querem ouvir. É só afirmar a importância da educação, da saúde e da segurança, mostrar uma cara séria, andar de capacete numa obra, em mangas de camisa como se fosse um trabalhador incansável e acenar para as câmeras. Ocorre que, desta maneira, acabaram ficando todos iguais e aí entra o palhaço.
Ele é tosco, fala mal, xinga, esbraveja impropérios, provoca e ameaça. Não apresenta proposta nenhuma e ridiculariza a si mesmo e o espaço que tenta se apresentar sério. Desta forma, destaca-se porque é diferente. São filhotes de Enéias, de Levy e seu aerotrem, Eymael e sua musiquinha, e lá no fundo, herdeiros do Cacareco e do Macaco Tião.
A diferença é que, no contexto atual, às vezes o palhaço malandro pode se eleger e aí temos a tragédia de Bolsonaro ou Milei e as coisas ficam muito menos engraçadas, como o sargento Pincel comandando uma operação de guerra de verdade. Mas qual seria a razão desta outsiderização da política, no termo de nosso colega argentino Alberto Bonnet?
Estou convencido de que vivemos na esfera política algo que Marx e Engels descreveram em sua crítica da ideologia, isto é, no momento de crise, quando as forças produtivas avançadas encontram sua contradição com as relações sociais de produção, as ideias e valores que representavam esta ordem, através das quais os interesses particulares apresentavam-se como universais, perdem sua correspondência e se tornam inautênticas. Como precisam continuar a ser afirmadas e defendidas, eles assumem a forma de uma ilusão consciente, uma hipocrisia proposital.
O mesmo ocorre com as formas políticas que deveriam expressar a livre concorrência, a sociedade de indivíduos livres e iguais perante a lei, a sociedade que permitiria o desenvolvimento das aptidões de cada um, levando-o ao sucesso ou ao fracasso e, finalmente, ao mito supremo: um governo do povo, pelo povo e para o povo.
Não é que faltam propostas para enfrentar este problema, mas as verdadeiras alternativas foram barradas e expulsas do espaço daquilo que se considera política. As jornadas de julho de 2013 que, entre outras coisas, expressaram uma crítica direta e pertinente contra a chamada democracia representativa, foi reprimida e totalmente desconsiderada, deixando o espaço do ressentimento ser capturado pela extrema direita.
No lugar da ação política, isto é, a ação das classes em defesa de seus interesses, entra um exército de assalariados precários agitando bandeiras em semáforos, adesivos nos vidros traseiros dos carros, jingles de gosto duvidoso e fotos retocadas. Esta operação, após retirar qualquer substância daquilo que um dia foi uma prática política, apresenta o cadáver mumificado e sem sangue, exigindo que o circo aventureiro seja o único e exclusivo reino da política. Movimentos sociais não podem ser políticos, universidades e escolas tem que ser “sem partido”, o Estado, veja só, não pode agir politicamente e tomar um lado da luta de classes. Quando acabam as eleições, acaba a política.
No tempo de likes, engajamento, monetarização da bobagem, rebaixamento de conteúdo, fake news, preconceito e discurso de ódio, a personificação da política só podia ser de canalhas desqualificados, homofóbicos e machistas, palhaços malandros, aspirantes a fascistas e anticomunistas convictos. Os rufiões, entretanto, prestam um serviço rasgando o véu de respeitabilidade com que a ordem podre do capital tenta encobrir o cadáver de sua civilização moribunda.
Em poucas palavras: nesta briga, eu torço para a cadeira. O país arde em chamas, mas as barricadas estão vazias. As ruas estão tomadas por carros e engarrafamentos, as bandeiras estão guardadas e as bocas caladas. A política morreu e o que vemos são os festejos comemorativos daqueles que a mataram.
Confira o Café Bolchevique, coluna mensal de Mauro Iasi na TV Boitempo:
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Mauro Iasi professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, educador popular e militante do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
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