A financeirização do meio ambiente brasileiro

A atual estratégia de enfrentamento das mudanças climáticas consiste basicamente na criação de mecanismos econômicos de flexibilização. Criar serviços mercantilizáveis sobre o meio ambiente pressupõe que a natureza seja contínua e crescentemente produzida como espaço abstrato médio e genérico e em acordo com as demais mercadorias, de modo a torná-la alienável.

Foto: Rodovia PA 150, Marabá, PA 1981/Miguel Chikaoka

Por Ana Paula Salviatti

Uma enorme coleção de mercadorias

A atual estratégia de enfrentamento das mudanças climáticas consiste basicamente na criação de mecanismos econômicos de flexibilização. Criar serviços mercantilizáveis sobre o meio ambiente pressupõe que a natureza seja contínua e crescentemente produzida como espaço abstrato médio e genérico1 e em acordo com as demais mercadorias, de modo a torná-la alienável.

O atual momento da reprodução capitalista se caracteriza pela dominância das formas de autovalorização sobre a reprodução geral do sistema. Em linhas gerais, o movimento da financeirização corresponde ao de tornar todo o capital mobilizável.2 A principal tendência da financeirização é a de que a reprodução capitalista como um todo passa a responder à dinâmica e à temporalidade das trocas financeiras.3

Portanto, a compreensão das estratégias capitalistas de combate às mudanças climáticas e o aquecimento do planeta – consequências do próprio modo de produção – exige uma análise da financeirização do meio ambiente.

O mercado verde

O enfrentamento das mudanças climáticas foi institucionalizado com o Protocolo de Quioto, ratificado em 2005, que criou uma série de mecanismos de flexibilização econômica apoiados no sistema financeiro. Entre eles, o comércio dos créditos de carbono, o qual exige a verificação da cláusula da adicionalidade, ou seja, a exigência de que a atividade proporcione uma redução adicional de gases do efeito estufa (GEE), ou que preserve sumidouros, no caso dos REDD+.4 Contudo, a atividade que era conduzida pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) foi oficialmente descontinuada em 2015, na COP21, em Paris, e aguarda, desde então, a institucionalização de um novo órgão regulador.

Ainda na COP21, países não Anexo I,5 a exemplo do Brasil, estabeleceram metas ambientais, as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês), a serem alcançadas a partir de 2025. Contudo, mesmo com a aprovação da criação de um fundo voltado para o financiamento à adaptação e mitigação das perdas e danos climáticos – pauta reivindicada ao longo de décadas pelos países periféricos, e em conexão com as NDCs, na COP27, realizada no Egito –, sua criação não saiu do papel.

Diante desse vácuo regulatório, o mercado voluntário de emissões assistiu ao crescimento de suas negociações, por meio da criação de empresas especializadas na implementação de programas de certificação e de outras especializadas em auditá-los. Contudo, nos últimos 24 meses, esse mercado voluntário passou a enfrentar uma série de revezes na forma de denúncias contra as principais empresas de criação e auditoria de adicionalidade em projetos de emissão de créditos certificados, tais como a South Pole e a Verra,6 respectivamente.

Vanguardismo brasileiro

Diante desse cenário de incerteza do mercado voluntário e da indefinição arrastada por décadas sobre o financiamento internacional para as mudanças climáticas voltado aos países não Anexo I, o governo de Luís Inácio Lula da Silva, ainda em 2023, anunciou uma série de medidas para o financiamento de ações estratégicas contra as mudanças climáticas. Desde a retomada das doações para a preservação do meio ambiente por meio do Fundo Amazônia, congeladas durante o governo de Jair Bolsonaro, até novos instrumentos financeiros e marcos regulatórios destinados ao financiamento de ações do Estado para o cumprimento das NDCs, bem como dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) propostos pela ONU.

O governo Lula 3 assume, assim, o vácuo institucional deixado pelo fim do MDL e pela morosidade das COPs em viabilizar a criação de um fundo para o financiamento que permita aos países não Anexo I se adaptarem às mudanças climáticas e as combaterem. No ano de 2023, o governo anunciou a criação e a regulamentação de um título temático verde, com o lançamento de um título de dívida externa de financiamento com uso pré-determinado dos recursos, vencimento de 7 anos e taxa de juros de 6,5% ao ano.

Em novembro de 2023, foram lançados os Títulos Públicos Soberanos Sustentáveis, com a captação de 2 bilhões de dólares no mercado internacional. Ao todo, são três tipos de título temático: os títulos verdes, os títulos sociais e, por último, os títulos sustentáveis que reúnem os dois temas anteriores. O Comitê de Finanças Sustentáveis Soberanas, o CFSS, foi criado para responder pela alocação e transparência dos recursos, conforme determinado pelo arcabouço7 elaborado para sua operacionalização.

O atual governo assiste ainda à tramitação no legislativo federal do novo PL dos Créditos de Carbono (n.º 2229/2023), apresentado pelo senador Rogério Carvalho (PT/Sergipe), que propõe na sua redação tornar ainda mais robusta a atividade de emissões de crédito de carbono no país ao escrutinar os elos da cadeia de custódia de emissão dos certificados e interpor a criação de um mercado específico para transações dos certificados representativos dos créditos de carbono, o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões, o MBRE.

Agronegócio brasileiro

Por sua vez, o Brasil é um dos maiores produtores mundiais de alimentos e demais soft commodities. O setor do agronegócio exportador bate continuamente recordes de produção8 e foi elemento fundamental no mais recente ciclo de crescimento econômico do país, puxado pelo boom das commodities, entre 2003 e 2012. Com o aumento dos preços das commodities no mercado internacional, cresceram os investimentos no setor ao mesmo tempo que se intensificou o processo de desindustrialização, ampliando a vulnerabilidade econômica do país, conforme mostra ampla literatura especializada.

Ao mesmo tempo, o Brasil abriga 60% da floresta amazônica, a maior floresta tropical e o maior sumidouro terrestre de CO2 atmosférico do planeta. Dos nove itens estabelecidos como ações elegíveis ao financiamento pelos Títulos Soberanos Sustentáveis, cinco estão diretamente ligados à preservação de florestas, a adaptações às mudanças climáticas, às transformações no uso do solo, ao aumento da resiliência e à redução das perdas de produtividade agrícola.

Em 2020, mais de dois terços das emissões de GEE brasileiras foram oriundos de atividades relacionadas diretamente à agropecuária (29%) e a ações ligadas ao uso do solo, mudança no uso do solo e florestas (38%), conforme dados apresentados no referido arcabouço do projeto. Ao todo, as atividades que compõem o setor agroexportador possuem alta correlação com a redução de sumidouros e da biodiversidade, além de problemas relacionados à integridade dos territórios de povos indígenas e de comunidades tradicionais.

A presença dos grandes detentores de capital nacional e internacional se manteve ligada aos ramos tradicionais de investimentos no país, mesmo com a posição diferenciada em relação aos demais países da periferia do capitalismo. Acrescenta-se ao cenário econômico o fato de que o desenvolvimento do capitalismo financeiro no Brasil traduziu-se em um capitalismo de finanças não industrializantes,9 o qual não se atrelou à expansão do mercado acionário e/ou à expansão privada de crédito, mas à especulação junto ao mercado aberto de títulos públicos pressionando o elevado patamar das taxas de juros praticadas no país.10 Portanto, devemos dedicar atenção à dinâmica de investimentos do grande capital financeiro nacional junto ao setor agroexportador, alavancados pelos Fiagros, desde 2021.

O paradoxo de Lauderdale

O investimento financeiro internacional tem forte presença junto à produção agrícola mundial, sendo alocado em diversos setores da cadeia produtiva envolvidos com práticas de desmatamento e poluição ambiental.11 Por outro lado, esses mesmos atores investem também no mercado voluntário de carbono a fim de promover a contabilidade zero de suas ações e obter rendimentos com a emissão dos certificados de emissões. Dessa forma, a dinâmica da certificação de carbono aparece como um possível denominador comum aos diversos interesses econômicos envolvidos com o setor agrícola.

O paradoxo de Lauderdale diz respeito à seguinte contradição: no capitalismo, o mesmo agente econômico pode ser encontrado investindo, simultaneamente, em atividades relacionadas à degradação ambiental e em sua recuperação. Dessa forma, ele se beneficiaria de ambos os negócios, promovendo o problema enquanto vende a solução.12

Registra-se, contudo, que até setembro de 2012, final da primeira fase do Protocolo de Quioto, o mercado de créditos de carbono havia sido responsável pela redução das emissões em meros 0,02%,13 o que corresponde a pouco mais de 10 milhões de toneladas métricas de carbono frente à meta de 4,5 bilhões estipulada na primeira etapa.

Artigo publicado na revista Margem Esquerda n.42.


Notas
1 Neil Smith. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e a produção do espaço (Rio de Janeiro, Bertand Brasil, 1988).
2 Rudolf Hilferding. O capital financeiro (trad. Reinaldo Mestrinel, São Paulo, Nova Cultura, 1985 [1923]).
3 José C. de S. Braga. Temporalidade da riqueza: uma contribuição à teoria da dinâmica capitalista. (tese de doutorado, Campinas, Unicamp, IE, 1985).
4 O Programa Redução de Emissões provenientes do Desmatamento e Degradação Florestal (REDD) foi lançado pela ONU em 2008. Trata-se de um mecanismo de flexibilização econômica incluído ao hall do Mercado de Emissões, o qual contabiliza a manutenção florestal como modalidade de créditos de carbono. Posteriormente, foram incluídas no Programa atividades de conservação, manejo sustentável das florestas e aumento de seus estoques em países em desenvolvimento, dando origem ao REED+.
5 A incorporação do princípio das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas” à Convenção
do Clima (artigo 4) originou a divisão das partes em dois grupos: Anexo I são aqueles países responsáveis pela alteração climática, tendo em vista as emissões históricas de GEEs na atmosfera. São os países da OCDE, UE e as antigas nações do bloco socialista. Já as partes restantes agrupadas como Não Anexo I são os países “em desenvolvimento” e os subdesenvolvidos, aqueles integrados ao desenvolvimento histórico do capitalismo como fornecedores de matérias primas e demais recursos naturais.
6 Susanna Twidale e Sarah Mcfarlane. “Carbon credit market confidence ebbs as big names retreat”, Reuters, 1º set. 2023, disponível on-line.
7 Publicado em 5 set. 2023, o Arcabouço Brasileiro para Títulos Soberanos Sustentáveis, elaborado pelo CFSS, pode ser consultado na íntegra no site do governo federal.
8 Ver, por exemplo, os dados do 12° Levantamento da Safra de Grãos 2022/23, da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); Conab, “Com novo recorde, produção de grãos na safra 2022/23 chega a 322,8 milhões de toneladas”, 6 set. 2023, disponível on-line.
9 José C. de S. Braga, Temporalidade da riqueza, cit.
10 Além da citada tese de José C. de S. Braga, ver Maria da Conceição Tavares, Da substituição de importações ao capitalismo financeiro: ensaios sobre economia brasileira (Rio de Janeiro, Zahar, 1976); e Ana Paula Salviatti, Ciranda financeira no Brasil: gênese, trajetória e acumulação rentista (1964-2022), 2023 (tese de doutorado, Unicamp, IE, Campinas), disponível on-line.
11 Declan Foraise, “Banks Bankrolling Extinction to Tune of $2.6 Trillion”, Ecosystem Marketplace: a Forest Trends Initiative, 29 out. 2020, disponível on-line.
12 Ver, por exemplo, a reflexão recente de John Bellamy Foster, “Nature as a Mode of Accumulation: Capitalism and the Financialization of the Earth”, Monthly Review, 1º mar. 2022, disponível on-line.
13 Ana Paula Salviatti, A financeirização do meio ambiente: o caso do crédito de carbono, 2013. Dissertação – USP, FFLCH, Departamento de História, São Paulo, SP, disponível on-line.


Confira o debate Marxismo, capitalismo e ecologia, que marcou o lançamento da revista Margem Esquerda #42, com Ana Paula Salviatti, Arlindo Rodrigues, Luiz Marques e Michael Löwy, mediação de Fabio Mascaro Querido, na TV Boitempo:


As intersecções entre marxismo e ecologia estão no centro da edição #42 da Margem Esquerda. Abrindo o volume, John Bellamy Foster repassa sua trajetória intelectual e política e reflete sobre os desafios do presente em conversa com Michael Löwy, Maria Orlanda Pinassi e Fabio Mascaro Querido. Um dos mais importantes intelectuais marxistas em atividade, em especial por suas intervenções no debate ecológico, Foster avançou como poucos numa compreensão da obra de Marx que não apenas a coloca em diálogo com as abordagens ecológicas mais recentes, como também visualiza as chaves para uma explicação materialista da atual crise ecológica. O dossiê “Marxismo, capitalismo e ecologia”, esquadrinha o problema em quatro ensaios afiados que buscam articular a teoria e prática do ecossocialismo diante de um cenário cada vez mais urgente de crise climática e civilizatória. Organizado por Fabio Mascaro Querido, o dossiê conta com ensaios de Michael Löwy, Luiz Marques, Ana Paula Salviatti, Arlindo Rodrigues e Allan da Silva Coelho.


Confira o Dossiê Enfrentando a crise climática, no Blog da Boitempo:

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Ana Paula Salviatti é historiadora e mestre em história econômica pela USP, doutora em desenvolvimento econômico pela Unicamp e pós-doutoranda em geografia agrária pela USP.

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