A Primeira Internacional

Osvaldo Coggiola comenta as origens e principais desafios da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), há 160 anos.

14.09.29_Os 150 anos da Internacional

Imagem: Comício de trabalhadores em 28 de setembro de 1864, no St. Martin’s Hall, em Londres, que inaugurava a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT)/Domínio público.

Por Osvaldo Coggiola

1.

A fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), em 1864, coroou um esforço secular do movimento operário, e dos intelectuais vinculados a ele, em direção de uma organização internacional dos trabalhadores. Esta era entendida como o instrumento indispensável para a reorganização da sociedade sobre bases comunistas, sobre a propriedade social dos meios de produção.

Na Era Moderna, as teorias comunistas remontavam ao século XVI, simbolizadas na Utopia de Thomas Morus (1516), que chegou a chanceler da Inglaterra de Henrique VII, na qual defendia que “a menos que a propriedade privada seja completamente abolida, não é possível haver distribuição justa de bens e nem a humanidade pode ser governada adequadamente. Se a propriedade privada permanecer, a grande e melhor parte da humanidade continuará oprimida por um fardo pesado e inevitável de angústia e sofrimento”.1

No século XVII, Francis Bacon, no romance A Nova Atlântida descrevia uma sociedade governada pela ciência e a solidariedade, e James Harrington criticava, em Oceana, a desigual distribuição da propriedade e dos bens; no mesmo século, Tommaso Campanella, em La Città del Sole defendia um comunitarismo radical. Todas essas utopias imaginárias eram situadas em pontos longínquos de um mundo ainda em grande parte desconhecido.

Também antecipavam a crítica social moderna, com “suas propostas positivas relativas à sociedade futura, a supressão da distinção entre cidade e campo, a abolição da família, do lucro privado e do trabalho assalariado, a proclamação da harmonia social e a transformação do Estado numa simples administração da produção e o desaparecimento do antagonismo entre as classes, que esses autores conheciam de forma imprecisa… Essas propostas tinham um sentimento puramente utópico”.2

A Revolução Francesa (1789) concluiu com a derrota de sua ala de esquerda (os jacobinos), mas estes tiveram seus herdeiros radicais, a “Conspiração dos Iguais” de 1796. Essa fração propôs um programa de propriedade comunal para aprofundar a revolução, com base num socialismo agrário. Neste período “os trabalhadores se consideravam parte das camadas populares da nação, e ficaram presos a essa ideologia. A sua privação de direitos só podia ser eliminada exigindo para todos os cidadãos o mesmo direito em determinar a atividade do poder político, de modo que não se abusasse do Estado em proveito de uns poucos.

Reclamaram para si próprios os direitos de liberdade correspondentes ao “direito natural”. Mas não foram capazes de colocar exigências diferentes do pensamento dos democratas burgueses radicais”.3 Na prática, porém, foram além desse patamar. A consciência de classe independente dos trabalhadores ainda não existia claramente em 1789: fora da Grã-Bretanha e da França, ela era quase que totalmente inexistente. A expressão “classe trabalhadora” só apareceu nos escritos trabalhistas ingleses após 1815. Nem todos os cidadãos eram trabalhadores, mas todos os trabalhadores conscientes pertenciam ao movimento democrático, as consciências “jacobina” e proletária se complementavam.

Thomas de Quincey relatava: “Três crianças de treze anos de idade, com salários de seis a oito shillings por semana, substituíram na fábrica um homem maduro com um salário semanal de 45 shillings”.4 Charles Dickens (em Oliver Twist e em Tempos difíceis) relatou casos semelhantes ou ainda piores. Nas primeiras fábricas, havia frequentes paradas da produção, provocando desemprego. Os horários de entrada e de saída das fábricas eram marcados geralmente pelo toque dos sinos, que na cidade de Manchester começavam a tocar às quatro e meia da manhã.

No interior da fábrica, o operário tinha uma função específica e sempre repetitiva, adestrada ao ritmo da máquina e sob a supervisão do contramestre que o ameaçava com multas e demissão do emprego pelo menor erro cometido. A análise da situação da classe operária feita pelo militante cartista James Leach (Stubborn facts from the Factories by a Manchester Operative, de 1844) inspirou A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels, que também habitava Manchester à época.

Os novos operários, notavam esses observadores, eram, basicamente, antigos camponeses – pequenos proprietários agrários ou servos – expropriados ou expulsos de suas terras, e artesãos expropriados dos seus instrumentos de produção (ferramentas). A intervenção do poder legislativo na Grã-Bretanha, no domínio da proteção social dos trabalhadores (incluindo a segurança, a higiene e a saúde no trabalho), remonta a inícios do século XIX, e foi devida menos à luta organizada do movimento operário (que ainda se manifestava em forma isolada, esporádica ou incipiente) do que à influência de reformadores sociais, empregadores filantrópicos, médicos humanistas, escritores e políticos com sensibilidade social, quando não a políticos nacionalistas ou conservadores preocupados com a redução à invalidez de gerações inteiras, impossibilitando-as de servir no exército.

2.

A intervenção do legislador social em plena era do Estado liberal não foi estranha à pressão dos segmentos da opinião pública mais “esclarecidos”, chocados com a revelação de uma nova classe de escravos e, sobretudo com a condição das mulheres e crianças nas mills (estabelecimentos fabris da indústria têxtil algodoeira com as primeiras máquinas movidas a energia hidráulica) do Nordeste de Inglaterra, e nas minas de carvão do País de Gales.

Em 1802, a primeira medida relativa à proteção dos trabalhadores não teve efeitos práticos, por falta de instrumentos políticos para a sua aplicação efetiva. Não estabelecia restrições quanto à idade mínima de admissão para o trabalho fabril, embora limitasse a um máximo de doze as horas de trabalho diário, proibisse trabalho noturno e ordenasse a limpeza das paredes dos estabelecimentos fabris duas vezes por ano, bem como a ventilação dos dormitórios.

Na lei estava prevista a figura do inspetor do trabalho. Previa-se a criação de um sistema local de inspeção voluntária das fábricas e oficinas, composto por clérigos e magistrados (visitors). Esse sistema nunca chegou a funcionar. Mas tratou-se, em qualquer caso, da primeira tentativa de intervenção do Estado no domínio da proteção dos trabalhadores, pondo em causa o mito do “livre” contrato de trabalho. Procurava-se, pela primeira vez, definir por via da lei o que era um “dia normal de trabalho”, pois a jornada de trabalho começou a se estender para além dos limites do dia natural das 12 horas. Tratava-se de um retrocesso em relação ao tempo de trabalho dos antigos artesões e à regulamentação das corporações de ofício.

A lei de 1802, de resto, não incomodou os parlamentares ingleses, muitos deles poderosos empregadores, proprietários de terras (landlords), minas ou mills, que logo contornaram a obrigação legal: uma vez que nos artigos referidos aos menores de idade ela se referia apenas aos aprendizes, ficavam fora do seu âmbito os chamados free children. No interior da fábrica, o operário tinha uma função específica e sempre repetitiva, adestrada ao ritmo da máquina e sob a supervisão do contramestre, que o ameaçava com multas e demissão do emprego pelo menor erro cometido.

A fome, a miséria e a fiscalização constante impunham disciplina no trabalho, mas outra coerção foi muito utilizada: a moral e religiosa. O metodismo, religião organizada por John Wesley (1703-1791), teólogo anglicano, teve um papel destacado ao afirmar que as consequências da indisciplina fabril poderiam ser, não apenas a demissão, mas algo muito pior, as “chamas do inferno”. A salvação do homem estaria ligada aos serviços que ele prestasse a Deus, como bom cristão e, principalmente, pelo trabalho diligente.

A classe operária cresceu a um ritmo mais rápido do que o crescimento da população em geral. O restante da Europa foi progressivamente atingido pela transformação econômica inglesa. Em Barmen, no Wuppertal alemão, a população operária passou de 16 mil em 1810 para mais de 40 mil em 1840. Em Barmen e Eberfeld juntas, a classe operária somava, em 1840, 1100 tingidores, 2.000 fiadores, 12.500 tecelões variados e 16 mil tecelões de fitas, cadarços e galões. Em 1830 já havia 200 fábricas em todo o vale do Wupper: “O rio é repugnante, um esgoto a céu aberto que disfarça os vários corantes jogados nele pelos estabelecimentos de tintura com um tom indefinido de sujeira que faz o visitante estremecer ao olhar para ele”, escreveu uma testemunha da época.

Mas o centro do desenvolvimento fabril-industrial continuava sendo a Inglaterra, centrado na indústria têxtil. A população trabalhadora excedente se revelava necessária à acumulação capitalista, como força de trabalho desempregada disponível para ser explorada de acordo com as necessidades variáveis da expansão do capital. Essas massas humanas se deslocavam gradativamente a outros ramos de produção, principalmente àqueles que ainda não incorporaram os avanços tecnológicos da indústria moderna.

A unidade social da classe operária criada pelo sistema fabril era objetiva, determinada pelas suas próprias condições de trabalho e existência: “A unidade dos trabalhadores assalariados como corpo produtivo de conjunto está fora dos trabalhadores assalariados, está no capital que os mantêm juntos; aos trabalhadores assalariados a conexão entre seus trabalhos se lhe contrapõe como autoridade do capitalista, como potência de uma vontade estranha, despótica”.5

3.

Com a rotina e a miséria impostas pelo sistema fabril o operário assalariado tinha, como únicas alternativas, a submissão ou a inanição e a morte. Foi-se gerando uma vontade coletiva de mudança, de melhoria das condições de trabalho e de vida e de abolição do capitalismo. A aproximação entre a moderna escravidão assalariada e a escravidão colonial não era inapropriada. A comparação das duas formas de escravidão (a metropolitana e a colonial) talvez fosse até em desvantagem para os trabalhadores “livres” da metrópole: numa petição de operários ingleses, eles se referiam à melhor condição de vida dos escravos americanos que, ao menos, trabalhavam ao ar livre.

A burguesia descobria (e começava a temer) a luta de classes própria do regime capitalista. Uma forma de luta utilizada nos primórdios do movimento operário foi o “boicote”, palavra derivada do nome de um oficial inglês encarregado de administrar os negócios do Conde Erne, da Irlanda. Sir Boycott era conhecido por seus métodos truculentos no tratamento com os empregados. Ele se recusava a negociar e os trabalhadores passaram a fazer o mesmo, propondo que os moradores do povoado não consumissem os produtos do Conde, que teve um grande prejuízo e afastou o oficial inglês do cargo.

A “sabotagem” também foi usada nesse período como mecanismo de pressão dos trabalhadores. O termo tem origem francesa e deriva de sabot, que significa “tamanco”. Os operários franceses usavam esse calçado para danificar as máquinas, emperrando a produção. O salto na ação desse jovem proletariado se deu com o recurso da greve para pressionar o patronato. A origem do termo se origina na Praça da Greve (Place de Grève), atualmente Hôtel de Ville em Paris. Quando desempregados ou para tratarem de assuntos relativos ao trabalho, os operários costumavam reunir-se ali.

Para a nova classe capitalista, a greve era inadmissível: “A burguesia, que assumira o poder há pouco tempo, executa uma espécie de crase entre a moral e a natureza, oferecendo a uma a caução da outra; temendo-se a naturalização da moral, moraliza-se a natureza, finge-se confundir a ordem política e a ordem natural, e conclui-se decretando imoral tudo que conteste as leis estruturais da sociedade que se quer defender. Para os prefeitos de Carlos X, a greve constitui, em primeiro lugar, um desafio às prescrições da razão moralizada: fazer greve é mais do que infringir uma legalidade cívica, é infringir uma moralidade ‘natural’, atentar contra o bom senso, misto de moral e de lógica, fundamento filosófico da sociedade burguesa… A greve é escandalosa porque incomoda precisamente àqueles a quem ela não diz respeito. É a razão que sofre e se revolta… O que se opõe não é o homem ao homem, mas o grevista ao utente. Encontramos aqui um traço constitutivo da mentalidade reacionária, que consiste em dispersar a coletividade em indivíduos e o indivíduo em essências (o que) participa de uma técnica geral de mistificação que consiste em formalizar o mais possível a desordem social… Face à mentira da essência e da parte, a greve institui o devir e a verdade do todo. Ela significa que o homem é total, que todas as suas funções são solidárias umas às outras, que os papéis de utente, de contribuinte ou de militar são muralhas demasiado frágeis para poderem se opor à contaminação dos fatos, e que, numa sociedade, tudo diz respeito a todos. Protestando contra a greve que a incomoda, a burguesia revela a coesão das funções sociais”.6

A associação classista dos trabalhadores foi combatida pela burguesia, sancionada com pesadas multas e qualificada como um ataque à liberdade e aos direitos humanos. As associações de trabalhadores foram consideradas uma tentativa de restabelecer as corporações medievais e um ataque à livre compra e venda da força de trabalho, apesar de este apoio do poder político ao capital ter reduzido os salários a um nível tão baixo que os próprios legisladores o consideraram quase uma reproposta da escravidão.

Ao longo da gestação da sociedade civil, as intervenções legislativas visaram a ampliação da jornada de trabalho, o capitalista nascente necessitava da intervenção constante do poder político com esse objetivo. A exploração do trabalho assalariado e a expressão subjetiva da revolta contra a mesma foram uma unidade histórica. Em 1849, no romance Shirley, a escritora inglesa Charlotte Brontë resumiu o sentimento dos operários têxteis da Inglaterra diante da miséria e do desemprego: “A miséria gera ódio”. A subjetividade operária nasceu desse ódio, que gerou também o sentimento de fraternidade e de unidade de classe.

4.

No movimento operário alemão, na segunda metade do século XIX se manifestaram as divergências entre os partidários de Marx e os de Lassalle. As divergências entre o grupo marxista e o lassalleano conduziram à fundação da Associação Internacional de Trabalhadores, ou Primeira Internacional. A Internacional seria um prolongamento da Liga dos Comunistas, cujo objetivo principal residia no estabelecimento de “um ponto central de comunicação e de cooperação entre as sociedades operárias dos diferentes países”.

A Liga fora extinta em 1852, dois anos após a cisão interna e expulsão da fração ultra-esquerdista de Willich e Schapper, que defendiam a transformação da Liga em uma “sociedade de conspiradores”, contra a oposição de Marx e Engels. Diferentemente da associação de Lassalle, a Associação Internacional (AIT) pregava que a emancipação da classe operária, e a abolição de todo regime de classes, seria obtida através da luta dos próprios trabalhadores.

O Manifesto Inaugural da Associação Internacional de Trabalhadores, redigido por Karl Marx, afirmava que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores; os esforços dos trabalhadores para conquistar sua emancipação não devem tender a constituir novos privilégios, mas a estabelecer para todos os mesmos direitos e os mesmos deveres; a submissão e a dependência do trabalhador ao capital é a fonte de toda servidão: política, moral e material; por essa razão, a emancipação econômica dos trabalhadores é o grande propósito ao qual deve se subordinar todo movimento político; todos os esforços realizados até hoje fracassaram pela falta de solidariedade entre os operários das diversas profissões em cada país, e de uma união fraternal entre os trabalhadores das diversas regiões; a emancipação dos trabalhadores não é um problema simplesmente local ou nacional, mas que interessa a todas as nações civilizadas, sendo necessariamente subordinada a solução do problema ao seu concurso teórico e prático; o movimento que se desenvolve entre os operários dos países mais industriosos, fazendo nascer novas esperanças, dá uma solene advertência de não o cair em velhos erros, e aconselha combinar todos os esforços ainda isolados…”.

A Internacional foi fundada num congresso em que participaram, basicamente, associações operárias locais (inglesas) e francesas: a presença destas foi facilitada pela realização de uma exposição industrial internacional em Londres, e também pelas novas facilidades de comunicação proporcionadas pelo sistema telegráfico internacional, que permitiu aos operários dos dois lados do Canal da Mancha entrar em contato direto. A Associação Internacional de Trabalhadores não foi só o produto de uma convergência de organizações operárias, mas também de uma luta teórica e política: as divergências teóricas e práticas entre o grupo marxista e o lassalleano no socialismo alemão conduziram à fundação da Associação Internacional de Trabalhadores.

Depois da derrota da Comuna de Paris, em 1871, dada a situação na França e também na Inglaterra, só Alemanha poderia servir de base e de centro para o movimento operário internacional. A política do Conselho Geral da Associação Internacional de Trabalhadores se modelou, a partir de 1871, tendo como base o socialismo alemão: foi uma transformação radical, de acordo com o modo de organização e o programa da socialdemocracia alemã, reputada ser a força motriz da Internacional renovada. Em 1872, reuniu-se em Haia o último congresso da Primeira Internacional em solo europeu.

5.

Por proposta de Engels, o Conselho Geral da Associação Internacional de Trabalhadores foi transferido para os Estados Unidos, para se proteger dos ataques da reação e também da ação dos bakuninistas, que ameaçavam tomar por assalto a direção da organização. Na votação sobre o deslocamento do Conselho Geral para Nova York a proposta recebeu 30 votos favoráveis, 14 por Londres, um para Bruxelas e outro para Barcelona, com treze abstenções, o que permite fixar o número de delegados no Congresso em quase exatamente sessenta: ‘É indubitável que Marx e Engels queriam trasladar o Conselho Geral a Nova York não porque isso fizesse algum bem, mas para afastá-lo das mãos em que cairia se continuasse em Londres”.7

Os anarquistas reagiram imediatamente, celebrando em Zurique uma reunião, e se deslocando imediatamente a Saint Imier, na Suíça, onde aconteceu, por iniciativa dos italianos, um congresso que criou a que seria conhecida como a “Internacional antiautoritária”. Havia quatro delegados espanhóis, seis italianos e dois franceses, dois pela Federação Jurassiana e um pelos Estados Unidos. Um total de quinze delegados decidiu por unanimidade não reconhecer o congresso de Haia, e deliberou resoluções sobre o “pacto de amizade, solidariedade e defesa mútua entre as federações livres”, “a natureza da ação política do proletariado”, a “organização da resistência do trabalho”.

Os anarquistas fixaram sua condição “antipolítica e antiautoritária” afirmando: “(i) que a destruição de todo poder político é o primeiro dever do proletariado; (ii) que toda organização de um poder político pretensamente provisório e revolucionário, para trazer essa destruição, não pode ser mais que um engano, e seria tão perigoso para o proletariado como todos os governos que existem hoje; (iii) que, rejeitando todo compromisso para chegar à realização da Revolução Social, os proletários de todos os países devem estabelecer, fora de toda política burguesa, a solidariedade da ação revolucionária”. Os marxistas chamaram os bakuninistas de “divisionistas”.

Estes finalmente celebraram seu Congresso em Genebra, em 1873, organizado pela Seção de Propaganda Socialista e Revolucionária de Genebra, com a presença de 26 delegados. Os estatutos da Associação Internacional de Trabalhadores foram modificados de acordo com os princípios defendidos pelos bakuninistas.

A Internacional “de Haia” (“marxista”) ainda viveu debilmente por mais alguns anos: “Estava ainda profundamente enraizada na mentalidade dos operários a forma de pensar utopista própria da infância do movimento proletário que, segundo Marx, tinha sido superada pela Internacional, assim como a ciência tinha superado as antigas concepções dos astrólogos e dos alquimistas. A era do socialismo utópico não estava ainda tão ultrapassada quando os autores das resoluções de Londres tentaram transformar a Associação em uma organização política militante adaptada às necessidades do proletariado moderno.

Muitos eram ainda os que tinham conhecido os habitantes do New Harmony de Owen, e entre os membros da Internacional ainda se encontravam velhos icarianos da colônia texana de Considérant… A Internacional continuava profundamente marcada pelo utopismo. Só era viável como organização ampla composta por elementos heterogêneos… Se tivesse continuado a ser o que era em 1864 (data de sua fundação) teria podido sobreviver algum tempo, embora de forma mais ou menos anacrônica. Ao sair de sua velha esfera condenou-se à distorção produzida pela força centrífuga de suas diversas tendências liberadas daquele contexto, assim como seria denunciado o compromisso de seu pacto fundamental”.8

Em Filadélfia (EUA), em julho de 1876, se acordou “suspender por tempo indeterminado a Associação Internacional dos Trabalhadores”. Engels escreveu a Sorge com motivo da demissão deste do cargo de secretário da organização: “Com sua demissão, a velha Internacional fica definitivamente ferida de morte e chega ao seu fim. Isso é bom. Pertencia ao período do Segundo Império”. Os exilados da Comuna na Nova Caledônia constituíram uma “comunidade” que, notadamente, ficou do lado das autoridades francesas quando se produziu um levantamento anticolonial da população local.9

Na França, em janeiro de 1875 foi proclamada a nova Constituição, sobre bases republicanas e baseada no sufrágio universal. Este foi instaurado depois da derrota da Comuna, quando já tinha deixado de ser o terror das classes dominantes. Os condenados da Comuna foram finalmente anistiados; no início do século XX, um grupo cultural de anarquistas franceses realizou um modesto filme (mudo) sobre a Comuna, no qual alguns sobreviventes de 1871 tiveram participação. O último communard vivo, Adrien Lejeune, morreu em 1942 na União Soviética; foi enterrado no Kremlin durante a Segunda Guerra Mundial e descansa atualmente no cemitério do Père Lachaise de Paris, em face do “Muro dos Federados” (local de fuzilamento de combatentes da Comuna).

6.

A Internacional chegou nas Américas principalmente a partir de militantes europeus. Entre 1864 e 1872 vários informes anunciaram importantes progressos da Associação Internacional de Trabalhadores nos EUA. Delegados norte-americanos participaram dos congressos de Internacional entre 1868 e 1871, como Andrew Carr Cameron, (1834-1890), diretor do Workman’s Advocate e da Liga pelas 8 Horas. Mais ao Sul, os tipógrafos argentinos foram os primeiros na América Latina a estabelecer vínculos com a AIT em fins da década de 1860. Apesar desses laços, foi preciso esperar a chegada dos exilados europeus, fundamentalmente franceses sobreviventes da repressão contra a Comuna de Paris, para ver constituída uma seção local da Associação Internacional de Trabalhadores em Buenos Aires.

Em 1872 se criou a seção francesa, logo as seções italiana, espanhola e mais tarde outra no interior do país (em Córdoba). As seções argentinas da Associação Internacional de Trabalhadores se dissolveram em 1876 seguindo as resoluções do Conselho de Nova York. Houve também núcleos da Associação Internacional de Trabalhadores em outros países, como Peru e Brasil, com escassas forças, embora importantes pelo seu papel na formação dos primeiros sindicatos operários.10

A “democracia representativa” baseada no sufrágio universal alterou o terreno da luta política na Europa. Com o parlamento posto no primeiro plano do palco político, a cisão entre reformistas e revolucionários no interior do movimento operário tornou-se inevitável e passou a dominar os debates. Na Inglaterra, as trade unions evoluíram para a forma definitiva dos sindicatos, que tiveram uma evolução lenta em suas reivindicações. As jornadas de trabalho tinham diminuído, o poder de compra do salário tinha crescido, mas ainda a situação nos bairros operários continuava muito precária.

As trade unions inglesas foram reconhecidas como sindicatos da classe operária justamente em 1871. No plano dos direitos políticos dos trabalhadores, as conquistas foram mais lentas: foi só com a reforma eleitoral de Benjamin Disraeli (1867) e depois com a reforma parlamentar de William Gladstone (1884), que a maioria dos operários ingleses obteve o direito de sufrágio. Do outro lado do Canal da Mancha, a onda da Comuna ainda se fez sentir, mesmo de modo tácito ou implícito. Nas eleições francesas de 1876 saíram vitoriosos os republicanos, vencendo os monarquistas. Em 1879 foi reeleito presidente o republicano Jules Grévy; os republicanos, dentre os quais muitos maçons, uniram-se no combate ao clero; não só pretendiam tirar das congregações o ensino, mas também fazer da escola laica, gratuita e obrigatória, a base do regime político.

Em 1881, dez anos depois da Comuna de Paris, e pouco menos de dois anos antes de sua morte, uma revista londrina finalmente elencou Karl Marx entre os líderes do pensamento de seu tempo, embora apenas no posto de número 23… A chamada Associação Internacional dos Trabalhadores sobreviveu na sua dissidência anarquista, que se considera como herdeira da que foi fundada em 1864. A sua existência hoje é principalmente simbólica. Os partidos socialdemocratas se desenvolveram principalmente no terreno sindical e eleitoral, o que alterou por um longo período (até o final da Primeira Guerra Mundial) o terreno em que se livrava a luta política da classe operária.

A “velha toupeira”, no entanto, continuou seu trabalho subterrâneo e, no final da “Primeira Grande Guerra”, foram o exemplo e as lições da Comuna (o governo da classe operária) e da Primeira Internacional (o comunismo) que inspiraram os bolcheviques russos a encabeçar um novo “assalto ao céu”.

A Associação Internacional dos Trabalhadores teve uma importância histórica decisiva: “Imprimiu na consciência dos proletários a convicção de que sua libertação do jugo do capital não poderia ser atingida no interior dos confins de um só país; era uma questão global. Igualmente, graças à Internacional os operários compreenderam que sua emancipação só poderia ser conquistada por eles mesmos, pela sua capacidade de se organizar, e que não poderia ser delegada a outros”.11

Uma ideia que foi explicitamente exposta por Karl Marx: “Antes da fundação da Internacional todas as diversas organizações eram sociedades fundadas por alguns radicais das classes dirigentes, enquanto a Internacional foi constituída pelos operários para eles mesmos”. Uma simples assertiva, que não só define o papel histórico da Associação Internacional de Trabalhadores, mas também o das individualidades (Marx incluído) e das ideias no grande curso da história e da luta de classes, uma lição que burocratas e sectários de todas as espécies recusam até o presente, e muito mais vigente hoje do que nos tempos da Associação Internacional de Trabalhadores.

Notas
1 MORUS, Thomas. Utopia. Brasília: Universidade de Brasília, 2004 [1516].
2 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Pualo: Boitempo, 2000.
3 ABENDROTH, Wolfgang. História Social do Movimento Trabalhista Europeu. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
4 QUINCEY, Thomas de. The Logic of Political Economy. Londres, Kessinger, 2009 [1844].
5 MARX, Karl. O Capital [Livro 1]. São Paulo: Boitempo, 2023.
6 BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1972.
7 COLE, G. D. H. Historia del Pensamiento Socialista. México: Fondo de Cultura Económica, 1976, vol. I.
8 MOLNAR, Miklós. El Declive de la Primera Internacional. Madri: Edicusa, 1974.
9 CALAMITA, Umberto. Il tempo delle ciliegie. La Contraddizione , Roma, n° 135, abril-junho 2011.
10 Cf. RODRIGUES, Edgar. Alvorada Operária. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1979.
11MUSTO, Marcello. Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014.

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Osvaldo Coggiola é professor titular de história contemporânea da Universidade de São Paulo. Nascido na Argentina, é autor, entre outros livros, de Teoria econômica marxista: uma introdução (2021), e organizou a edição da Boitempo do Manifesto comunista de Karl Marx e Friedrich Engels. Colaborador da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, também tem textos publicados nos livros Curso Livre Marx-Engels (2015), organizado por José Paulo Netto e István Mészáros e os desafios do tempo histórico (2011), organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile. 

1 comentário em A Primeira Internacional

  1. Roberto R. Martins // 11/09/2024 às 6:44 pm // Responder

    Tem me preocupado muito a falta de utopias no mundo atual, especialmente na juventude e na Europa. Por isso tenho pesquisado o tema para aprofundamento de reflexões necessárias., tendo lido/relido muitos dos livros citados.

    Aproveito para chamar a atenção para o “O caderno azul de Jenny”, livrinho cativante,que traz algumas informações sobre a AIT. Publiquei um artigo sobre o mesmo como colunista do Brasil247.

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