Para uma crítica da ciência política

Ao propor uma ciência política aberta às contribuições do marxismo, Luis Felipe Miguel não postula a construção de uma suposta ciência política marxista, o que seria, em função do próprio método marxista, um contrassenso. Com uma escrita direta e clara, acessível tanto a iniciados quanto a iniciantes em teoria social, o autor nos oferece em “Marxismo e política: modos de usar” uma excelente crítica da ciência política.

Imagem: Wikimedia Commons

Por Felipe Demier

A crise da democracia liberal, enquanto expressão tópica da crise de hegemonia burguesa em meio à crise estrutural do capital, parece crescer de modo inversamente proporcional à capacidade do pensamento político do mainstream liberal em diagnosticá-la corretamente. Arriscamo-nos a dizer que tal fato pode ter constado entre as motivações que levaram o cientista político Luis Felipe Miguel a produzir seu último livro, no qual se propõe discutir a importância da teoria marxista para a compreensão das contradições e impasses do modo de dominação política vigente, que hoje é “invadido” pelas assustadoras forças do neofascismo – e parece receber muito cordatamente seus “invasores”.

O veio escolhido pelo autor para expor suas análises críticas foi o de abordar tanto temáticas fundamentais para uma apreensão marxista da política, tal qual classes sociais, Estado, democracia e capitalismo, alienação e fetichismo, desigualdade e transformação social, assim como se debruçar acerca de questões que o marxismo é oportunisticamente acusado de ter negligenciado, como raça, gênero e ecologia. Em ambos os casos, rejeitando todo e qualquer dogmatismo, Luis Felipe Miguel demonstra como a melhor tradição marxista, aquela dialética e ativa, ofereceu interpretações e sobretudo ferramentas teóricas capazes de melhor apreender as conexões e contradições entre as múltiplas categorias que constituem a totalidade em movimento da sociedade capitalista e, portanto, daquilo que, numa linguagem poulantziana, pode ser chamado de o seu nível político.

Almejando, em outra oportunidade, poder discutir as sugestivas contribuições do autor sobre os temas ecológico, de gênero e racial – nas quais têm lugar uma crítica sofisticada e radical às vertentes identitaristas que hoje impregnam os ambientes de esquerda, inclusive as correntes marxistas –, nos dedicaremos nas poucas linhas a seguir a tecer alguns poucos comentários sobre os valiosos aportes oferecidos por Luis Felipe Miguel em seu último trabalho àqueles que, nos espaços universitários, militantes e no debate público em geral se enfrentam com um pensamento político liberal cada vez mais insípido e inabilitado para dar conta da crise democrática atual. 

Miguel, disponibilizando ao leitor curtas sínteses sobre a produção marxiana e marxista acerca da relação entre a produção da vida material e os meios e mecanismos de dominação social, explicita como se constitui em um grosseiro equívoco tentar pensar a esfera da política a partir de determinações e espaços próprios, como faz o campo hegemônico (para não dizer absoluto) da “ciência política”. Certamente a principal adversária da obra, a atual ciência política hegemônica – fiel, aliás, ao próprio nascimento da disciplina na qualidade de ciência auxiliar da dominação política do capital sobre o trabalho – é submetida a uma ligeira, porém acurada e inclemente, crítica do autor, por meio da qual seu erro primevo e fundante é evidenciado: a cisão entre a política e o conjunto da vida social.

Este equívoco metodológico encerra, segundo Miguel, um posicionamento político. Ao hipostasiar as “regras do jogo” e ver “os abalos a elas como patologias”, a ciência política hegemônica deixa cair o véu que esconde sua natureza liberal e ordeira. Sob o pretexto de uma “abordagem ‘descritiva’”, essa ciência política, congelando a realidade existente e se eximindo de “colocar os valores que a justificam sob escrutínio crítico”, não passaria, segundo o autor, de uma “ciência política voltada à estabilização da dominação” (p.183).

Buscando naturalizar o que é histórico (como as instituições políticas da nossa democracia liberal-representativa), tomando como um “dado” aquilo que é um produto social (como as vontades e preferências dos sujeitos), a ciência política, vertebrada pela epistemologia neopositivista, converte-se em apologética da ordem vigente, obnubilando a dominação e opressão que a estruturam. Recortando a esfera política das demais e, portanto, eliminando as articulações entre as categorias presentes na primeira com aquelas contidas nas últimas, a ciência política não faz senão expurgar violentamente o movimento dialético e as contradições da totalidade social que determina a – e também é determinada pela – política. Assim, tomando a aparência como a essência da coisa – ou, em termos filosóficos, limitando-se à sua dimensão fenomênica –, a ciência política vislumbra o âmbito político como algo formado não mais do que um conjunto de instituições destacadas do Estado, destinadas ao fazer ordinário (nos vários sentidos semânticos do termo) da política, e todas elas, assim como os sujeitos que delas participam, devidamente desplugados das demais dimensões da vida social, com destaque para a material, na qual se situam as classes sociais.

O fazer político passa a ser, portanto, um apanágio das instituições estatais, nas quais, costumeiramente, tem lugar a “pequena política”, e toda a política extraparlamentar, em especial a feita com suor e sangue pelos movimentos sociais animados pelos setores subalternos, não é digna das análises dos doutos cientistas políticos – em especial daqueles assiduamente presentes nos programas do cada vez mais miserável jornalismo político do mainstream:

A compreensão de que as relações de trabalho, a família e a exploração da natureza são questões políticas continua a ter que ser sustentada [pelos setores críticos] todos os dias. Contra ela opera um discurso do senso comum, que reduz a política aos espaços institucionais e que é refletido e reforçado pelo jornalismo, o qual setoriza as ações no mundo segundo sua lógica produtiva e reserva o noticiário político aos poderes constitucionais e aos partidos, relegando o conflito entre capital e trabalho às páginas da economia, as lutas pelos direitos das mulheres aos cadernos de ‘cotidiano’ e o ambientalismo a umas ou outros, conforme o caso. A maior parte da ciência política, com seu institucionalismo estreito, funciona no mesmo diapasão (p.31-31).

O autor destaca, assim, o viés fortemente institucionalista da disciplina, que cinge seus objetos de pesquisa aos poderes formalmente constituídos, aos partidos (os grandes), aos candidatos (os que têm chance de êxito), às articulações, às negociações, às eleições, às legislações eleitorais e, claro, aos eleitores, os quais, à maneira utilitarista, são tomados como indivíduos plenamente cientes das suas realidades e movidos por interesses privados, a partir dos quais fazem “escolhas racionais”.

Marx certa feita disse a Engels que “Darwin reconhece entre animais e plantas sua sociedade inglesa com sua divisão de trabalho, competição, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a ‘luta pela existência’ malthusiana”. Não seria arriscado dizermos que a atual ciência política considera ser parte da “natureza” da flora e fauna dos eleitores a existência de uma racionalidade neoliberal que, como sabemos, é produzida e reproduzida diuturnamente por uma série de aspectos da sociedade capitalista – não tendo, portanto, nada de natural e, talvez, quase mais nada de racional diante do nosso crescente caos. Para criticar esse individualismo metodológico da ciência política hegemônica, que remonta às origens do pensamento político contratualista de Hobbes e Locke (com seus indivíduos naturalmente egoístas e possessivos), e problematizar (desnaturalizar) a formação das preferências político-eleitorais dos cidadãos, o resgate feito por Luís Felipe Miguel dos conceitos marxianos de alienação, ideologia e fetichismo é de suma importância.

No combate ao politicismo míope da ciência política liberal, o autor recupera a análise de Marx – já ensaiada desde os tempos de Sobre a questão judaica e desenvolvida em obras da maturidade como os Grundrisse e O capital – acerca daquela que talvez seja a principal particularidade distintiva do modo de produção capitalista em relação aos seus antecessores: a separação das esferas da exploração (do sobretrabalho) e da coerção (extraeconômica). Tal separação, como Marx e diversos autores marxistas assinalaram, é o que está na base do surgimento de um Estado alocado aparentemente “acima” e “independente” da sociedade – o que, nos termos do jovem Marx, então ainda um tanto quanto feuerbachiano, foi chamado de “alienação política” (o Estado enquanto uma “abstração da sociedade civil”, a sua essência alienada). Atribuindo igualdade jurídica a proprietários e não proprietários dos meios de produção – todos cidadãos livres e não sujeitos a outrem, embora, convém lembrar, sem o mesmo gozo dos direitos políticos e sociais, o que demandaria muitas lutas sociais ao longo dos séculos XIX e XX –, o Estado capitalista constitui, assim, a forma político-jurídica necessária a uma sociedade fundada na produção e troca de mercadorias, incluindo a mercadoria força de trabalho, a única disponível ao moderno proletariado, produto histórico da dissociação completa entre os trabalhadores e a terra/instrumentos de trabalho.

Destarte, as relações de produção, livres dos expedientes extraeconômicos de obtenção do sobretrabalho, acabam por serem despolitizadas (no sentido formal), ao passo que o Estado, agora universalista e lócus concentrado de toda a política – antes, enfatizamos, imersa no (e constitutiva do) próprio processo produtivo –, se torna, por assim dizer, deseconomizado (também no sentido formal), sendo ele o responsável tanto pelas leis (Direito) que salvaguardam a propriedade privada e regem os contratos entre sujeitos livres que intercambiam mercadorias, como pelo cumprimento delas por meio da coerção (a qual só ele pode legitimamente lançar mão). O cerne da questão que permite desvendar as raízes do politicismo que impera na ciência política (que, como nos mostra Miguel, não enxerga as relações de trabalho como políticas, tampouco observa as determinações econômicas – de classe – do Estado) reside justamente nessa particularidade do modo produção capitalista, nessa forma distinta de articulação entre exploração (economia) e coerção (política). Vale lembrar que esta forma é, em léxico hegeliano, a forma de um determinado conteúdo, a aparência necessária de uma essência, no caso, a igualdade perante o Estado como a forma político-jurídica da circulação de mercadorias (troca de equivalentes entre os sujeitos-cidadãos) que repousa sobre (e nubla) o conteúdo de desigualdade da produção de mercadorias determinado pela não-equivalência entre salário e produção de valor (mais-valia extraída dos cidadãos trabalhadores pelos cidadãos capitalistas).

A justa compreensão dialética dessa separação relativa – porém real – entre economia e política própria ao modo de produção capitalista é fundamental ao pensamento marxista, e autores de perspectivas distintas como Wood e Poulantzas, trazidos por Miguel à discussão, se dedicaram com afinco ao tema. O fato de que a classe dominante economicamente não se faz imediatamente classe politicamente dirigente evidencia a questão da “autonomia relativa do Estado” em seu sentido primeiro e mais estrutural. Isto é, embora as instituições estatais – a começar pelo Direito – sejam constituídas de modo a garantir a reprodução da sociedade burguesa (garantindo a propriedade privada dos meios de produção), a forma universalista do Estado capitalista faz com que o seu controle por parte da burguesia requeira uma série de expedientes. Miguel apresenta rapidamente alguns desses expedientes, aduzindo ao debate teóricos marxistas como Lênin, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Ralph Miliband, além de outros não marxistas, como Wright Mills e Carole Pateman, e oferece ao leitor importantes subsídios para uma análise crítica dos infindáveis limites e tensões da democracia sob o capitalismo – um tema, aliás, que o autor já explorou em interessantes publicações pretéritas (com destaque para Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018) e democracia na periferia capitalista. Impasses do Brasil (Autêntica, 2022). A nosso ver, as questões trazidas por Miguel contribuem, em muito, para o debate do que denominamos de democracia blindada, atualmente em profunda crise, da qual o crescimento vultoso da extrema-direita “antissistema” talvez seja a sua mais perfeita (e cruenta) tradução.

Ao expor os vários mecanismos pelos quais a democracia, em sua forma liberal-representativa, corresponde, não obstante tensões e contratendências, ao domínio do capital sobre o trabalho, o autor se opõe pelo vértice à ciência política hegemônica. Diante do fato de que as classes sociais em presença dispõem em quantidades absolutamente desiguais de recursos econômicos e culturais tanto para a “formação das preferências”, quanto para a intervenção nos processos eleitorais e o acesso aos governantes eleitos, uma parte dessa ciência política hegemônica porta-se – recuperando uma expressão de Marx – com uma “idiótica indiferença”, enquanto outra, impudente, o saúda, transformando – e agora é de Goethe a expressão – “a praga em benção”. Se alguns poucos eleitores têm infinitamente mais poder econômico, influência social e acesso político aos representantes do que milhões de outros supostamente representados, “azar (ou seria sorte?) dos fatos”, dizem os nobres cientistas políticos. Reificando os “procedimentos consagrados” e as “regras do jogo” democrático, a ciência política hegemônica não questiona como estes podem tão bem “conviver com a reprodução da dominação social” e, portanto, se afastarem por completo dos “valores centrais da igualdade política e soberania popular” (p.126).

Esgrimindo as contribuições do pensamento marxista contra essa ciência política hegemônica, Miguel questiona seus fundamentos epistêmicos, desmistifica sua “neutralidade axiológica” e revela sua verdadeira natureza política de classe. Convém ressaltar ainda que, ao apontar essa “autonomia relativa da política” sob o capitalismo, o autor rejeita também o economicismo presente em certas tradições dogmáticas e esterilizadas do marxismo, como o stalinismo, para as quais a “superestrutura política” seria um mero reflexo da base material, um epifenômeno da “infraestrutura econômica”.

Ao propor uma “ciência política aberta às contribuições do marxismo” (“seja em suas ferramentas analíticas, seja nos problemas que discute, seja ainda em seu entendimento de qual é a missão da ciência social”) (p.184), o autor não postula a construção de uma suposta ciência política marxista, o que seria, em função do próprio método marxista, um contrassenso. Com uma escrita direta e clara, acessível tanto a iniciados quanto a iniciantes em teoria social, o que Luis Felipe Miguel nos oferece em Marxismo e política: modos de usar é uma excelente crítica da ciência política.

Referência bibliográfica
MIGUEL, Luis Felipe. Marxismo e política: modos de usar. São Paulo: Boitempo, 2024.

Resenha publicada originalmente no site Marxismo21.


Quais e quantas combinações são possíveis entre o marxismo e a ciência política? Em Marxismo e política: modos de usar, o cientista político Luis Felipe Miguel debate a relevância do marxismo para a análise da política. A obra busca introduzir e enfatizar a utilidade desse marco teórico para a produção de uma ciência política capaz de entender o mundo social e orientar a ação nele.
 
Ao longo dos nove capítulos, o autor cruza diferentes temas da tradição marxista com o campo da ciência política, como as classes sociais, o Estado, o gênero, alienação e fetichismo e muitos outros. Em contrapartida, demonstra a importância de uma abertura do próprio marxismo ao diálogo com a produção contemporânea da ciência política. Com isso, ao mesmo tempo evita o dogmatismo e abre caminhos para a pesquisa em ambos os territórios dos quais se propõe a tratar.


Confira o lançamento de Marxismo e política: modos de usar, com Luis Felipe Miguel e Felipe Demier, mediação de Daniela Mussi, na TV Boitempo:

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Felipe Demier é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de O longo bonapartismo brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964) (Mauad, 2013) e Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil (Mauad, 2017).

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