Ecos do Marco Temporal
Aos Guarani e Kaiowá e às famílias do Acampamento Esperança do MST, Mato Grosso do Sul, a nossa solidariedade.
Foto: Romerito Pontes (Wikimedia Commons).
Por Gabriela Guillén, Judite Stronzake,
Maria Orlanda Pinassi e Matias Benno Rempel
Acompanhamos com enorme apreensão a mais este ataque aos Guarani e Kaiowá numa área de retomada de suas terras ancestrais, localizada em Douradina, no Mato Grosso do Sul (MS). O município foi transformado no epicentro político de um laboratório trágico do que acontece com quem luta por demarcação de terras, direito garantido pela Constituição Federal de 1988.
As imagens divulgadas pela internet das ações violentas contra eles nos dias 3 e 4 de agosto não deixam dúvidas quanto às reais intenções dos agressores que na posse de armamento pesado, camionetes enormes, drones e motos investiram contra um reduzido número de famílias com suas crianças e idosos. As imagens são assustadoras, e à medida que essas violações se tornam mais frequentes e não encontram freios à altura, crescem na intensidade da violência empregada. Os ferimentos causados nas vítimas são reveladores de que chegaram na área para aterrorizar e matar. O preâmbulo já anunciava o nível da truculência investida. Numa prática que não é nenhuma novidade na região, no dia 30 de julho o indígena Catalino Gomes Lopes, 49 anos, foi atropelado por uma camionete Hilux quando transitava com sua bicicleta pelo anel viário de Dourados. A rodovia foi bloqueada pelos Guarani e Kaiowá como forma de protesto para exigir melhorias na travessia da estrada, mas foram dispersados pela Polícia Militar com bombas de gás e bala de borracha. No dia seguinte seu corpo foi velado no mesmo local da rodovia pela comunidade.
Os dias a seguir foram de terror e pânico, um verdadeiro cenário genocida nas retomadas de Douradina. À noite do mesmo dia 3, os ataques se estenderam ao Acampamento Esperança do MST. Segundo os acampados, aquilo foi retaliação por prestarem solidariedade aos indígenas Guarani e Kaiowá em luta naquele território marcado pela matriz produtiva das commodities agrícolas de exportação, cuja fatia maior segue para a China, segundo a SEMADESC.
A China continua sendo o principal destino das vendas externas do MS, absorvendo 49,32% das exportações. Seguido pelos Estados Unidos (5,50%) e Países Baixos (4,38%).
Sabe-se muito bem que o resultado positivo da produção das commodities naquela região, sempre festejado pela grande imprensa a serviço de nossa lumpenburguesia, além de danificar a existência de indígenas e sem-terras, degrada de modo irreversível o Pantanal como um todo, bioma que apesar de pequeno, com apenas 195,7km², é responsável por abrigar parte de um dos maiores sistemas hidrológicos do mundo, a Bacia do Paraná/Paraguai, e a maior densidade de mamíferos por km² do planeta.
Para esclarecer melhor a questão, seria importante a leitura do artigo “Marco Temporal e outras armadilhas neoliberais: a velha aliança genocida do capital e Estado sobre os Guarani Kaiowá”. Mais do que matéria de denúncia, este artigo traz importante análise sobre a orquestração macabra que se estabelece, naquela e em todas as regiões do país, em torno dos interesses do agronegócio. O artigo explicita as profundas afinidades entre os poderes públicos – Executivo, Legislativo e Judiciário – e os poderes privados – nas dimensões internas e externas – ancorados no movimento miliciano Invasão Zero e na efetivação do Marco Temporal. Ou seja, enquanto os poderes públicos efetuam a dissolução do direito fundamental à terra por meio de negociações obscuras, o agronegócio se arma até os dentes a fim de preservar os seus privilégios econômicos e societários.
É exatamente isso a que assistimos nesse momento. Um quadro desesperador em que falham ou se omitem todos os instrumentos que deveriam estar ali para proteger esses grupos sociais já severamente castigados pela pobreza e pela fome. Todas as decisões são tomadas de antemão no âmbito do privado demonstrando que a determinação é do capital. Mas, o papel dos burocratas é fundamental na efetivação desses interesses. A começar pelo Ministério dos Povos Indígenas, um órgão benevolente frente a uma guerra absurdamente desigual. No melhor estilo liberal da tolerância responsabilizou os indígenas por não serem suficientemente pacíficos e, consequentemente, pela radicalização da ação contra eles próprios.
Também a Força Nacional que, ao invés de zelar por eles, reforçou o lado agressor. Naquelas circunstâncias, houve de fato algum tipo de insubordinação à ordem superior de proteger os Guarani e Kaiowá? Ora, a responsabilidade para com os povos indígenas é do Governo Federal. Porque, então, há tanta coisa mal explicada neste e em tantos outros episódios criminosos?
Pensamos, portanto, que o momento é mais do que propício para colocar o dedo na ferida já podre das omissões funcionais do Governo Federal que vem dando provas de que identitarismos de fachada não conseguem mais esconder a total cumplicidade que pratica com o agronegócio e suas deliberadas ações assassinas da natureza e seus povos. O ato do Governo Federal de oferecer ao Plano Safra 2024/2025 a exorbitante cifra de R$400,59 bilhões ao agronegócio que, não produz alimentos saudáveis ao povo brasileiro e ainda destrói o meio ambiente, é um posicionamento político muito evidente diante da pequena agricultura familiar que precisa superar a montanha de burocracias institucionais para acessar os R$76 bilhões que lhes foram destinados.
Começa a ficar claro que o encastelamento de Lula III em Brasília, quando não está no exterior, não é uma dificuldade, nem constrangimento frente à intensa bolsonarização de quase todas as regiões do país. É mais uma conveniência de quem optou pelo laisser passer a monocultura, a boiada, a motosserra, o veneno, o fogaréu, a destruição no seu sentido mais pleno.
O exercício da solidariedade entre os que lutam contra um inimigo de classe comum é sedimentado pela mobilização popular das ocupações de terra, seja de indígenas ou trabalhadores sem-terra. Só a luta de base tem a força motriz para as mudanças societais. Mais do que atender ao mercado ou preencher cargos institucionais, qual seria o real objetivo de um movimento social para fazer sair do papel a demarcação de terra indígena e a reforma agrária?
Enquanto predomina o silêncio entre os que se afirmam de esquerda, testemunhamos a legalização da truculência. A milícia nacional Invasão Zero age com status institucional de repressão e contra ela ainda não há nenhuma forma de coibição. Pelo contrário. Então, até quando seguiremos na ilusão das simbologias cordiais que sedimentam os caminhos do cinismo frente às reais contradições que habitam o mundo, da realidade dos Guarani e Kaiowá, dos sem-terra, da sua condição de trabalhadores super explorados.
Os Guarani e Kaiowá, um povo historicamente vilipendiado, espoliado e abandonado à própria sorte, um povo de aparência frágil e gentil, têm mostrado ao longo dos séculos a imensa coragem que transmite através de suas lutas. A desigualdade da guerra desferida contra eles pode ser imensurável, mas é esse o povo que, com seus corpos e seus símbolos sagrados, ainda ousa retomar suas terras e sua cultura ancestral. É deles também a íntegra relação metabólica com a natureza, pois as terras quando ainda ocupadas por eles são os últimos resquícios de matas preservadas no país. Para defendê-las enfrentam na solidão de seus territórios o que há de mais espúrio no elo periférico do capital.
No entanto, os caminhos, além da violência explícita, estão cheios de outras armadilhas mais sutis e perigosas. Por exemplo, os tempos de distração em intermináveis reuniões com autoridades oficiais “bem-intencionadas” tendem a apaziguar os ânimos e protelar o fim mais do que anunciado da política de conciliação. Hoje, porém, não há mais lugar para qualquer esperança na esfera institucional de gestão do capital com suas promessas de “empoderamento” cultural. Muito menos se pode transigir frente à pesada investida de setores financeiros sobre os povos vulneráveis na ilusão de “empoderamento” econômico e social através do empreendedorismo. Sem falar na agressiva disputa de suas almas pelo neopentecostalismo com seus ódios e suas promessas de prosperidade largamente instalado em reservas indígenas.
Até quando iremos ignorá-los em nome do progresso e do socialismo teleológico? Hora de ombreá-los numa luta sem hierarquias e sem verticalizações. Hora de respeitá-los pelo muito que representam em momento tão sombrio.
Agosto de 2024.
Margem Esquerda #29
Com dossiê Lutas indígenas e socialismo, organizado por Silvia Adoue, com textos de Jean Tible, Laura Zúñiga Cáceres, Gabriel Moraes Ferreira de Oliveira. A expansão das cadeias extrativistas e as lutas e movimentos indígenas que se organizam por toda a América Latina são temas pulsantes nessa edição, assim como a ascensão global da direita, a precarização e perda de direitos da classe trabalhadora, o desmatamento e a degradação do meio ambiente. A edição também conta com o ensaio “Aspectos do problema indígena”, do sociólogo e ativista político peruano José Carlos Mariátegui.
Margem Esquerda #42
As intersecções entre marxismo e ecologia estão no centro desta edição da Margem Esquerda. Abrindo o volume, John Bellamy Foster repassa sua trajetória intelectual e política e reflete sobre os desafios do presente em conversa com Michael Löwy, Maria Orlanda Pinassi e Fabio Mascaro Querido. Um dos mais importantes intelectuais marxistas em atividade, em especial por suas intervenções no debate ecológico, Foster avançou como poucos numa compreensão da obra de Marx que não apenas a coloca em diálogo com as abordagens ecológicas mais recentes, como também visualiza as chaves para uma explicação materialista da atual crise ecológica. O dossiê “Marxismo, capitalismo e ecologia”, esquadrinha o problema em quatro ensaios afiados que buscam articular a teoria e prática do ecossocialismo diante de um cenário cada vez mais urgente de crise climática e civilizatória. Organizado por Fabio Mascaro Querido, o dossiê conta com ensaios de Michael Löwy, Luiz Marques, Ana Paula Salviatti, Arlindo Rodrigues e Allan da Silva Coelho.
Terra viva: minha vida em uma biodiversidade de movimentos, de Vandana Shiva
Autora de importantes obras que discutem os ataques ao meio ambiente por grandes empresas e o efeito desastroso de um mau uso do solo, a doutora em física quântica e ativista ambiental Vandana Shiva faz nesse livro uma volta a suas raízes, revendo uma trajetória que acabaria por definir os movimentos em que se engajou. Assim, ela aborda fases como a infância rural vivida na Índia, sua criação na fazenda dos pais em meio às florestas, a educação libertária que recebeu deles, passando pela mudança de vida e de perspectiva que teve ao entrar na faculdade e viver em grandes centros urbanos na Índia e no exterior. Tudo isso culminando na descoberta dos movimentos de luta em defesa da natureza e dos povos nativos e de sua influência na política ambiental mundial.
Enfrentando o Antropoceno, de Ian Angus
Angus faz uma reflexão sobre as alternativas de mudanças em meio ao desenfreado aumento de temperatura, clima extremo, elevação dos oceanos e extinção em massa de espécies. Para o autor, a sobrevivência no Antropoceno exige uma mudança social radical, substituindo o capitalismo fóssil por uma nova civilização ecossocialista: “Ian Angus demonstra como a essência predatória do sistema econômico capitalista declara guerra, em nome do crescimento econômico infinito, do lucro e da acumulação desenfreada de riquezas contra o sistema Terra, contra Gaia/Pachamama e mostra de que maneira a lógica desse sistema precisa ser combatida em seu todo”, escreve Alexandre Araújo no texto de orelha.
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Gabriela Guillén é cientista social e educadora ENFF.
Judite Stronzake é pesquisadora e ativista socioambiental.
Maria Orlanda Pinassi é professora e pesquisadora.
Matias Benno Rempel é coordenador do CIMI MS.
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