No Brasil, fé é festa

Um comentário sobre intolerância religiosa e Olimpíadas.

Foto: Marianna Smiley (Unsplash).

Por Adelaide Ivánova

Esses dias passou pelo meu feed um post meio confuso, que tentava uma equação complexa: os atletas brasileiros, sua fé em Deus e suas poucas medalhas, versus os atletas chineses, sem fé, mas com condecoração (e ainda foram adicionados ao bololô os indianos, que, segundo o autor, mesmo com sua fé em não somente um, mas vários deuses, não conseguiram medalhas em quantidade equivalente à variedade de seu panteão divino). Fiquei injuriada. Primeiro porque o texto não diz exatamente a que veio. Segundo porque não consigo entender a implicância/arrogância do intelectual brasileiro com a fé do povo. E, por último, me parece tão irresponsável, em 2024, apontar o dedo para a fé das pessoas, pelo que quer que seja.

Digo que é irresponsável porque basta ver o que a intolerância religiosa fez e faz mundo afora. No nosso país, as religiões de matriz afro-indígena e outras expressões religiosas (inclusive o ateísmo) sofrem proibições e ataques desde a colonização. No Brasil contemporâneo, o número de denúncias de intolerância religiosa mais do que dobrou entre 2021 e 2022 e só fazem aumentar. Enquanto isso, nos EUA e na Europa, islamofobia é plataforma de campanha política, usada para angariar votos e apoio popular e, no Reino Unido, há o alarmante aumento de pogroms com cunho islamofóbico-racista. Por isso que falo que é irresponsável falar da religião de pessoas comuns, não-fascistas, como se sua fé fosse um problema. É leviano falar assim, porque a intolerância religiosa é uma das táticas centrais da extrema-direita, usada para incitar quadros já ativos, ou recrutar novos membros. Isso tudo sem falar, claro, em certa guerra imperialista, que começou em outubro de 2023, cheia de propaganda islamofóbica no meio.

Além disso, esse tipo de comentário não se sustenta muito na realidade. Um bom exemplo disso é o cubano Mijaín López, um dos maiores atletas de todos os tempos, a primeira pessoa a vencer cinco medalhas de ouro em cinco Olimpíadas. Mijaín já dedicou várias de suas vitórias à Revolução Cubana e a Fidel Castro, e essa dedicatória não é à toa – Castro abriu escolas e centros desportivos em toda Cuba e declarou o esporte como um direito do povo. Mas tem outra coisa: se pensarmos que quase 90% da população cubana se autodeclara fiel a alguma religião, não fica difícil imaginar que Mijaín também seja, além de um revolucionário, um crente.

E no fim das contas, esse tipo de recorte moralista é uma oportunidade perdida de olhar para o que realmente importa: o esporte como trabalho e os direitos trabalhistas desse trabalhador (também chamado de atleta). Aqui a gente pode pensar sobre quais condições existem, não somente nos locais de treino (tipo se a pessoa recebe bolsa-atleta ou não, se tem patrocínio ou salário ou não, se tem apoio técnico, psicológico, etc.), mas também em tudo o mais. Podemos pensar acesso à infraestrutura pública tipo transporte, água encanada, acesso à moradia, alimentação, etc.

Em suma: como esse atleta vive quando sai do trabalho (aka treino) e vai pra casa? 

O que muitas vezes o intelectual brasileiro esquece é que o brasileiro é crente. Aqui, me refiro à palavra não como sinônimo de evangélico, mas por aquilo que ela significa: alguém que crê. No Brasil, 89% das pessoas tem alguma crença em alguma divindade e, destas, 76% seguem uma religião. É nesse contexto de povo crente que preciso concordar com a sindicalista Jane McAlevey (RIP), no seu livro Organizing for Power, quando ela diz que se religião importa para o trabalhador, tem que importar para aqueles (comunistas, organizadores comunitários, sindicalistas, educadores populares, etc.), que se importam com a vida de quem trabalha. Não é à toa, aliás, que a lei de liberdade religiosa no Brasil foi escrita por ninguém menos que o camarada Jorge Amado, quando foi deputado pelo PCB, nos anos 1940.

Como nos ensina diariamente o grande crente Luiz Antônio Simas, no Brasil fé é vida, é festa. E muitíssimas vezes é essa fé que vai preencher algumas das lacunas infraestruturais que listei antes. A prática religiosa é, na maioria, das vezes, uma prática comunitária. E é no seio dessa comunidade que a falta de algumas necessidades materiais, pode ser suprida – é muito mais que uma questão espiritual/moral/existencial. Na vida de um atleta pobre, fazer parte de uma igreja ou comunidade de terreiro pode ser o que vai possibilitar que ele tenha onde treinar, como treinar. Por outro lado, essa fé pode ajudar a criar as condições mentais para que a pessoa enfrente a vida, para que esse atleta enfrente as competições. E se tem uma coisa que a gente aprendeu com Simone Biles é que a condição mental importa!

Falando em Biles: o post que apareceu no feed e me injuriou parabeniza a atleta por não usar um crucifixo, e sim um colarzinho com uma cabra (em inglês, GOAT, abreviação de “greatest of all times”, ou melhor de todos os tempos). Mas parece que o autor não sabe que Biles é católica e, não poucas vezes, atribuiu seu enorme talento, que ela diz não poder explicar, a Deus 😉



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Adelaide Ivánova é pernambucana, poeta e organizadora comunitária da campanha Deutsche Wohnen und Co. Enteignen, que luta pela expropriação de grandes empresas do aluguel, em Berlim, onde mora desde 2011. Em 2017, publicou o livro de poesia documental “o martelo”, que investiga a re-traumatização causada por um processo judicial por estupro. Em 2018 o livro venceu o prêmio Rio de Literatura na categoria poesia.

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