A consolidação autoritária

Recusar a normalização da extrema direita não significa ignorar os sofrimentos reais de seus eleitores e a precarização crônica da situação social dos que a apoiam. Muitos menos significa impor discursos morais no lugar de decisões políticas. Significa não compor de forma alguma com as soluções da extrema direita ẹ ter a capacidade de recusar de forma absoluta a sua maneira de definir o debate.

Foto: Daniel Tanase (Unsplash)

Por Vladimir Safatle

No dia 16 de julho, Wilson Gomes publicou, no jornal Folha de S. Paulo, um artigo em que exortava a aceitar a normalização pretensamente inevitável da extrema direita.

Chamando as reações a tal processo de “dogmas” animados por alguma forma de cruzada moral contra setores muitas vezes hegemônicos das populações mundiais, o autor julgou por bem lembrar que, “se o voto é o meio consagrado pelas democracias para legitimar pretensões políticas”, não haveria razão alguma para agir como se a extrema direita não fosse democraticamente legítima.

Por fim, não faltou estigmatizar aqueles que falam em “fascismo” ao se referir atualmente a tais correntes.

Esse artigo não é peça isolada, mas representa certa tendência forte entre analistas liberais e conservadores do mundo inteiro. Tal tendência consiste em recusar a tese da ascensão mundial da extrema direita como movimento catastrófico global de consolidação autoritária e de esgotamento terminal das ilusões da democracia liberal.

Vimos algo semelhante há pouco, quando comentaristas políticos tentavam explicar que um partido como o francês Reunião Nacional, com seu racismo e xenofobia orgânicos, seus vínculos com o passado colaboracionista e colonial francês, seu aparato policial pronto para atirar contra tudo o que se assemelhe a um árabe, não era afinal um problema assim tão grande e nem sequer deveria o partido ser chamado de “extrema direita”.

Posições como essas não são apenas equivocadas. Não há catástrofe política que não tenha sido minimizada pelos que, em momento de crises estruturais, se apresentam como “antidogmáticos”, “equilibrados” e “avessos a palavras de ordem”. Diria, na verdade, que esse pretenso “equilíbrio” é uma peça fundamental do problema e de sua extensão.

Pois, aos que pregam a normalização da extrema direita, eu diria que ela nunca teria força tão grande atualmente se não estivesse há muito normalizada. Não pelos eleitores, mas pelos políticos e formadores de opinião liberais. Há uma aliança objetiva entre os dois grupos.

As políticas anti-imigração precisam ser inicialmente implantadas pelo “centro democrático” para que a extrema direita cresça.

A paranoia securitária precisa estar cotidianamente na boca dos analistas políticos “liberais” para que a extrema direita conquiste seus eleitores e eleitoras.

Idem para a equalização entre militantes de movimentos sociais e tropas de bolsonaristas, trumpistas e afins. Ou seja, quando a extrema direita enfim sobe ao poder, normalmente ela precisa apenas chutar uma porta podre. A normalização real já tinha definido a agenda do debate político.

Contra essa tendência, eu diria que se espera da classe intelectual ao menos a capacidade de chamar de gato um gato. Insistir, por exemplo, que um discurso marcado pelo culto à violência, pela indiferença em relação a grupos mais vulneráveis, pela concepção paranoica de fronteiras e identidade, pelo anticomunismo congênito, pela transferência de poder a uma figura ao mesmo tempo autoritária e caricata, tem um nome analítico preciso, a saber, “fascismo”. É uma forma de sensibilizar a sociedade para os riscos e tendências reais que ela enfrenta atualmente.

Lembrar disso em um país como o Brasil, que conheceu nos anos 1930 um dos maiores partidos fascistas fora da Europa, que teve dois militares integralistas na junta militar de 1969, que teve um presidente que há alguns anos assinava cartas à nação com o lema “Deus, pátria, família”, é sinal de honestidade intelectual mínima.

A universidade brasileira já tem uma responsabilidade enorme em ter tratado o fascismo estrutural em nossa sociedade com zombarias até vir um governo marcado por genocídios indígenas, massacres espetacularizados em favelas e 700 mil mortos na pandemia em nome da preservação das dinâmicas de acumulação capitalista.

Recusar a normalização da extrema direita não significa ignorar os sofrimentos reais de seus eleitores e a precarização crônica da situação social dos que a apoiam. Muitos menos significa impor discursos morais no lugar de decisões políticas.

Significa não compor de forma alguma com as soluções da extrema direita ẹ ter a capacidade de recusar de forma absoluta a sua maneira de definir o debate.

Significa também tensionar a sociedade com uma visão alternativa de transformação e ruptura. Mas talvez seja exatamente isso que alguns mais temam.

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.


Regras para radicais: guia prático para a luta social

Publicado pela primeira vez em 1971, Regras para radicais, do estadunidense Saul Alinsky, foi escrito em meio a efervescências políticas como a Guerra do Vietnã e a luta pelos direitos civis. A obra, que desde então virou referência na formação de ativistas, apresenta os princípios teóricos e políticos do movimento de organização das comunidades estadunidenses, em especial as urbanas. Como um guia político, Regras para radicais traz ideias e orientações para mudanças sociais a partir de construções coletivas, além de abordar os princípios organizativos e de formação de lideranças populares.

A obra chega ao Brasil pela primeira vez e em meio a disputas jamais imaginadas por Alinsky, como a concentração de poder das big techs, a ascensão da extrema direita no mundo e novos debates sobre identidade e interseccionalidade. Para Áurea Carolina e Roberto Andrés, que assinam a orelha da obra, as táticas propostas pelo autor permanecem atuais: “Elas foram pensadas para que o lado mais frágil da sociedade seja capaz de vencer disputas contra aqueles com muito poder”.

Regras para radicais, de Saul D. Alinsky, tem tradução de Nélio Schneider, prefácio de Alessandra Orofino, orelha de Áurea Carolina e Roberto Andrés e capa de Mateus Rodrigues.

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Vladimir Safatle é professor titular dos Departamentos de Filosofia e de Psicologia da USP. Autor de, entre outros,  Só mais um esforço e Em um com o impulso (Autêntica), Cinismo e falência da crítica e O que resta da ditadura: a exceção brasileira, esse último organizado com Edson Teles, ambos pela Boitempo.

1 comentário em A consolidação autoritária

  1. Eduardo Magrone // 01/08/2024 às 9:39 pm // Responder

    Mais um ótimo texto de sua lavra. De minha parte, fiquei tocado pelo parágrafo que se referiu à responsabilidade da universidade. Sim. O fascismo estrutural brasileiro nunca foi levado a sério por esses “espaços de produção do conhecimento”. Talvez, porque a universidade deva muito àquele tipo de pensamento e prática política e, por isso, prefira a zombaria esnobe, mas cretina, a crítica séria que perigosamente poderia acabar por desaguar em uma delicada autocrítica. Nunca se deve esquecer que muitas de nossas mais prestigiadas, e outras nem tanto, universidade públicas foram gestadas no interior de projetos nacionais autoritários do tipo “Brasil potência”. Quando, em pleno tensionamento do ambiente político, percebo a aflição de muitos docentes em relação ao preenchimento dos dados da Plataforma Sucupira da CAPES, não posso deixar de associar a hoje notável burocratização do trabalho intelectual com aquela solidariedade envergonhada em relação à inspiração autoritária dos projetos de origem. Ninguém é inocente!

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