Diário de Paris (V)
Basta uma passeada pelos quartiers populares para ver que o entusiasmo pelos Jogos Olímpicos passa ao largo. Eles são os “vencidos” dos “vencidos” apresentados – de maneira condescendente – pela narrativa oficial. Eles são o alvo da exceção permanente. Para eles, os “valores republicanos” valem mais para lembrá-los o que eles não são, e nem poderiam ser.
Foto: Luca Dugaro (Unsplash)
Por Fabio Querido
23 de julho
Enfim! Após duas semanas de negociações fracassadas de gabinete, os partidos da nova Frente Popular se acordaram sobre o nome a ser indicado ao cargo de primeiro-ministro, ou melhor de primeira-ministra: trata-se da economista Lucie Castets, atual diretora financeira da prefeitura de Paris, governada por Anna Hidalgo (PS), e uma das expoentes do coletivo Nossos serviços públicos, notório opositor das políticas do macronismo em relação à função pública.
Tarde demais? A ver. Seja como for, o fato é que um tempo precioso foi perdido. E, como se diz por aí, em política não há vácuo. Como nos ensinara Walter Benjamin, a política (dos oprimidos) se joga no espaço-tempo do presente, aproveitando-se da indeterminação momentânea a fim de bifurcar o caminho da história. O que era possível ontem talvez não seja mais amanhã.
O anúncio surpresa ocorreu apenas uma hora antes de entrevista televisiva de Emmanuel Macron. Como esperado, Macron propôs uma “trégua” política durante a realização dos Jogos Olímpicos, que começam oficialmente na sexta-feira, dia 26. Para Macron, está fora de questão uma mudança de governo antes de meados de agosto, e sob a condição de que uma maioria sólida seja alcançada, o que não seria o caso – ele fez questão de frisar – em se tratando da nova Frente Popular. “Minha escolha é pela estabilidade”, afirmou o chefe de Estado.
Para melhor sublinhar o seu argumento contra a nova Frente Popular, Macron chegou a dizer – retomando, assim, o discurso da própria extrema-direita – que, a rigor, o partido vencedor das eleições legislativas foi o RN, com mais de 10 milhões de votos, e não a aliança de esquerda. Enquanto tudo continua como está, o governo atual – cuja demissão já foi atada – continua em funções.
Mais uma vez, Macron joga com a ambiguidade institucional diante do ineditismo da situação. De um lado, apela para o parlamentarismo, ótica pela qual pode dizer que “ninguém ganhou” as eleições, na falta de maioria absoluta. De outro, encarna a figura do “monarca presidencial”, colocando-se como árbitro que julga segundo os seus próprios critérios tanto o resultado das urnas quanto os seus desdobramentos subsequentes. Enfim, Macron se apoia também no fato de que, ao contrário dos regimes parlamentaristas puro sangue, nos quais a inexistência de maioria acarreta fatalmente a convocação de novas eleições, uma nova dissolução da Assembleia só pode ser decretada, na França, no mínimo um ano depois da precedente, ou seja, em julho de 2025. Aproveitando-se deste cenário, Macron age como se estivesse acima dos conflitos políticos e fosse a verdadeira encarnação da nação. Como se tivesse dormido Macron e acordado De Gaulle, ou o rei Louis XIV, aquele que, em 1655, diante da Assembleia, afirmou que “o Estado sou eu”.
24 de julho
Embora de perfil moderado e politicamente discreto, mais próxima ao PS do que de LFI, Lucie Castets descartou, em entrevista hoje pela manhã, qualquer aliança com o “centro” macronista, em razão de “desacordos profundos” entre os programas. Segundo ela, “não há coligação possível entre quem pensa que é necessário mais financiamento para os serviços públicos e quem pensa que é urgente cortar recursos. Não há acordo possível entre aqueles que querem que todos paguem a sua justa parte de impostos e aqueles que, ao contrário, propõem reduções de impostos aos mais favorecidos”.
Castets acusou Macron de “negação da democracia”. Ela o incitou a “assumir as suas responsabilidades”, nomeando-a ao cargo de primeira-ministra. A mesma crítica/exigência foi novamente levantada pelos expoentes da nova Frente Popular.
25 de julho
O bloqueio continua. E agora ele se revela não apenas no plano político. Com a proximidade da abertura dos Jogos Olímpicos, Paris está sitiada pelas forças de segurança. São mais de 45 mil homens e mulheres (franceses ou de outros países) patrulhando a cidade. Não se anda mais de um quarteirão sem que se cruze com um grupo de policiais armados até os dentes. Segundo o ministro do Interior, Gérard Darmanin, herdeiro do sarkozysmo (em referência ao ex-presidente Nicolas Sarkozy), eventuais manifestações estão permitidas, mas podem ser proibidas caso apresentem algum “risco” para a segurança.
Um pequeno retrato da França atual: medos reais ou imaginários, desconfiança geral, uma sociedade fraturada e uma população fatigada, sem força para barrar os deslocamentos das “cités” (equivalente francês do que seriam as nossas favelas) que acercam os lugares nos quais ocorrerão eventos olímpicos. Para muita gente, Paris não é uma festa!
26 de julho
No dia da abertura dos Jogos Olímpicos, várias linhas de trens de alta velocidade (TGV) entre Paris e outras grandes cidades da França foram alvo de atos de sabotagem. Em algumas estações da capital, o cenário é caótico. A SNCF (Sociedade Nacional de Caminhos de Ferro, na tradução literal), que controla as ferrovias, falou de um “ataque massivo” visando “paralisar a rede”, e acrescentou que a volta à normalidade não ocorrerá antes de segunda-feira. Mais de 850 mil passageiros devem ser atingidos. Segundo o presidente da SNCF, “é a França que está sendo atacada”. Um péssimo começo para um país que, segundo o presidente da República, deveria aproveitar os Jogos Olímpicos para se mostrar ao mundo “orgulhoso de si mesmo”.
27 de julho
É interessante observar o reverso da medalha da Paris e da França apresentada nos Jogos Olímpicos, contrastando o que é representado com o que o suplanta, com o reverso da medalha. É verdade que, na cerimônia de abertura, houve um esforço para revelar uma França plural, “mestiça”, como se diz aqui, numa sobreposição um tanto aleatória de narrativas que, não por acaso, foi duramente criticada pela extrema-direita, pelo clero e pelos nostálgicos da verdadeira França – na qual, aliás, Maria Antonieta, que aparece decapitada numa das sequências da abertura, teria lugar de destaque, com cabeça e tudo. Marion Marechal [Le Pen], por exemplo, conhecida por suas posições “identitárias” de extrema-direita, denunciou uma cerimônia de abertura dominada pela “propaganda woke”.
O ponto é que, colocado deste modo, por meio de uma antinomia cultural, o debate se reduz a uma disputa de identidades, criando um cenário perfeito para que o aparente “progressismo” oficial seja repudiado por seu elitismo diante da “França profunda”. Et pour cause. Afinal, o reconhecimento parcelado da diversidade se apresenta como um ideal – louvável, sem dúvida – que não se confirma na vida “real”. E quem o pressente não é apenas a extrema-direita, que a instrumentaliza numa direção conservadora ou francamente reacionária, mas também a maior parte das classes populares, que se veem representadas por uma imagem na qual não se reconhecem.
Basta uma passeada pelos quartiers populares (Pigalle, Belleville ou Ménilmontant, por exemplo) para ver que o entusiasmo pelos Jogos Olímpicos passa ao largo. Para os habitantes destes lugares, os Jogos Olímpicos significaram acima de tudo um aumento do controle policial – inclusive para a repressão de manifestações em defesa da Palestina. Eles são os “vencidos” dos “vencidos” apresentados – de maneira condescendente – pela narrativa oficial. Eles são o alvo da exceção permanente. Para eles, os “valores republicanos” valem mais para lembrá-los o que eles não são, e nem poderiam ser.
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Fabio Querido é professor livre-docente de sociologia da Unicamp. Autor de, entre outros títulos, Michael Löwy: marxismo e crítica da modernidade (Boitempo, 2016; Herramienta, 2019), Daniel Bensaïd – intelectual em combate (Fino Traço, 2022) e Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (Boitempo, 2024, no prelo). Atualmente, atua como professor e pesquisador visitante na Universidade Paris-Cité.
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