Por que não deveríamos privatizar nossa água

Apenas de um ponto de vista de administração pública, a privatização da Sabesp é danosa e nem falamos em outros elementos cruciais deste processo, como a qualidade da água e outros aspectos da privatização que estão sendo destacados na imprensa, como a falta de concorrência e a venda abaixo do preço de mercado.

Foto: Waldemar (Unsplash)

Por Daniela Costanzo

O Governo do Estado de São Paulo (GESP) acabou de concluir a privatização da Sabesp com base em um estudo de viabilidade feito pela International Finance Corporation (IFC). A IFC é um braço do Banco Mundial que tem como objetivo reduzir o risco de investidores privados em mercados emergentes. Esta instituição faz isso por meio de consultorias, estudos, empréstimos, investimentos etc. Ao fim e ao cabo, a IFC é bastante utilizada para atrair investidores privados nas parcerias público-privadas, sendo que o seu papel é ajudar na  modelagem e garantir o retorno dos investimentos.

Mas, nós, que bebemos a água que passa pela purificação da Sabesp e que dependemos de seus serviços, em geral, não deveríamos confiar em uma privatização feita com base em um estudo do IFC principalmente pelos motivos que seguem abaixo.

O estudo é um não estudo

O Relatório Fase 0, que abarca o estudo e a recomendação de privatização para o GESP, não tem nenhuma referência bibliográfica, é redigido de forma totalmente enviezada, trazendo, apenas, supostas evidências que jogam a favor da privatização. É, no final das contas, pouco nuançado e complexificado. 

É justamente nele que podemos encontrar as duas maiores fake news ou falácias da propaganda dessa privatização. Em primeiro lugar, anuciou-se que as tarifas, com a privatização, baixariam imediatamente e devem continuar baixando no longo prazo. Em segundo lugar, com tal processo, a iniciativa privada deve alcançar a universalização do saneamento antes do que o previsto pela Sabesp pré-privatização. Ao ler o relatório, contudo, percebemos que tais previsões se baseiam única e exclusivamente na expectativa de uma maior eficiência da companhia sob administração privada. Não há estudos, regras ou leis que garantam que a tarifa não vai subir ou que a cobertura será universal. É apenas uma mera especulação baseada em algo não comprovado por nenhuma métrica segura ou por qualquer dado empírico relativamente robusto. O trecho a seguir ilustra bem isso: “Por mais que a gestão privada seja eficiente com os investimentos e custos operacionais a serem realizados, isso somente não garantiria uma redução das atuais tarifas da Sabesp, em especial dado o robusto plano de investimentos para os próximos anos. Deste modo, com intuito de baixar a tarifa de imediato, o GESP poderia usar parte dos recursos recebidos na transação pela venda de parte de suas ações para reduzir tarifas de imediato.” (p. 24).

O trecho afirma que só a gestão privada não garante a redução das tarifas e ainda encaminha a solução do estado investir parte do dinheiro recebido na venda para a redução imediata da tarifa. Tal redução imediata não é justificada no relatório, mas não é difícil imaginar que tenha servido para aumentar o apoio à privatização.

A tarifa pode subir

O estudo do IFC traz alguns casos internacionais em que a privatização foi cancelada por alta das tarifas como aprendizados do que não fazer no caso da Sabesp. Na Argentina, a tarifa era ajustada em dólar, o que elevou muito os preços em momentos de variação do câmbio, gerando crise política. Na França, a tarifa subiu acima da inflação, o que também despertou uma reação da população que levou à reestatização. 

A IFC garante, entretanto, que aumentos não suportados pelos usuários não existiriam no caso da Sabesp porque o reajuste não seria em dólar e poderia seguir a inflação por meio dos índices brasileiros como o IPCA. O problema é que a inflação europeia é muito menor do que costuma ser a inflação no Brasil e alguns serviços públicos já tomam prejuízo por pagar à concessionária tarifas ajustadas pela inflação e não repassar o valor ao usuário, visto que isto seria muito caro, como é o caso do transporte metropolitano em São Paulo.

Portanto, não há nenhum mecanismo efetivo, para além de expectativas não muito bem fundadas,  que garanta que a tarifa não vá subir e não vá ficar cara. Aqui é importante lembrarmos que a tarifa subiu em abril deste ano, portanto ela subiu antes de cair.

A IFC já mostrou que não é boa para nós no caso da primeira PPP do Brasil

A primeira PPP do Brasil foi feita também no GESP com a Linha Amarela do Metrô. A IFC foi responsável por tornar a parceria atrativa aos investidores privados. Entre suas recomendações estava mudar a ordem de prioridade de construção das estações, de forma a construir primeiro as de maior arrecadação tarifária, pois elas trariam mais retorno com menos investimentos em trens e em funcionários. Isso, na prática,  deixou a linha cheia de “buracos” em seu trajeto, com estações não utilizáveis ao longo deste.

Ademais, a corporação ligada ao Banco Mundial recomendou que a integração tarifária entre as outras linhas (operadas pelo Metrô) e a linha amarela fosse feita de forma que o Metrô pagasse 50% da tarifa do usuário que integrou com a linha amarela para a concessionária, mas o contrário, todavia, não deveria ocorrer. Isto é, só o Metrô paga por usuário integrado, e essa conta de quantos usuários do Metrô integram foi contestada desde o início da operação pela Via Quatro, a concessionária da Linha Amarela. 

Com essas decisões, a entrega da linha completa atrasou porque as obras não poderiam ser feitas normalmente enquanto circulavam trens pela linha “esburacada”. O atraso gerou multas, as quais foram pagas exclusivamente pelo GESP. Outro ponto digno de nota, é o fato de a solução tarifária gerar prejuízos anuais para o Metrô – que tem que pagar pela integração do usuário, mas não recebe no caso de um usuário da Linha Amarela entrar em uma estação sob sua administração, ainda, tem que arcar com a diferença de preço entre a tarifa ajustada pela inflação, que deve pagar a concessionária e as gratuidades e preços pagos pelo usuário. Como se todo o relatado não bastasse, o Metrô deve, ainda, lidar sozinho com o risco de queda de demanda, o qual é todo arcado pelo GESP, como estabelecido em contrato, e que teve o seu momento mais drástico na queda de uso do transporte urbano durante a pandemia da covid-19. 

Este breve texto procurou evidenciar como, apenas de um ponto de vista de administração pública, a privatização da Sabesp é danosa e nem falamos  em outros elementos cruciais deste processo, como a qualidade da água e outros aspectos da privatização que estão sendo destacados na imprensa, como a falta de concorrência e a venda abaixo do preço de mercado.


Enfrentando o Antropoceno, de Ian Angus
Quando começou o Antropoceno? Apesar de o termo se popularizar apenas em meados dos anos 2000, a discussão sobre a presença do homem no mundo e sua intervenção na natureza não é nova. Lançado originalmente em 2016, Enfrentando o Antropoceno, do canadense Ian Angus, é um estudo sobre o impacto do homem na Terra.

Terra viva: minha vida em uma biodiversidade de movimentos, de Vandana Shiva
Autora de importantes obras que discutem os ataques ao meio ambiente por grandes empresas e o efeito desastroso de um mau uso do solo, a doutora em física quântica e ativista ambiental Vandana Shiva faz nesse livro uma volta a suas raízes, revendo uma trajetória que acabaria por definir os movimentos em que se engajou. Assim, ela aborda fases como a infância rural vivida na Índia, sua criação na fazenda dos pais em meio às florestas, a educação libertária que recebeu deles, passando pela mudança de vida e de perspectiva que teve ao entrar na faculdade e viver em grandes centros urbanos na Índia e no exterior. Tudo isso culminando na descoberta dos movimentos de luta em defesa da natureza e dos povos nativos e de sua influência na política ambiental mundial.

Abundância e liberdade, de Pierre Charbonnier
Primeiro livro do francês Pierre Charbonnier publicado no Brasil, a obra traz uma profunda investigação filosófica sobre as origens e o significado da história ambiental. Ao abordar um contexto de brutais mudanças ecológicas, climáticas, políticas e sociais, o livro marca um novo desafio: o de reconstituir os arranjos entre sociedade e natureza tendo em vista as categorias políticas modernas sobre as quais foram assentados.   

Confira o dossiê Enfrentando a crise climática.

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Daniela Costanzo é doutora em Ciência Política (USP) e pesquisadora plena do Cebrap.

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