“Ainda temos o amanhã”, de Paola Cortellesi

Desejo que tenhamos a consciência histórica e a paciência revolucionária das Delias que abriram caminhos para que nós pudéssemos estar aqui hoje. E que, sem qualquer conhecimento de jargão acadêmico ou de teoria revolucionária, resistiram à sua maneira e nos passaram seus ensinamentos para que pudéssemos seguir na luta com as armas que temos. Essas tantas Delias que anonimamente fizeram e fazem o amanhã que temos.

Por Larissa Vannucci

“Bom dia, Ivano”, diz Delia (Paola Cortellesi) ao marido que está deitado ao seu lado. Como resposta, recebe um tapa na cara, daqueles de causar espanto pela força e também pelo gesto. A vida de Delia é precária e de muito trabalho. Logo após o tapa, ela se levanta e prepara o café de todos: marido, filha mais velha, dois filhos mais novos e o sogro que demanda cuidados ainda maiores por estar acamado. Delia também prepara um lanche para o vizinho Alvaro (Raffaele Vannoli) que ajuda nos cuidados com o sogro, o senhor Ottorino (Giorgio Colangeli). Durante o café, o marido Ivano (Valerio Mastandrea) reclama que a descarga do banheiro está quebrada e Delia faz o reparo logo que todos saem de casa para seus deveres cotidianos: o marido vai trabalhar, a filha mais velha também e os dois meninos vão para a escola. 

Nessa primeira cena do filme Ainda temos o amanhã de Paola Cortellesi – atriz e diretora – há aspectos muito importantes para entender a dinâmica da família de Delia: o marido cumpre o papel de provedor violento, Delia de dona de casa submissa, a filha mais velha trabalha para ajudar em casa enquanto os meninos mais novos frequentam a escola. No breve diálogo durante o café da manhã é possível apreender que os papeis de gênero estão e são muito bem definidos: aos meninos é dada a oportunidade de frequentar a escola para que um dia tenham uma profissão. A filha mais velha, Marcella (Romana Maggiora Vergano), não conta com a mesma sorte. A família é pobre e mora em um porão cujas janelas estão na altura da rua. Não há quartos e camas suficientes para todos na casa, então os três filhos dormem em um mesmo quarto apertado e os meninos dividem a cama. 

Foto em preto e branco de grupo de pessoas posando para foto

Descrição gerada automaticamente

Delia sai de casa. Sua primeira parada é em uma casa bonita, completamente diferente da sua, de uma família abastada para aplicar uma injeção em um idoso acamado. Ao esperar no corredor por seu pagamento, ouve uma conversa daquela família em que a mulher demonstra se posicionar politicamente em prol de uma causa coletiva, mas logo é silenciada pelo marido que diz “Querida, fique quieta. Não entre em discussão que não pertence a você”. A próxima parada de Delia é uma loja de roupas em que ela entrega à dona um pacote de roupas íntimas consertadas por ela, Delia, e afirma que está à disposição para outros trabalhos. A parada seguinte é em uma oficina de guarda-chuva. O trabalho consiste em juntar todas as partes para que o guarda-chuva fique inteiro e pronto para ser usado. Delia chega atrasada e recebe uma bronca de seu patrão, pois há um rapaz esperando por ela para ser treinado. Dessa forma, entendemos que esse é um trabalho que Delia faz há algum tempo o que se evidencia quando ela questiona o patrão sobre o motivo de receber um salário inferior ao do rapaz já que trabalha lá há três anos e recebe como resposta: “Ele é um homem”. Antes de voltar para casa, a protagonista faz mais uma parada em um prédio onde, junto com outras mulheres, carrega bacias de roupas molhadas por muitos lances escada acima para estender nos varais da cobertura. A conversa entre elas é o questionamento do motivo de não poderem usar o elevador do lugar. Por fim, Delia passa na feira e notamos que ela tem amizade com um casal de feirantes, em especial com a mulher do casal, Marisa (Emanuela Fanelli) de quem ganha algo para cozinhar para o jantar. Depois de um dia extenuante de diferentes tipos de trabalho, Delia faz o jantar para a família, entrega o dinheiro que fez ao longo do dia ao marido e, depois de uma cena de violência – a segundo daquele dia – ele logo se arruma para sair. Marcella, sua filha, faz pergunta “Por que deixa ele te tratar assim? Por que não vai embora?”. Delia responde: “Ir para onde?”

Não é novidade para ninguém em pleno século XXI que a maior parte das violências cometidas contra mulheres estão circunscritas no ambiente familiar e doméstico. É dentro de casa onde as mulheres correm mais perigo. Não era diferente no passado. Até o momento, não situei o espaço e o tempo do filme por acreditar que ele dialoga bastante com o presente. A história de Delia se passa em Roma, em uma Itália destruída após a Segunda Guerra Mundial e ocupada pelo exército estadunidense. Mas essa história poderia ter ocorrido no século XVIII, XIX e poderia estar acontecendo agora. A superação da grande divisão da história, a saber, “[…] a que ocorreu entre homem e mulher visando à geração de filhos” (Engels, 2019, p. 68) continua a ser a bandeira central do movimento feminista. Um dos grandes debates da atualidade, o reconhecimento do trabalho doméstico como pilar de sustentação do capitalismo, está presente no filme do início ao fim. Delia segue à risca o manual da dona de casa perfeita dentro do sistema capitalista: é completamente dedicada aos cuidados de tudo de todos e se mostra comprometida em garantir que seu marido “estivesse bem cuidado para ser consumido por outro dia de trabalho e que as crianças fossem bem preparadas para seu futuro destino de trabalhadores e trabalhador[a]” (Federici, 2021, p. 166).

Por falar em trabalhadora, Marcella, filha mais velha, trabalha para ajudar na composição da renda familiar. Além disso, está namorando com um rapaz, Giulio Moretti (Francesco Centorame), que vem de uma família que ascendeu economicamente. Esse namoro e posterior noivado são motivos de muita expectativa e alegria para família, e principalmente para Delia, que num primeiro momento enxerga nesse relacionamento uma saída com mais oportunidades para Marcella. Como foi e ainda é em alguns cenários, “pelo fato de nada possuir, a mulher não é elevada à dignidade de pessoa; ela própria faz parte do patrimônio do homem, primeiramente do pai e em seguida do marido” (Beauvoir, 2016, p. 118). No filme, isso vale para Marcella e para a irmã de Giulio – duas jovens mulheres de classes sociais distintas. Ao final do almoço de noivado, todos vão para a cafeteria da família Moretti. A mãe do noivo, Giulio, diz que espera que a filha faça uma escolha melhor para seu casamento ao que o marido e pai da menina responde: “Escolher? Para Luisa escolho eu”. O que reforça a leitura de que às mulheres resta o silêncio e seguir aquilo que foi pensado para elas e não por elas. 

A cena do almoço de noivado é bastante reveladora. O almoço acontece na casa de Delia que, por saber do temperamento do marido, insiste com a filha que é melhor receber os novos ricos Moretti na casa humilde da família. Assistimos Delia ir e vir da cozinha como uma serviçal. Num primeiro momento, ela obedece ao comando do senhor Moretti de que ela sente à mesa junto aos demais para almoçar e, em seguida, obedece a outro comando de seu marido para que busque algo que está faltando na mesa. De tanto ir e vir, Delia acaba tropeçando com um prato de sobremesa nas mãos que se parte em pedaços. Ivano exclama “Os pratos da mãe”. Todos vão tomar sorvete no comércio dos Moretti e Delia fica em casa com o marido para “conversar”. Ela apanha e, logo após a surra, o sogro conversa com o filho em tom de aconselhamento, dizendo que ele deve maneirar nas surras que dá em Delia. Que ela é uma boa dona de casa e seu único defeito é responder. E que ele não deve bater com frequência na esposa porque ela se acostumaria. O correto seria uma surra bem forte uma vez para que ela aprenda, como ele fazia como a própria mulher, mãe de Ivano. Aqui há um ponto interessante de observar que é a construção desse ser mulher no imaginário masculino: ao passo que a mãe e seus pertences parecem ser sagrados para Ivano, ele ouve do próprio pai sobre as agressões sofridas pela mãe como método didático pelo qual toda mulher deve passar. Ao mesmo tempo que são sagradas, as mães sofreram e sofrem abusos para aprenderem a ser mulheres em um mundo de homens. Finalizando a conversa, Ottorino diz não gostar de ouvir Delia chorando, diz ter pena dela e também que o choro dela atrapalha seu cochilo. 

A protagonista do filme caminha pelas ruas da cidade com marcas das violências sofridas. Marcas visíveis de violência física, mas também de violência moral e sexual. Apesar disso, há momentos de leveza no filme que são trazidos principalmente pela vivência comunitária entre mulheres. Vivência essa tão comum nas periferias mundo afora. Mulheres que vivem em comunidade, que interagem coletivamente, que contam umas com as outras na criação e nos cuidados com os filhos, no cuidado com elas próprias, mulheres que servem de ombro para o desabafo das dores sofridas e que se movimentam apesar dos limites impostos pela vida e suas condições de gênero e classe. Há muitas dessas cenas no filme, mas a troca de maior cumplicidade de Delia é com Marisa, sua amiga e feirante.

Em uma entrevista, Lélia Gonzalez é questionada sobre o que é ser feminista e ela responde: “É tomar consciência da sua condição de mulher” (Gonzalez, 2020, p. 299). Tenho a impressão de que mulheres cotidianas como Delia sabem de sua condição de mulher mesmo sem nomeá-la, sem se autodeclararem feministas. A maneira como viveram e vivem de forma coletiva e compartilhada, ainda que o patriarcado fomente competição e hostilidade entre elas – e essas cenas também estão presentes no filme –, é a base daquilo que queremos construir para um futuro menos desigual. Sem querer dar spoilers do filme – e juro que até agora não toquei no ponto de virada fundamental desse enredo – a história de Delia é a história de todas as mulheres gigantes que fazem a vida apesar da vida. Em um trecho de Teoria feminista: da margem ao centro, bell hooks diz que:

Mulheres diariamente exploradas e oprimidas não podem deixar de acreditar em sua capacidade de exercer algum controle, mesmo que relativo, sobre suas vidas. Não podem olhar para si mesmas apenas como vítimas, porque sua sobrevivência depende do exercício contínuo de seus próprios poderes, quaisquer que sejam (hooks, 2019, p. 82).

Quantas vezes não questionamos, assim como Marcella, àquelas que nos antecederam sem de fato compreender e enxergar seus movimentos? Mais para o fim do filme, Marcella reclama para a mãe “Você nunca faz nada” e Delia responde em voz baixa “É o que você pensa”. O filme Ainda temos o amanhã é um sopro de esperança em relação ao futuro e uma homenagem às Delias que nos antecederam. As perguntas que ficam são: Em quais brechas podemos nos movimentar para que amanhã seja melhor? Qual o futuro que queremos construir? As questões que enfrentamos são profundas e históricas e, ainda que não pareça visível, qual é o exercício contínuo de nossos poderes em relação a elas?

Em entrevista para o jornal do MNU, Lélia Gonzalez afirma:

Uma consciência histórica que de repente a gente perde na medida em que nos jogamos com tal intensidade para dentro do movimento, pensando como nossa contribuição é divina e maravilhosa (e aí entra a questão do narcisismo, que é preciso exorcizar), a gente acha que vai resolver todas as questões numa vidinha que é a nossa vida. E acontece que o buraco é muito mais embaixo. […] A perspectiva é que a gente abra alguns caminhos, e a gente tem que ter aí consciência da nossa temporalidade, ou seja, a gente vem e passa, vem e passa no sentido de passar mesmo, e passa também a nossa experiência para quem está chegando. […] Precisamos ter a paciência revolucionária (Gonzalez, 2020, p. 333-334).

Desejo que tenhamos a consciência histórica e a paciência revolucionária das Delias que abriram caminhos para que nós pudéssemos estar aqui hoje. E que, sem qualquer conhecimento de jargão acadêmico ou de teoria revolucionária, resistiram à sua maneira e nos passaram seus ensinamentos para que pudéssemos seguir na luta com as armas que temos. Essas tantas Delias que anonimamente fizeram e fazem o amanhã que temos. 

Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Vol. 1. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. 3. ed. 
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2019. 
FEDERICI, Silvia. O patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero e feminismo. Vol. 1. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2021. 1. ed.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Org. Flávia Rios, Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. 1. ed. 
hooks, bell. Teoria Feminista: da margem ao centro. Trad. Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.


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Larissa Vannucci é mestranda do Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês (DLM/USP). Estuda literatura moderna estadunidense pela perspectiva da crítica materialista-feminista.

1 comentário em “Ainda temos o amanhã”, de Paola Cortellesi

  1. Maria Cristina Garcia Vilaça // 25/07/2024 às 3:56 pm // Responder

    Assisti ao filme e considero este artigo/análise um presente. Obrigada!

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