Diário de Paris (IV)

A V República, vertical e autoritária desde sempre, garantiu por muito tempo – apesar de sobressaltos pelo caminho, como em 1968 – certa estabilidade à empreitada modernizadora das classes dominantes. Há muitas dúvidas, hoje, de que ela poderá continuar a fazê-lo. 

Foto: Pourya Gohari (Unsplash)

Por Fabio Querido

11 a 16 de julho

Os últimos dias foram marcados pelas negociações em torno da constituição do novo governo. Enquanto pressionam Macron a nomear um primeiro-ministro da nova Frente Popular, os partidos da aliança de esquerda estão dando prova de um espetáculo deplorável. As tratativas de aparelhos foram incapazes, até agora, de encontrar um nome consensual para liderar um possível governo da nova Frente Popular. A clivagem mais importante é entre LFI e o PS, os dois polos da união.

A princípio, LFI sugeriu quatro postulantes do próprio partido, dentre os quais Jean-Luc Mélenchon. Em resposta, o PS indicou Olivier Faure, seu primeiro-secretário, para assumir a tarefa. Diante das reticências de ambos os lados, o PCF – com a anuência de LFI – trouxe à tona, no dia 13 de julho, a figura de Huguette Bello, ex-militante do partido, ex-deputada e atual presidente do conselho regional da ilha da Réunion, departamento francês de ultramar. Nas duas últimas eleições presidenciais, em 2017 e em 2022, ela apoiou Jean-Luc Mélenchon. Os Verdes – que, junto com o PCF, vem fazendo as vezes de mediadores – não vetaram a indicação.

Tudo apontava, portanto, para uma saída do impasse, condição imperativa para que a nova Frente Popular possa se colocar como pretendente ao governo. Mesmo porque, como continuar criticando a postura monárquica de Macron, que almeja se estabelecer como uma espécie de poder moderador, se a aliança se revela incapaz de indicar um candidato único à chefia do governo?

Mas eis que o PS acionou o seu poder de bloqueio, recusando como “não consensual” a indicação de Huguette Bello. Na verdade, para o PS, alguém como Bello levaria o pêndulo da aliança muito à esquerda, o que impediria as aproximações ao centro, vistas como necessárias para evitar o risco de uma moção de censura que derrubaria o governo em poucos dias ou semanas.

No dia 15, o PS propôs o nome de Laurence Tubiana, economista e diplomata, uma das principais responsáveis pela articulação dos acordos resultantes da COP21, ocorrida em Paris, em 2015. Entre 1997 e 2002, Tubiana havia sido conselheira para questões ambientais do Primeiro-ministro Lionel Jospin (PS). A indicação foi endossada tanto pelo PCF quanto pelos Verdes. Desta vez, porém, o veto veio do outro lado da aliança, e pelo mesmo motivo, embora em sentido inverso: para LFI, Laurence Tubiana não reflete a composição da nova Frente Popular, sendo demasiadamente próxima do centro político. Em uma palavra: ela seria “Macron-compatível”.

No próximo dia 18, data da posse dos novos deputados, a CGT e diversos movimentos sociais organizarão uma manifestação diante da Assembleia Nacional “para que o resultado das eleições seja respeitado”. Resta saber se a nova Frente Popular estará à altura do momento. Se não for o caso, será um verdadeiro “naufrágio”, como admitiu Fabian Roussel, o número 1 do PCF.

Enquanto isso, Gabriel Attal – cuja demissão do governo foi finalmente aceita por Macron no dia 16 – reafirmou o desejo de construir uma coalizão “indo da esquerda socialdemocrata à direita republicana”. A piscadela ao PS é explícita.

17 de julho

O impasse continua. As negociações entre os partidos da nova Frente Popular foram postergadas para depois da posse dos deputados e da eleição do presidente da Assembleia Nacional, marcada para amanhã. Para essa disputa, a nova Frente Popular conseguiu indicar um candidato único: o deputado do PCF, membro histórico do partido, André Chassaigne.

Em geral um jogo de cartas marcadas, uma vez que o posto acabava sendo sempre delegado ao candidato da maioria constituída, a eleição para a presidência da Assembleia terá, desta vez, um papel muito mais importante. Em face da fragmentação parlamentar, o resultado do escrutínio pode prefigurar o nível de apoio do/a futuro/a primeiro/a-ministro/a.

18 de julho

A atual presidente da Assembleia, Yaël Braun-Pivet, do bloco presidencial, foi reeleita para o cargo. Um péssimo presságio. No terceiro e último turno, ela obteve 220 votos, 13 a mais do que André Chassaigne, da nova Frente Popular. Sébastien Chenu, do RN, ficou com 141.

A reeleição de Yaël Braun-Pivet só foi possível em função da aliança velada entre o bloco presidencial e LR. Embora a eleição para a presidência da Assembleia não implique, necessariamente, a constituição de uma coalizão governamental, essa é a aposta de Macron a fim de evitar a nomeação de um primeiro-ministro da nova Frente Popular.

A própria possibilidade de que, após uma derrota flagrante nas eleições legislativas, o bloco presidencial continue no controle da Assembleia Nacional, e, eventualmente, na chefia do governo, dá uma medida da crise de regime que vive a França. A V República, vertical e autoritária desde sempre, garantiu por muito tempo – apesar de sobressaltos pelo caminho, como em 1968 – certa estabilidade à empreitada modernizadora das classes dominantes. Há muitas dúvidas, hoje, de que ela poderá continuar a fazê-lo. 


***
Fabio Querido é professor livre-docente de sociologia da Unicamp. Autor de, entre outros títulos, Michael Löwy: marxismo e crítica da modernidade (Boitempo, 2016; Herramienta, 2019), Daniel Bensaïd – intelectual em combate (Fino Traço, 2022) e Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (Boitempo, 2024, no prelo). Atualmente, atua como professor e pesquisador visitante na Universidade Paris-Cité.

1 comentário em Diário de Paris (IV)

  1. ruthcambesespareschi // 23/07/2024 às 5:38 pm // Responder

    Será que as vaidades francesas podem ser ofuscadas com a mudança do padrão vigente?

    Curtir

Deixe um comentário