Historicidade e especificidade histórica em “Sociologia do Brasil”
“Sociologia do Brasil”, de Alysson Mascaro, inscreve-se na lista das obras incontornáveis e insuperáveis enquanto perdurar a sociedade capitalista. Ao conjunto das classes subalternas brasileiras e de todo o mundo, como afirma Mascaro em sua última linha da obra, “somente a plena transformação da sociabilidade capitalista é sua esperança concreta e possível”.
Foto: Victor Barau
Por Gabriel Teles
O novo livro de Alysson Mascaro, Sociologia do Brasil, adentra, sem dúvidas, ao quadro das obras incontornáveis que compõem o melhor arsenal do marxismo na análise da realidade concreta nacional. Trata-se de mais uma contribuição de Mascaro, cujo desenvolvimento intelectual e político tem se mostrado fundamental para o avanço da reflexão crítica brasileira.
Nesta obra, o autor mobiliza conceitos e categorias desenvolvidos em seus livros anteriores, como em Filosofia do Direito (2013), Estado e forma política (2013) e Sociologia do Direito (2023). Além disso, avança em análises concretas, tal como esboçado previamente em títulos como Crise e golpe (2018). Estas produções evidenciam o esforço do autor em construir horizontes coesos, dando seguimento a um programa teórico-metodológico fundamentado na crítica da economia política e no desejo pela transformação radical da sociedade. Ao percorrer as páginas de tais obras, é impossível manejá-las senão enquanto armas da crítica, as quais não dão brecha para reformismos ou meias ambiguidades.
Em linhas mestras, o principal mote de Sociologia do Brasil é apresentar uma introdução ao conjunto das principais interpretações sociológicas sobre o Brasil e descortinar a materialidade e interesses de tais análises. Mascaro propõe três grandes caminhos do pensamento social brasileiro sobre o Brasil: a abordagem liberal (ou “juspositivista”), a abordagem não juspositivista (ou “organicista”) e a crítica (ou marxista). Segundo o autor, tais caminhos aglutinam, em eixos fundamentais, ideias diversas, mas que resguardam, em cada um desses caminhos, padrões teóricos próximos.
O caminho liberal se estrutura em um horizonte legalista. O império da lei e da propriedade privada, bem como a impessoalidade das instituições políticas, são o pano de fundo que ordena tal abordagem. Em termos de interpretações da realidade brasileira, Mascaro a resume já na introdução de seu livro a pretensão dessa leitura, a saber: “Fazer o Brasil alçar ao capitalismo, ou aperfeiçoá-lo, é seu horizonte basilar” (p. 11). Entre os pioneiros dessa interpretação, já no século XIX, são destacados intelectuais como Frei Caneca, Luiz Gama, Ruy Barbosa e Diogo Feijó. No entanto, a interpretação só ganha solidez teórica e sociológica em nomes como Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro – autores dissecados em suas múltiplas determinações por Mascaro. Desses autores, surgem conceitos como “cordialidade” e “patrimonialismo” enquanto eixo estruturante da sociabilidade e da política brasileira.
Já o caminho não liberal apresenta os problemas fundamentais das interpretações sobre o Brasil, não mais nas instituições (ou a ausências delas), mas sim a partir da ideia de coesão social ou em questões ideológicas nacionais. Noções como costumes, família, nação e, principalmente raça, são o horizonte analítico trilhado por este caminho. Figuram entre os pioneiros dessa perspectiva autores e políticos como Visconde de Uruguai, José Bonifácio, Oliveira Vianna, entre outros. A interpretação plenamente sociológica é alcançada por intelectuais como Gilberto Freyre, Guerreiro Ramos e Darcy Ribeiro. O primeiro, numa chave analítica mais conservadora e os últimos numa perspectiva mais progressista. O que une esse conjunto de intelectuais é a ênfase em uma determinada “excepcionalidade brasileira”, tal como a problemática da mestiçagem, que é uma de suas questões candentes.
Por fim, há a perspectiva crítica, assentada, segundo Mascaro, no marxismo. Para o autor, este é o caminho correto a ser trilhado por aqueles que buscam alçar os mais altos cumes do entendimento concreto da realidade brasileira. Esquivando-se das interpretações equivocadas e caricaturas do marxismo, Mascaro se fia à luz de um dos principais elementos constituintes da dialética marxista: a categoria da totalidade. Nesse aspecto, apoiando-se em diversos intelectuais marxistas brasileiros, tais como Florestan Fernandes, Ruy Mauro Marini, Caio Prado Jr., Clóvis Moura, Ciro Flamarion Cardoso, Jacob Gorender e Décio Saes, o autor evidencia que o marxismo não compreende um economicismo raso, como alguns de seus detratores falsamente colocam. Na verdade, esta teoria é formada pela articulação de elementos econômicos, políticos, sociais, culturais, assentados na materialidade da determinação fundamental do capitalismo: o modo de produção. Conceitos como luta de classes, exploração, Estado, modo de produção capitalista e escravista são mobilizados para não apenas explicar a realidade brasileira, mas também para apontar para um horizonte revolucionário.
O ponto de partida da segunda parte do livro Sociologia do Brasil de Alysson Mascaro é justamente o caminho percorrido pelo marxismo em sua senda no entendimento da história brasileira. Aqui, são abordadas a sua formação bem como a sua condição contemporânea. Esta parte é, sem dúvidas, o ponto alto da obra. Nesse aspecto, gostaria de destacar um dos elementos que a percorre como um fio-condutor. Ele diz respeito a uma das ferramentas mais importantes do marxismo em sua análise e intervenção da realidade. Trata-se da noção de historicidade e especificidade histórica, um dos princípios fundamentais do marxismo, cujos significados explicarei a seguir.
Karl Korsch foi um dos primeiros marxistas a captar a importância da especificidade histórica na obra do Marx e no marxismo em geral. Sua ideia central pauta-se no caráter específico de cada momento histórico e a compreensão de sua historicidade, bem como de todas as relações e condições sociais. Nesse sentido, podemos dar o exemplo da posse da terra na obra marxiana e verificar como esse princípio opera.
Marx analisa a posse da terra em diversas obras em que efetua a crítica da economia política (como nos livros Para a crítica da economia política, O capital e Grundrisse). Tal fenômeno pode apresentar uma particularidade distinta e específica dependendo da época histórica da formação econômica da sociedade. Logo, a função da posse da terra desempenha um papel completamente distinto a depender de que modo de produção estamos tratando.
Na obra Para a crítica da economia política, Marx demonstra como as diversas maneiras em que houve a dissolução da propriedade coletiva da terra (“comunismo primitivo”) foram fundamentais para o desenvolvimento distinto de sociedades erigidas sobre o princípio da propriedade privada. No modo de produção feudal, por exemplo, a posse da terra constituía a categoria de produção fundamental, prevalecendo em relação às demais, tal como hoje o capital o é no modo de produção capitalista. Mas essa mesma posse da terra, antes basilar em uma sociedade determinada, torna-se subsumida em outra sociedade. É o caso dessa posse no capitalismo.1
O valor que se reveste o estudo da posse da terra torna-se tão importante para Marx que, em seus últimos anos de vida, dedica-se a estudar profundamente o assunto, tanto no contexto dos Estados Unidos quanto da Rússia, como bem demonstra Musto (2018) em seu estudo O Velho Marx. Apesar desse grande interesse, ao se debruçar sobre as diferentes formas históricas de determinados fenômenos econômicos e sociais, ele estava interessado sobretudo em uma questão fundamental para o seu projeto teórico e político: servir de fundamentação à acentuação do caráter específico da renda capitalista da terra no interior da quadro da sociedade capitalista. Além disso, no livro I de O capital, na extensiva análise sobre o modo de produção capitalista, o conceito de renda da terra não é tratado. Ele aparece somente no livro III, no âmbito do plano global da obra, quando se analisam as formas particulares de distribuição capitalista, resultantes da forma histórica específica da produção capitalista. Mesmo aqui, no livro III, a única motivação de Marx ao analisar a renda da terra é compreendê-la em sua forma e especificidade histórica sob a influência do capital e do modo de produção capitalista. Ou seja, a análise da propriedade fundiária em suas diversas formas ao longo da história da humanidade está além do projeto de análise de O capital.
Nesse sentido, Marx concebe todos os conceitos e categorias sociais levando em conta a forma e o contexto específico determinado em que elas mesmas surgem no interior da sociedade capitalista. Por esse ângulo, não há brecha em tratar os conceitos e categorias como universais ou que possuam uma validade intemporal.
Em Sociologia do Brasil, Mascaro efetiva um amplo uso do princípio da especificidade histórica enquanto elemento teórico-metodológico norteador. Ele explicita não apenas a história da reflexão sobre o Brasil, mas, fundamentalmente, a sua historicidade. Ao tratar da formação brasileira, o autor aponta que “as linhas de força da explicação social são um entrecruzamento entre o específico de uma formação social – o Brasil, sua história, sua cultura – e o geral da coerção das formas sociais do capitalismo – a mercadoria e sua marcha, a acumulação, as instituições políticas e jurídicas garantidoras do capital etc” (Mascaro, 2024, p. 12).
O que vemos aqui é o encontro do princípio da especificidade histórica com outro elemento fundamental da dialética materialista: a categoria da totalidade.
Nesse sentido, só se pode compreender o Brasil numa chave que o coloque dentro de um contexto mais amplo, que é o modo de produção capitalista, com sua formação social peculiar, dentro de um determinado processo de acumulação e de divisão internacional do trabalho. Mas seria um erro parar num nível tão abstrato. O desafio é inserir o Brasil, com suas especificidades, nessa totalidade maior que é o capitalismo, o qual, por sua vez, também possui especificidades enquanto forma social dada no espaço e no tempo. O exemplo patente dessa problemática, que tanto o caminho liberal quanto o caminho não liberal (organicista) falharam em abordar, é a principal estrutura relacional da formação brasileira: a dimensão e o sentido da escravidão.
Para Mascaro, avançando além das perspectivas de Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender, apesar de também se basear nelas, a escravidão deve ser teoricamente compreendida a partir do modo de produção estabelecido no Brasil pela colonização portuguesa, em benefício da exploração e de dominações específicas, estabelecendo formas de sociabilidades próprias.
Mas qual era esse modo de produção do escravismo brasileiro? Tratava-se de um modo de produção feudal, tal como alegava o comitê central do PCB na primeira metade do século XX? Tratava-se de um escravismo já inscrito ao modo de produção capitalista, tal como postulado pela ideia de capitalismo comercial de intelectuais como Eric Willians e Fernando Henrique Cardoso? Ou, ainda, as múltiplas determinações dessa estrutura se dava à luz de especificidades que a eleva a um modo de produção específico?
Na construção de resposta a este enigma, Mascaro apresenta um cuidado ímpar com a especificidade histórica. Apoiando-se em Flamarion Cardoso e Gorender, o autor busca compreender o modo de produção instalado no Brasil em sua formação não apenas como um reflexo local de uma produção ocorrida simultaneamente nas metrópoles europeias. Abandona-se aqui as visões teleológicas sobre a sequência dos modos de produção na história, e esquiva-se de uma leitura “eurocêntrica” das particularidades e especificidades brasileiras e americanas no geral, como é possível constatar no trecho a seguir:
Até então, leituras bastantes restritas e lineares tomavam o caso europeu como métrica para as demais sociabilidades do mundo; perspectivas como as do stalinismo, que se tornaram oficiais em vários partidos comunistas, acabavam por considerar a sequência dos modos de produção como uma evolução histórica de etapas necessariamente lógicas ou inexoráveis. Cardoso e Gorender rompem com tal teleologia. Houve outros modos de produção que não só aqueles da experiência europeia. Pensar a sociabilidade do Brasil e das Américas ao tempo de sua formação não é apenas aplicar métricas de feudalismo ou capitalismo para essas sociedades, mas descobrir os modos específicos porque se forjaram (Mascaro, 2024, p. 116).
Mascaro, nesse sentido, toma de empréstimo o conceito de modo de produção escravista colonial de Gorender. O impacto dessa precisão conceitual e analítica é clara. Não se pode mais afirmar, por consequência, que o escravismo havido no Brasil e na totalidade das Américas é resultado de um “capitalismo incompleto” ou rebaixado. A lógica interna das relações de produção escravista colonial na formação do Brasil deve ser levada em conta na compreensão da transição entre modos de produção em nosso país. Daí que a especificidade de um modo de produção nos leva a formas sociais e as leis tendenciais determinantes e características desse modo de produção escravista colonial, tal como muito bem descrito na obra Escravismo colonial de Jacob Gorender. A sociabilidade escravista, como qualquer outra formação social fundada em classes sociais, nos leva à luta de classes. Nesse caso, a literatura sobre o assunto, aponta tanto para “relações de submissão de escravizados e escravizadores quanto pelos múltiplos termos de resistência, luta e negociação” (Mascaro, 2024, p. 124). Mascaro, para tratar de tais conflitos, mobiliza intelectuais fundamentais como Lélia Gonzalez e Clóvis de Moura.
Outro importante elemento estudado, que considera a especificidade histórica, é a passagem estrutural das formas sociais escravistas para as formas sociais capitalistas. Com isso, evidencia-se a historicidade das relações de produção classistas dentro de um desenvolvimento histórico do Brasil. Esta discussão desemboca nas transformações da dinâmica da escravidão no século XIX, ocorridas com o fim da condição colonial (Independência do Brasil) e com a inserção brasileira na economia capitalista mundial. A chamada “segunda escravidão” já é percebida como plenamente inserida no contexto da concorrência comercial mundial. Interessante notar como a escravidão, para Mascaro, não pode ser considerado um impedimento para o desenvolvimento capitalista:
A sociabilidade da escravidão não pode ser tomada, sociologicamente, como um obstáculo ou uma inadequação pré-capitalista a ser extinta logo que o capitalismo realizasse sua assunção. O modelo escravista é uma das manifestações centrais que organizam o próprio liberalismo e o pensamento burguês no capitalismo. […] Não se trata de uma excrescência em face do capitalismo, mas de um espaço estratégico de acumulação capitalista (Mascaro, 2024, p. 126).
Torna-se evidente que mesmo após a queda das relações de produção escravista como determinação fundamental na sociabilidade brasileira no final do século XIX e início do século XX, e a instauração de relações capitalistas, muito da dinâmica dos conflitos sociais e da forma como é operado o processo de acumulação capitalista ainda é profundamente influenciada pelas contradições herdadas do escravismo. Esse processo, evidentemente, ainda estabelece consequências na atualidade, o que leva o modelo de capitalismo, no Brasil, a ser regressista e, quase sempre, ditatorial com alguns vislumbres democráticos. Vivemos sob a égide da Constituição de 1988; no entanto, para Mascaro, o golpe de 1964 ainda é o “leito do rio da sociabilidade brasileira”.2
Certa vez, um pensador do estofo de Sartre afirmou que o marxismo é a teoria insuperável de nossa época. Insuperável pois seus elementos constitutivos só serão abolidos com a abolição da própria sociedade que o constituiu. Enquanto perdurarem as múltiplas determinações dessa sociedade, amalgamado numa sociabilidade pautada na exploração, dominação e opressão, haverá o marxismo buscando deslindar o seu caráter ideológico e contribuindo com a sua derrocada. Sociologia do Brasil, livro de Alysson Mascaro publicado pela editora Boitempo, inscreve-se na lista das obras incontornáveis e insuperáveis enquanto perdurar a sociedade capitalista. Ao conjunto das classes subalternas brasileiras e de todo o mundo, como afirma Mascaro em sua última linha da obra, “somente a plena transformação da sociabilidade capitalista é sua esperança concreta e possível”.
Notas
1 “Os modos distintos, através dos quais, nas mais diversas partes do mundo, a posse feudal da terra fica submetida ao capital, transformando-se a renda da terra em parte integrante da mais-valia capitalista e convertendo-se a agricultura em indústria, após o triunfo da produção capitalista, revestem-se da maior importância para toda a posterior evolução do capitalismo daí decorrente, bem como para o movimento operário, que surge em oposição ao sistema capitalista, e ainda para a passagem ao modo de produção socialista da sociedade proletária” (Korsch, 2018, p. 33).
2 “Foram o golpe contra João Goulart e a subsequente ditadura que estabeleceram as molduras das possibilidades e dos limites da reprodução social no Brasil. O movimento de redemocratização e a Constituição Federal de 1988 são, na verdade, um influxo de menor capacidade de incidência e de mais frágil estabelecimento em face do domínio empresarial-civil-estatal-militar já plenamente amalgamado pela ditadura e cujo poder, desde então, não deixou de estar em exercício” (Mascaro, 2024, p. 134).
Confira o lançamento de Sociologia do Brasil, com Alysson Mascaro e Luciana Genro, mediação de Marcos Morcego, na TV Boitempo:
Em Sociologia do Brasil, o filósofo do direito Alysson Leandro Mascaro apresenta uma sistematização do pensamento social brasileiro produzido ao longo da história. O autor esmiúça as principais linhas desse debate a partir de três diferentes vertentes, a liberal, a não liberal e a crítica.
Com referência a autores clássicos e mais recentes, Mascaro propõe uma leitura crítica marxista a respeito da sociedade brasileira e busca romper com suas típicas limitações liberais ou organicistas, inscrevendo nesse contexto o decisivo aporte crítico. O pensamento de autores como Darcy Ribeiro, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Guerreiro Ramos são objeto de análise na obra.
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Gabriel Teles é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Instituto Federal de Goiás (IFG).
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