Avenida Pensilvânia

Apesar da vantagem de Trump e dos inúmeros acertos de sua estratégia de campanha, a eleição presidencial estadunidense não está decidida, como pensam alguns analistas. A desistência de Joe Biden em concorrer à reeleição somada à inevitável escolha de Kamala Harris como candidata “natural” do Partido Democrata, podem, de fato, modificar os rumos da atual disputa política.

Foto: Matt H. Wade (Wikimedia Commons)

Por Ruy Braga

A eleição presidencial estadunidense entrou num ritmo nunca antes visto na história recente do país. No dia 13 de julho, o candidato republicano e ex-presidente, Donald Trump, sofreu um atentado na cidade de Butler, Pensilvânia. O tiro de raspão na orelha repercutiu imediatamente na economia: o dólar subiu no mundo todo, antecipando uma provável vitória republicana que iria fortalecer o protecionismo e aprofundar a guerra comercial com a China.

Na sequência, Trump anunciou seu companheiro de chapa, o senador por Ohio, J. D. Vance, durante a convenção de seu partido em Milwaukee. Vance é um advogado com raízes na classe trabalhadora branca de Ohio e, segundo Trump: “defenderá os trabalhadores e será um vice-presidente maravilhoso”. A preocupação em acenar para os trabalhadores brancos de estados como Pensilvânia, Michigan, Ohio e Wisconsin, por exemplo, justifica-se por se tratar de eleitorados duramente castigados por mudanças no regime de acumulação que, nas últimas três décadas, solaparam ocupações industriais de homens brancos entre 30 e 50 anos sem diploma universitário.

A eleição americana é sempre decidida nos chamados “swing states” ou “estados pêndulo” como Flórida, Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Carolina do Norte, Arizona, Geórgia, Nevada, Ohio e Iowa. Uma das principais preocupações de Trump consiste em transformar o Partido Republicano no “partido dos trabalhadores da América”, seja lá o que isso possa significar. J. D. Vance é parte fundamental dessa estratégia perseguida pelo líder republicano.

Vance ficou nacionalmente conhecido devido ao sucesso de seu livro Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis [Era uma vez um sonho: a história de uma família da classe operária e da crise da sociedade americana], publicado em 2016. Analisei esse livro em meu trabalho intitulado A angústia do precariado: trabalho e solidariedade no capitalismo racial. Contrastei sua narrativa baseada em Middletown, Ohio, com minhas próprias observações em Tyrone, cidade localizada no centro rural da Pensilvânia. Seguem algumas observações a respeito do livro do senador republicano:

“Candidato endossado por Trump para concorrer ao Senado em 2022, Vance apontou em seu livro para o ‘desamparo aprendido’ de seus familiares e amigos, isto é, a disposição de sempre culpar o governo por seus problemas, como a principal causa da pobreza da classe trabalhadora. Ou seja, a explicação principal para o sofrimento das comunidades operárias seria a incapacidade dos indivíduos de resistir por conta própria, abraçando a compreensão de que apenas o trabalho árduo é capaz de restabelecer seu senso de autoestima.

De fato, se existe algo que pude perceber em minha pesquisa de campo foi exatamente a disposição dos trabalhadores de cidades rurais em não culpar o governo, assumir responsabilidades individuais e celebrar o trabalho árduo como esteio de suas famílias e comunidades. Se o ‘desamparo aprendido’ está presente no centro da Pensilvânia é como exceção, não como regra. De fato, a esmagadora maioria das pessoas que conheci na região se mostrou implacável com seus próprios defeitos, extraindo seu sentido de dignidade pessoal do trabalho árduo que realizam todos os dias.

Os moradores do centro da Pensilvânia não apenas se revelaram defensores intransigentes de um modo de vida em flagrante desconstrução, como desejosos de permanecer pessoas com as quais seus vizinhos e familiares podiam contar. De certa maneira, seus sofrimentos individuais ajudaram a forjar uma comunidade agônica no interior da qual se mesclam sentimentos como o desalento a respeito do presente e a ansiedade em relação ao futuro.

Na realidade, observando o modo de vida tradicional das pequenas cidades rurais na Pensilvânia central, é possível perceber que a ansiedade em relação ao futuro que marca o cotidiano de seus moradores deriva em grande medida da desestabilização de sua economia moral cada vez mais dependente de respostas individualistas ao grande desafio imposto pela atual crise sociorreprodutiva.

Se, no passado, valores como autodisciplina e trabalho árduo integravam os trabalhadores num sistema de solidariedades práticas que assegurava a reprodução da comunidade, hoje em dia esses mesmos valores se transformaram em meios impulsionadores de comportamentos individualistas que ameaçam as forças agregadoras. Uma comunidade agônica é aquela na qual os meios de integração social, como os valores tradicionais, por exemplo, se transformaram em veículos desestruturadores da vida social. Em vez de solidariedade, os moradores colhem alienação. Abre-se uma fratura profunda entre a cultura das camadas gerenciais e a dos trabalhadores.

Ignorantes dessa dialética, alguns analistas não são capazes de identificar adequadamente a contradição existente entre as aspirações individuais e a realidade da crise social. J. D. Vance narrou sua transformação num bem-sucedido advogado de São Francisco se apoiando na estabilidade emocional proporcionada por sua avó materna, na autodisciplina aprendida no Exército e na fé religiosa legada por seu pai. Salvo o fato de ser um profissional disputado, os valores presentes em sua exitosa trajetória em nada diferem dos depoimentos colhidos entre os moradores de Tyrone.

Contudo, Era uma vez um sonho julgou impiedosamente todos aqueles que não tiveram a mesma sorte que seu autor. À revelia dos estudos que demonstram uma forte ligação entre a epidemia de opioides e a desindustrialização enfrentada por antigas comunidades operárias, Vance interpretou a epidemia exclusivamente à luz da fraqueza de caráter de certas pessoas. Ou seja, nunca como uma crise de saúde pública. Os fracos padecem, os fortes sobrevivem. Trata-se de uma visão exterior, insensível e arrogante, que os trabalhadores de Tyrone associariam imediatamente ao desprezo que as elites econômicas dos centros urbanos sentem pelas cidades rurais” (A angústia do precariado, p. 204-205).

Decidi citar essa longa passagem a fim de destacar que, apesar da vantagem de Trump e dos inúmeros acertos de sua estratégia de campanha, a eleição presidencial estadunidense não está decidida, como pensam alguns analistas. A desistência de Joe Biden em concorrer à reeleição somada à inevitável escolha de Kamala Harris como candidata “natural” do Partido Democrata, podem, de fato, modificar os rumos da atual disputa política.

Caso venha a ser sancionada por seu partido, Harris, único nome democrata ainda na disputa conhecido nacionalmente, teria a oportunidade de defender um governo considerado muito bem-sucedido pela maioria dos analistas. A economia vai bem, assim como o emprego. A inflação está sob controle e os efeitos dos investimentos acumulados nos últimos anos ainda devem render ótimos frutos em termos de rendimentos do trabalho até a eleição no dia 5 de novembro. Além disso, a imagem de uma mulher negra terá um impacto prontamente vivificador nos eleitores jovens e, principalmente, deverá mobilizar o eleitorado negro em estados decisivos como, por exemplo, a Geórgia.

Se Harris for indicada, posso apostar que os democratas escolherão um homem branco candidato a vice-presidente vindo de um “estado pêndulo” importante. O governador da Califórnia, Gavin Newsom, não poderia concorrer pelo fato de ser do mesmo estado de Harris. J. B. Pritzker, o bilionário governador de Illinois está no páreo, porém, o estado tem votado consistentemente nos candidatos democratas há várias décadas.

A escolha óbvia seria o governador da Pensilvânia, Josh Shapiro. Trata-se de um político pragmático com posições liberais (em geral, progressistas) e apoiado pelos principais sindicatos do “velho estado”. Ex-procurador geral da Pensilvânia, Shapiro sustenta uma popularidade incrivelmente alta nesses tempos tensionados pela polarização política: segundo uma pesquisa do Muhlenberg College realizada em abril, 64% dos cidadãos aprovam seu mandato.

Quando realizei minha observação participante na região rural no centro da Pensilvânia em 2022, tive a oportunidade de me engajar na campanha de Josh Shapiro para governador. Na Centre County Grange Fair, uma feira rural realizada há mais de 150 anos na cidade de Centre Hall, acompanhei o então procurador geral do estado em seu esforço de pedir votos para pequenos produtores rurais historicamente ligados ao Partido Republicano e, em sua maioria, eleitores de Donald Trump.

Minha impressão, confirmada ao longo de outras visitas à feira em agosto de 2022, é que Shapiro deixou uma imagem muito positiva nos eleitores do centro rural do estado onde Trump sofreu o atentado. Os militantes do Partido Democrata estavam muito animados com as reações espontâneas dos cidadãos da região. Ao final, Shapiro bateu Doug Mastriano, um trumpista radical, por uma ótima margem: 56,5% contra 41,7%. Imediatamente, ele se transformou na mais jovem estrela do Partido Democrata.

É claro que uma eventual chapa Harris-Shapiro pode naufragar ou nem mesmo ser formada. Definitivamente, a política estadunidense encontra-se num ritmo que bloqueia previsões. O Partido Democrata sempre poderá optar por outro caminho. No entanto, trata-se da escolha mais lógica, considerando os parâmetros atuais da disputa eleitoral no país. Vale lembrar ainda que Shapiro é judeu e sua presença na chapa serviria como uma espécie de válvula de escape para as posições consideradas mais “radicais” de Harris contra o massacre do povo palestino pelas forças de segurança de Israel. 

Tudo isso não passa de um exercício especulativo que serve para dizer que a disputa eleitoral nos Estados Unidos continua aberta e aqueles que apostarem suas fichas numa vitória fácil de Donald Trump poderão ficar muito decepcionados… Vale lembrar que o endereço da Casa Branca em Washington é a Avenida Pensilvânia, 1600. Do atentado em Butler até a indicação de Shapiro como vice de Harris, o mais provável é que o “velho estado” continue se mostrando um protagonista na disputa eleitoral desse ano.  


Como compreender o comportamento político dos trabalhadores racializados nos Estados Unidos? E dos trabalhadores brancos que vivem em pequenas cidades rurais? A eleição de Donald Trump, em 2016, pode ser interpretada apenas como resultado de uma classe trabalhadora branca ressentida e empobrecida? A angústia do precariado, nova obra do sociólogo Ruy Braga, é fruto de uma pesquisa de campo em pequenas cidades rurais nos Montes Apalaches, região que concentra historicamente a pobreza branca nos Estados Unidos. O estudo coloca à prova a hipótese da eleição de Trump partindo de uma problematização teórica inspirada nos marxismos negro e latino-americano.

Durante sua pesquisa, em vez de comunidades mobilizadas pelo ódio aos imigrantes e aos negros, o autor encontrou grupos de trabalhadores vivendo em constante agonia, em profunda crise sociorreprodutiva, o que os aproximou das condições de subsistência das comunidades negras. Essa confluência indesejada ajudou a criar as condições sociais necessárias para a eclosão de protestos de trabalhadores brancos… Em favor das vidas negras! O livro se dedica a interpretar essa anomalia sociológica por meio da análise do longo processo de reconstrução das identidades coletivas dos trabalhadores precários americanos, desde a crise do fordismo até o advento da pandemia do novo coronavírus.

A angústia do precariado é o último volume de uma trilogia consagrada à formação do precariado global, ou seja, aquele vasto contingente de trabalhadores em situação de insegurança e sub-remunerados. O primeiro trabalho da série foi publicado em 2012, com o título A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, seguido por A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global , em 2017. 

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Ruy Braga é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Pela Boitempo, publicou A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (2012), A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global (2017) e A angústia do precariado: trabalho e solidariedade no capitalismo racial (2023).

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