A face moderninha do Império

Há limites que não podem ser cruzados. Há valores que se impõem diante do pragmatismo. A vitória de Trump acelera, sim, a decadência da democracia estadunidense. Mas sinalizar que o genocídio do povo palestino não é admissível, que nossa humanidade comum nos obriga a erguer nossa voz em solidariedade, é o imperativo maior na atual quadra histórica.

Foto: Lawrence Jackson (Wikimedia Commons)

Por Luis Felipe Miguel

Demorou, mas Biden curvou-se aos fatos e retirou sua candidatura. Está em campanha para que sua vice, Kamala Harris, assuma seu lugar na chapa presidencial.

O apoio de Biden – mas ainda não de pesos-pesados do Partido Democrata, como Barack Obama e Nancy Pelosi – e de muitos doadores milionários torna Harris franca favorita para a indicação, mas não são favas contadas.

O que causa espanto é ver uma parte da esquerda brasileira embarcando precocemente num triunfalismo pró-Harris.

Talíria Petrone, por exemplo, publicou no Twitter: “Um passo a frente! Derrotar Trump é uma missão mundial e a escolha de Kamala Harris é acertada. Não devemos titubear em eleger a primeira mulher presidente dos EUA.”

A imagem de Harris, uma mulher com ascendência indiana e africana, agrada aos progressistas. Sua atuação como vice-presidente, no entanto, foi apagada. E, quando apareceu, frustrou quem imaginava que ela teria posições mais avançadas em temas como imigração, encarceramento, racismo das polícias ou política de drogas. Sem falar, é claro, na política externa.

Trump é um fanfarrão golpista sem qualquer das qualidades intelectuais ou morais que permitiriam exercer uma função de poder. Desde que demonstrou ambições políticas, não fez nada além de degradar o debate público e debilitar as instituições da democracia liberal. Um tipo, em suma, bem conhecido de nós, brasileiros.

A despeito das diferenças, porém, Trump tem muito em comum com Harris, assim como tinha com Biden. Como o apoio incondicional a Israel e ao genocídio que ocorre hoje na Faixa de Gaza.

Biden patrocinou as ações de Netanyahu desde o começo, armou e financiou Israel, vetou ações de organizações internacionais, colaborou na campanha de difamação e corte de financiamento da agência da ONU que dá assistência aos refugiados palestinos. Harris secundou todas essas ações. Não chega ao ponto de classificar a si mesma como “sionista”, como faz Biden, mas não fica longe.

Diante disso, Trump não tinha resposta melhor do que “xingar” seu então adversário de “palestino” e prometer ainda mais apoio ao genocídio.

Biden e Trump, candidatos, mostraram ser racistas, despreocupados com os direitos humanos mais elementares, desprovidos de sentimento de humanidade.

O problema não está só, nem sobretudo neles. É o sistema político estadunidense, movido, como se sabe, pela força do dinheiro.

Só o AIPAC, o lobby sionista oficial, está despejando 100 milhões de dólares em campanhas de democratas e republicanos, com o objetivo de sufocar o debate sobre a Palestina. Muitos grandes doadores privados, vinculados ao sionismo, agem na mesma linha.

O AIPAC, aliás, que financiou a carreira política de Kamala Harris com mais de 5 milhões de dólares. E recebeu, em troca, apoio veemente à máquina de guerra israelense.

Por isso, no establishment político estadunidense, bem como na mídia, a tragédia do povo palestino ecoa tão pouco. Mesmo que apenas uma minoria da opinião pública seja favorável ao apoio militar a Israel, a prioridade é não desagradar os grandes financiadores de campanha.

O Partido Democrata tem a chance de escolher um candidato que se oponha ao genocídio. Mas é improvável que o faça. A se confirmar este cenário, para o eleitor, a escolha em 5 de novembro promete ser dramática. Optando por Harris ou optando por Trump, estará validando o massacre de um povo.

Nos anos 1930, seria razoável, em nome do “mal menor”, escolher um entre dois candidatos que apoiassem ativamente a Alemanha nazista e o holocausto judeu? Como nós encararíamos, hoje, uma escolha assim, feita naquela época?

Ao contrário da deputada do PSOL, sei que não voto nos EUA e que meu pitaco sobre a “missão mundial” de derrotar Trump não tem nenhuma importância. Mas lembro que nas eleições estadunidenses existem opções, embora sem chances de vitória. Jill Stein, do Partido Verde, e Cornel West, independente, são os dois candidatos “nanicos” que se opõem ao massacre em curso em Gaza e expressam corajosamente essa posição.

A prioridade dada à luta contra a extrema-direita tem, como primeira consequência, a redução do campo que se opõe a ela ao seu mínimo denominador comum – isto é, aos seus integrantes mais atrasados. Há uma redução da qualidade do debate sobre a sociedade e o mundo em que queremos viver. Esse é o primeiro grande serviço que a extrema-direita presta ao conservadorismo.

Mas onde fica a linha divisória? Podemos fechar os olhos para um genocídio, em nome das conveniências? Vamos proclamar que as vidas dos palestinos valem tão pouco que nem vamos lutar por elas? Que não valem nem o repúdio a quem patrocina o massacre, com dinheiro, com armas, com desinformação?

Há limites que não podem ser cruzados. Há valores que se impõem diante do pragmatismo. A vitória de Trump acelera, sim, a decadência da democracia estadunidense. Mas sinalizar que o genocídio do povo palestino não é admissível, que nossa humanidade comum nos obriga a erguer nossa voz em solidariedade, é o imperativo maior na atual quadra histórica.


Quais e quantas combinações são possíveis entre o marxismo e a ciência política? Em Marxismo e política: modos de usar, o cientista político Luis Felipe Miguel debate a relevância do marxismo para a análise da política. A obra busca introduzir e enfatizar a utilidade desse marco teórico para a produção de uma ciência política capaz de entender o mundo social e orientar a ação nele.

Ao longo dos nove capítulos, o autor cruza diferentes temas da tradição marxista com o campo da ciência política, como as classes sociais, o Estado, o gênero, alienação e fetichismo e muitos outros. Em contrapartida, demonstra a importância de uma abertura do próprio marxismo ao diálogo com a produção contemporânea da ciência política. Com isso, ao mesmo tempo evita o dogmatismo e abre caminhos para a pesquisa em ambos os territórios dos quais se propõe a tratar.

Marxismo e política: modos de usar, de Luis Felipe Miguel, tem apresentação de Andréia Galvão, orelha de Leda Paulani e capa de Daniel Justi.

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Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros livros, de Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018), O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular, 2019) e Marxismo e política: modos de usar (Boitempo, 2024). Também é coautor, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colaborou com o livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018).

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