Maiakovski e seu passaporte vermelho
Em razão dos 131 anos de Vladímir Maiakovski nesse dia 19 de julho, a seção de poesia do Blog da Boitempo homenageia o poeta russo com a publicação de "Poema do passaporte soviético", traduzido por Flávio Wolf de Aguiar e publicado no n.28 da Margem Esquerda, a revista da Boitempo.
Foto: Wikimedia Commons
Em razão dos 131 anos de Vladímir Maiakovski nesse dia 19 de julho, a seção de poesia do Blog da Boitempo homenageia o poeta russo com a publicação de “Poema do passaporte soviético”, traduzido por Flávio Wolf de Aguiar e publicado no n.28 da Margem Esquerda, a revista da Boitempo.
Por Flávio Wolf de Aguiar
Este é um de meus poemas favoritos. Foi escrito por Maiakovski em 1929, ano anterior ao de sua conturbada morte, quando atirou contra o próprio coração. Maiakovski permanece sendo o poeta russo mais identificado com a Revolução de 1917 e seus desdobramentos. Entregou-se de corpo e alma à sua propaganda, em todos os sentidos. Mas não se trata apenas disso. Seu ímpeto, sua vida e sua morte envoltas em um halo romântico, seu desdém pelas artes burocratizadas e seu afã de fazer de si um ícone revolucionário de seu tempo fazem dele o símbolo desse movimento ao mesmo tempo épico e trágico, dramático e majestoso, que é a Revolução de 1917 e sua esteira histórica. No poema que a seguir se apresenta, traduzido com base em versões existentes em inglês, francês, espanhol e português, mas também com um ouvido para o original em russo, ele fala de seu orgulho a um tempo desabrido e cauteloso de levar consigo um passaporte com a cor herética naquela altura, o vermelho, e os símbolos da foice e do martelo, tudo exposto diante do olhar surpreso, temeroso e patético, do funcionário que o recebe em mãos. Espelha a convulsa ordem/desordem seminal instalada pela inédita
revolução, também contida na tensão entre a inovação futurista do poeta e sua dicção acessível e popular.
Poema do passaporte soviético, de Vladímir Maiakovski
A burocracia –
eis algo que para sempre
eu mataria.
As formalidades –
não contem comigo.
Tenham-me pela eternidade
como seu inimigo.
Mas eis que…
Um funcionário cortês
passa pelo corredor do trem
repleto de olhares ansiosos…
Eles seguem as mãos
que entregam os passaportes
temerosos.
E lá se vai o meu, com sua pele
vermelha.
Alguns dos papéis
provocam um sorriso obsequioso.
Outros, um desdém silencioso.
Por exemplo, é muito respeitoso
o cuidado com que os olhos
tomam
o passaporte inglês
com seus dúplices leões
acamados no papel cortês.
Eles se arregalam
como se recebessem uma gorjeta
ao depararem com aquele
que dos Estados Unidos provém.
O espanto cresce
diante do passaporte polaco,
que miram com surpresa inaudita
e uma pergunta aflita:
de onde vem
esta novidade geográfica?
Cingem a gola
de sua jaqueta burocrática
e sem pestanejar se voltam
para o passaporte dinamarquês
e mais algum sueco
como se fossem um normal repeteco.
Mas eis que –
aquela mão funcionária
se vê mordida pela cor escarlate
do meu passaporte afiado
que lhe parece uma navalha,
um espinho eriçado,
uma serpente de bote levantado.
E assim o funcionário
chama o policial apressado
para acudi-lo a seu lado.
Ambos se olham, como se
deparassem
com uma bomba.
Que prazer teria esta casta
de algozes, funcionários, gendarmes,
se pudessem me açoitar, crucificar,
por ter em mãos, como um flagelo,
este passaporte estampado
com a foice e o martelo.
Eu, num gesto lupino,
rasgaria todo este papelório,
pois não lhes tenho qualquer
respeito.
Que vá para o inferno
todo esse lixo simplório.
Mas… eis que
tiro do bolso enorme
de minhas calças largonas
o passaporte da cor herética:
vede, lede, invejai-me,
eu sou um cidadão
da União Soviética!
O que vou ser quando crescer? é um livro-poema escrito por Vladímir Maiakóvski em 1928 e publicado pela primeira vez em 1932, dois anos após sua morte. Em versos rimados e dispostos da forma característica do movimento concretista, o poema atiça a curiosidade do pequeno leitor ao brincar com as principais facetas de diferentes profissões.
Traduzido diretamente do russo e publicado em formato fac-símile quase 90 anos depois, o leitor de hoje tem a oportunidade de conhecer um pouco como era o mundo do trabalho no começo do século passado e traçar paralelos com os nossos dias. Com ilustrações do celebrado artista russo Nísson Chifrin, a obra é graficamente inventiva e estimula o senso de observação e a pesquisa investigativa independente das crianças. Um dos maiores desafios na adaptação da edição original foi a tradução diretamente do original. Através da comparação com áudios do poema em russo, a tradutora procurou adaptar o texto final de forma a preservar a cadência e a sonoridade originais, pois uma das marcas da poesia concreta é justamente o casamento das formas visuais e sonoras com o conteúdo.
O livro-poema traz dois textos de apoio: uma breve biografia do autor, um dos maiores poetas do século XX, e um texto sobre “As profissões ontem e hoje”. Além disso, o volume inclui um roteiro com sugestões de atividades sobre temas que podem ser realizadas tanto no ambiente escolar quanto em casa.
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Flávio Wolf de Aguiar é poeta, escritor, jornalista, professor aposentado de literatura brasileira da USP e correspondente em Berlim de várias mídias brasileiras, inclusive do Blog da Boitempo. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés e Anita, ganhador do Prêmio Jabuti de melhor romance em 2000.
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