Diário de Paris (III)

Apesar da vitória, o cenário não será dos mais fáceis para a nova Frente Popular, caso de fato assuma a chefia do governo. Mais do que se engajar nas negociações parlamentares, será preciso estabelecer, nas ruas e na sociedade, uma nova relação de forças capaz de pressionar o Parlamento a votar as medidas anunciadas.

Foto: Anthony Choren (Unsplash)

Por Fabio Querido

1 de julho

No dia seguinte ao primeiro turno, com a apuração completa dos resultados, a hora é a de afinar – a quente – os balanços a fim de (re)definir as estratégias até o próximo domingo. Dos mais de 400 distritos em que, junto com Ciotti e seus aliados, o RN se classificou para o segundo turno, em 260 os seus candidatos chegaram na dianteira. Em 180 deles, a coalizão liderada pelo partido de Marine Le Pen arrematou mais de 40% de votos, o que o deixa em muito boa posição para a segunda volta. Dentre as camadas sociais que optaram pelo RN, destacam-se os atordoantes 57% acordados ao partido pela classe operária. Mesmo em setores outrora refratários ao partido, a ascensão é notável: foram 30% de votos entre os aposentados, 20% entre quadros superiores e assalariados de profissões intelectuais. Além disso, o RN obteve 40% dos votos nas cidades de menos de 2 mil habitantes. 

A nova Frente Popular se qualificou para o segundo turno em 413 distritos – com especial força nas grandes cidades e suas periferias –, dos quais 164 são de LFI, 121 do PS, 68 dos Verdes e 33 do PCF. Mas os seus candidatos se classificaram em primeiro lugar em “apenas” 159 distritos, bem abaixo, portanto, do que logrou o seu maior adversário. Um exemplo ilustrativo da nova relação de forças foi a derrota de Fabian Roussel, secretário-geral do PCF, para um candidato RN já no primeiro turno, e num distrito detido pelo partido desde 1967. 

A coalizão Juntos pela República, do bloco governista, estará representada no segundo turno em 321 distritos – e na liderança em apenas 68 deles. Absolutamente nenhum dos 24 ministros do governo que postularam para o cargo de deputado em suas bases eleitorais foi eleito no primeiro turno, nem mesmo o próprio primeiro-ministro, Gabriel Attal, que se qualificou em primeiro lugar em Vanves (cidade próxima a Paris), com 43,9% dos votos. A ex-primeira-ministra Elisabeth Borne, que ficou marcada pela promulgação da Reforma da Previdência sem a chancela do Parlamento, ano passado, se classificou apenas em segundo lugar, com 28,9% dos sufrágios, diante dos 36% recolhidos pelo candidato do RN. Ironia da história: Borne deverá se beneficiar da retirada da candidatura de LFI, que chegou em terceiro lugar.

Ao dissolver a Assembleia, Macron parece ter dissolvido, assim, o seu próprio campo político, ainda que a derrota tenha sido, no geral, ligeiramente menor do que a prevista.

2 de julho

Às 18 horas foram finalizadas as inscrições para o segundo turno. 218 candidatos desistiram, reduzindo o número de “triangulares” para cerca de 90. A imensa maioria o fez bem nome da oposição ao RN. 130 candidatos da nova Frente Popular abdicaram da disputa para apoiar o adversário mais bem posicionado de Juntos pela República e até mesmo, em alguns casos, de LR. A recíproca não veio exatamente na mesma moeda: 80 foram os desistentes do lado do bloco presidencial, e apenas 1 de LR.

A esperança é que as desistências tenham efeito eleitoral efetivo. Algum impacto, sem dúvida elas terão. Se será o suficiente para evitar a vitória do RN é outra história. Além do mais, elas tendem a beneficiar muito mais Juntos pela República do que a nova Frente Popular. Isso porque, dada a “normalização” da extrema-direita, não se pode descartar que a desistência dos postulantes do bloco presidencial em favor de um candidato da união de esquerda leve uma parte do seu eleitorado a abraçar o candidato do RN.

Afinal de contas, não foi o próprio Macron que, durante a campanha, fustigou sem piedade os perigos da “extrema-esquerda” “imigracionista”? Em pesquisa divulgada hoje, 25% dos eleitores de Juntos pela República declararam desejar que o RN conquiste a maioria absoluta – no conjunto do eleitorado, um contingente expressivo de 50% dos consultados veem com bons olhos a hipótese de um governo liderado pelo RN.

O inverso não é verdadeiro, uma vez que é muito maior a probabilidade de que os eleitores da nova Frente Popular optem, apesar de tudo, pelo representante de Juntos pela República, a fim de evitar a vitória do RN. Tudo pela “frente republicana”, e contra a possibilidade da extrema-direita ao governo. Ainda incerto, o cenário é, portanto, bastante desafiador, para dizer o mínimo. Serão 5 dias que definirão o papel da França na Europa e no mundo nos próximos anos.

3 de julho

Da Itália, Georgia Meloni se regozijou do resultado das eleições francesas. Segundo a chefe do governo italiano, “a constante tentativa de diabolizar os que não votam na esquerda […] é uma armadilha em que cada vez menos pessoas caem. Nós vimos na Itália, e vemos cada vez mais na Europa e em todo o Ocidente”. O nacionalismo não impede a solidariedade pós-fascista em nome da “Europa das nações”, o mantra comum dos partidos deste espectro político de todo o continente.

4 de julho

Sem abdicar da ambiguidade que o caracteriza, e para não melindrar em excesso a ala direita do seu movimento político, Emmanuel Macron fez questão de precisar que um eventual apoio a candidatos de LFI no segundo turno, a fim de bater o RN, não significa, sob nenhuma hipótese, uma aliança programática com vistas à formação de um novo governo. Gabriel Attal foi na mesma linha, ressalvando que “jamais falou em governo de coalizão”. Nesse quesito, a consigna segue sendo a do “nem-nem”: nem RN nem LFI.

5 de julho

Em meio ao cataclisma eleitoral, um tema da maior urgência acabou sendo uma das grandes vítimas da campanha: a crise ecológica. Conforme se diz por aqui, o debate sobre o “fim do mês” suplantou o sobre o “fim do mundo”, como se a valorização de uma coisa levasse necessariamente à desvalorização das preocupações com a outra.

Para o RN, ao invés de acelerar a transição ecológica, trata-se de acabar com a “ecologia punitiva”, o que significa afrouxar as normas ambientais. No mais, o partido se coloca contra a energia eólica (que, segundo Marine Le Pen, polui visualmente as paisagens) e a favor da energia nuclear. Em suma: diante da crise, uma plataforma antiecológica, que joga com a reação social à necessidade de mudança do modo de vida.

O programa ecológico da nova Frente Popular é evidentemente mais avançado, mas pouco detalhado. A aliança de esquerda defende investimentos massivos na transição ecológica e na descarbonização da economia. No entanto, há um ponto de fratura importante entre os partidos da coalizão – por isso mesmo não mencionado no programa: a energia nuclear. O PCF e setores do PS são favoráveis à criação de novas centrais nucleares, ao passo que os Verdes e LFI (e o NPA) são terminantemente contrários.

O bloco governista, por seu turno, promove aqui também a política do “ao mesmo tempo”: ainda que reafirme a importância da questão, prometendo continuar na via da transição ecológica, a coalizão Juntos pela República admite desacelerar o processo em alguns aspectos – o que já vem fazendo, aliás –, a fim de não prejudicar o crescimento econômico do país. O resultado é que a aliança acaba por fortalecer o argumento da extrema-direita segundo o qual as normas ecológicas se opõem às necessidades econômicas e sociais da população.

6 de julho

Com o fim oficial da campanha, o momento é de expectativa. Até agora, as pesquisas e estimativas seguem colocando o RN como franco favorito, mesmo que a perspectiva de uma maioria absoluta pareça mais distante. Nunca é demais lembrar, porém, o quão complicado é projetar o resultado em 577 distritos diferentes, cada qual com uma eleição majoritária. Estimar o total de votos nos partidos e/ou coalizões não é o mesmo que definir o número de candidatos eleitos.   

7 de julho

Surpresa geral. A França resiste! Ao contrário do que indicavam as estimativas, o RN e a direita alinhada a Eric Ciotti não só ficaram muito longe da maioria absoluta como acabaram relegados à terceira posição, elegendo “apenas” 143 deputados. A nova Frente Popular chegou na primeira posição, com 183 deputados eleitos, aos quais se pode acrescentar os 13 parlamentares independentes de esquerda, totalizando 195. Ainda bem abaixo, portanto, dos 289 necessários para a maioria absoluta.

Os representantes do Juntos pela República, por sua vez, sagraram-se vencedores em 168 distritos, beneficiando-se em muitos casos da retirada do candidato do bloco de esquerda. O bloco contava com 250 deputados na antiga legislatura. A direita tradicional (LR) que não se aliou ao RN contará com 46 deputados na próxima Assembleia. A taxa de participação, que se esperava menor do que a do primeiro turno, manteve-se estável, em torno de 67% dos aptos a votar.

Visto em perspectiva mais ampla, o resultado não deixa de ser histórico para o RN. Nunca o partido de extrema-direita teve tantos deputados na Assembleia Nacional. Ademais, embora tenha ficado na terceira posição no número de eleitos, o RN foi, na contagem geral, o partido mais votado, com 37% dos sufrágios, muito acima dos 26% obtidos pela nova Frente Popular e dos 23% angariados pelo Juntos pela República. É claro que muito disso se deve ao fato de que, ao contrário do que fizeram a nova Frente Popular e o bloco presidencial, o RN não retirou candidatos da disputa do segundo turno nas “triangulares”. Ainda assim, o resultado não deixa de ser inquietante.

No entanto, diante do que se apresentava nas últimas semanas, o desfecho imediato é mais do que decepcionante para um partido que almejava indicar o próximo primeiro-ministro. Não por acaso, um abatido Jordan Bardella acusou a nova Frente Popular e o Juntos pela República de arquitetaram uma aliança espúria com o único objetivo de impedir o RN de governar.

Na Praça da República, onde na última semana ocorreram manifestações diárias contra a extrema-direita e em apoio à nova Frente Popular, a atmosfera estava entre a surpresa e o alívio pelo fato de que a França não será governada (por enquanto) pela extrema-direita pela primeira vez – em regime democrático – em sua história. Por volta da meia-noite, a praça se tornou palco de confrontos entre movimentos antifascistas e a polícia. 

8 de julho

As atenções se voltam agora para a formação do novo governo. Ontem mesmo, Gabriel Attal anunciou que apresentaria o seu pedido de demissão ao presidente da República. Hoje, porém, Emmanuel Macron solicitou a Attal que permanecesse por mais algum tempo, a fim de garantir “a estabilidade do país”.

Vitoriosa nas eleições, mesmo sem maioria absoluta, a nova Frente Popular declarou que indicará nos próximos dias um possível primeiro-ministro. As negociações serão difíceis, tanto no interior do bloco quanto com outros eventuais aliados necessários à aprovação das medidas do programa. Internamente, o partido com o maior número de deputados continuará sendo LFI, que é também o mais à esquerda da frente. Mas a diferença para o PS, o partido mais moderado do bloco, diminuiu significativamente: enquanto LFI se manteve estável, com 74 deputados, o PS aumentou sua bancada de 28 para 65. Os Verdes terão 33 parlamentares e o PCF, 9.

Em tese, LFI deveria ter prioridade na indicação do primeiro-ministro. Entretanto, não se pode descartar que os outros partidos da aliança se unam para fazer frente ao partido de Jean-Luc Mélenchon. Em especial visando o apoio de deputados centristas do Juntos pela República. Outros candidatos potenciais ao posto são a presidente dos Verdes, Marine Tondelier, e o primeiro-secretário do PS, Olivier Faure.

O cenário é inédito no contexto da V República, regime que, embora tenha nascido parlamentarista, acabou sendo tragado por uma lógica mais presidencial: desde 1962, o presidente da República é eleito por sufrágio universal direto e, ao contrário do que ocorre em outros países parlamentaristas (como Portugal, Espanha, Itália ou Alemanha), o chefe de Estado mantém poderes consideráveis, ainda que o governo seja formalmente dirigido pelo primeiro-ministro. Além disso, até agora as coabitações entre um presidente e um Primeiro-ministro de partidos ou blocos políticos distintos foram sustentadas por maiorias relativamente sólidas no Parlamento.

A consequência é que não há, na cultura política da V República, tradição de coalizões de governo formadas após as eleições, o que, na situação atual, pode levar ao bloqueio político e/ou institucional. Na França, as coalizões partidárias remetem à instabilidade da IV República, justamente o que foi superado pela arquitetura institucional pensada pelo General Charles de Gaulle.

Assim, apesar da vitória, o cenário não será dos mais fáceis para a nova Frente Popular, caso de fato assuma a chefia do governo. Mais do que se engajar nas negociações parlamentares, será preciso estabelecer, nas ruas e na sociedade, uma nova relação de forças capaz de pressionar o Parlamento a votar as medidas anunciadas.

9 de julho

Os líderes dos partidos da nova Frente Popular indicaram que não farão concessões em seu programa e que a aliança está pronta para governar. Eles criticaram duramente a tentativa de Emmanuel Macron de postergar a manutenção de Gabriel Attal como primeiro-ministro, acusando o presidente de desrespeitar o resultado das urnas. 

Tanto os partidos de centro, do bloco macronista, quanto os da direita dita “republicana” começaram a mexer os pauzinhos para tirar proveito da nova condição “parlamentarista” da França, cogitando uma coalizão da qual ficariam de fora o RN, LFI e, em certos casos, o conjunto da nova Frente Popular. Enquanto as alas mais ao centro do bloco macronista preconizam um acordo em que o PS e os Verdes estejam incluídos, os seus representantes mais à direita, como os ministros do Interior, Gérard Darmanin, e da Economia, Bruno Le Maire, ou o ex-primeiro-ministro, Édouard Phillippe, defendem uma aliança mais restrita entre centro e direita, isolando a nova Frente Popular, que seria relegada à oposição junto ao RN. Essas são as opções preferidas pelo “mercado”, sobretudo a segunda, cuja perspectiva econômica seria inequivocadamente neoliberal.

10 de julho

Antes de embarcar para o evento de comemoração de 75 anos da OTAN, nos EUA, Emmanuel Macron publicou carta aberta em que incita as forças políticas “comprometidas com valores republicanos” a encontrar uma “maioria sólida” capaz de formar uma “ampla coalizão no Parlamento”. Tendo em vista que “ninguém ganhou”, será preciso, segundo o presidente da República, “inventar uma nova cultura política”.

A carta foi prontamente rechaçada pelos líderes da nova Frente Popular. Jean-Luc Mélenchon acusou Macron de querer burlar a soberania popular. “É o retorno do direito de veto do Rei sobre o sufrágio universal”. Para Mélenchon, Macron deveria “se inclinar” na direção da aliança de esquerda, vitoriosa nas urnas. O primeiro-secretário do PS, Olivier Faure, foi na mesma linha, alertando para a necessidade de se reconhecer a escolha que os franceses fizeram no último domingo, segundo a qual caberia à nova Frente Popular a indicação do novo Primeiro-ministro. 


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Fabio Querido é professor livre-docente de sociologia da Unicamp. Autor de, entre outros títulos, Michael Löwy: marxismo e crítica da modernidade (Boitempo, 2016; Herramienta, 2019), Daniel Bensaïd – intelectual em combate (Fino Traço, 2022) e Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (Boitempo, 2024, no prelo). Atualmente, atua como professor e pesquisador visitante na Universidade Paris-Cité.

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