Chico de Oliveira: a chispa da imaginação
Há cinco anos perdíamos Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira, o Chico. Um dos nossos mais originais e afiados sociólogos marxistas, querido amigo e camarada. Confira abaixo a homenagem de André Singer publicada na revista Margem Esquerda n.33.
Foto: Chico de Oliveira no Seminário Internacional Crise do capital e perspectivas do socialismo, promovido pelo Sesc CPFL e a Editora Boitempo, em 2009 (Damião A. Francisco/CPFL Cultura).
Há cinco anos perdíamos Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira, o Chico. Um dos nossos mais originais e afiados sociólogos marxistas, querido amigo e camarada. Confira abaixo a homenagem de André Singer publicada na revista Margem Esquerda n.33, no segundo semestre de 2019.
Por André Singer
Reproduzo a observação que segue para lembrar, no momento em que perdemos a presença física de Francisco de Oliveira (1933-2019), o quanto o fulgurante modo de pensar desenvolvido por ele ao longo de vida fértil e obra criativa continua a nos acompanhar e ajudar nestes dias aziagos.1 Tive o privilégio de dialogar com os textos do mestre pernambucano e, por vezes, também de ouvi-lo em saborosas conversas a respeito de temas brasileiros e da esquerda em geral. Importava pouco concordar ou discordar. Sua permanente capacidade de surpreender o interlocutor com relações inesperadas e transversais estimulava a imaginação e suscitava novas hipóteses.
Quando escrevi O lulismo em crise, queria entender o papel desempenhado pelo que chamei de subproletariado, seguindo Paul Singer, de quem Oliveira foi amigo até os últimos dias, na formação de classes do país e as consequências políticas de tal presença no golpe parlamentar de 2016. Recorri, então, mais uma vez, à ideia lançada por Chico em 1972, segundo a qual, no Brasil, a “conversão de enormes contingentes populacionais em ‘exército de reserva’, adequado à reprodução do capital, era pertinente e necessária do ponto de vista do modo de acumulação que se iniciava ou que se buscava reforçar”.2
Até aí se tratava de retomar uma concepção que, embora inovadora quando apareceu, já estava bem estabelecida nas interpretações críticas a respeito da formação brasileira. A surpresa ocorreu quando percebi, no meio de um artigo menos lido – “O momento Lênin”, preparado como relatório de pesquisa do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em 2004 –, uma interpretação do autor a respeito da história mundial. Ali, em uma análise dos primeiros passos daquilo que mais tarde seria conhecido como lulismo, o intelectual da USP dedica cinco páginas inteiras à… história da Rússia, suscitando uma observação, até onde conheço, original e reveladora sobre a pátria dos sovietes.
Segundo Chico, haveria na “Rússia em transição do feudalismo para o capitalismo […] um sistema híbrido”. A ideia, bastante comum entre os teóricos da revolução, Trótski à frente, era então complementada pela afirmação de risco. Oliveira dizia que a passagem em questão “nunca se completará”. Para fechar o raciocínio, emendava: a eterna mistura produzida nas estepes geladas “combina a ferocidade do novo com o atraso do velho”.3 Mas a sacada de Chico não parava aí. Propunha que “a incompletude do sistema é uma nova complexidade, que só será plenamente entendida já bem avançado o século [XX] pelos latino-americanos da estirpe de Raúl Prebisch, Celso Furtado e Florestan Fernandes”.4
Em outras palavras, Chico achava que apenas a tradição de pesquisa aberta na América Latina no pós-guerra tinha sido capaz de construir uma verdadeira teoria do capitalismo nas periferias do sistema, desvendando, a partir dela, construtos ornitorrínquicos como o Brasil e… a Rússia. Estabelecido um marco abstrato capaz de dar conta do permanente inacabamento, ficava mais fácil entender o processo de 2016 que acabou por decretar o impedimento de Dilma Rousseff.
Levando adiante o raciocínio de Chico, propus que a variante específica do Brasil no âmbito dos inacabamentos sistêmicos seria nunca ter havido aqui “resíduo pre‑capitalista”.5 Castelos feudais, castas hindus, comunas camponesas não fizeram parte da paisagem de Pindorama; porém, sim, as fundações de uma sociedade mercantil‑escravagista ligada ao capitalismo central que dominou os trezentos anos de colonização. Por isso, traço peculiar desta sociedade seria uma espécie de limbo, do qual os pobres podem sair (e no qual podem voltar a cair) individualmente, mas nunca como classe. Em outras palavras, alguns pobres podem deixar de ser pobres, mas a pobreza não pode deixar de existir.
Isso significava que o lulismo teria se quebrado por tentar resolver uma peculiar quadratura do círculo, isto é, diminuir estruturalmente uma pobreza límbica sem provocar a ruptura do sistema que depende dela para funcionar. Acelerado por Dilma no bojo da ideologia rooseveltiana, o lulismo acabou vítima de suas contradições, que seriam igualmente as fundas contradições brasileiras. Embora um quarto da população ainda estivesse na pobreza ao fim da experiência lulista (2014), a passagem maciça de setores do subproletariado para o proletariado pressionava as condições de reprodução do capitalismo à brasileira.
Ao integrar a superpopulação excedente, o lulismo foi diminuindo a reserva de mão de obra sempre disponível. Um sintoma disso teria sido a escassez de trabalhadores domésticos entre 2011 e 2013. Ter empregados domésticos faz parte do estilo de vida da parcela “modernizada” da sociedade tupiniquim (a ferocidade do novo). Daí o Brasil ser o país com o maior número de empregados domésticos do mundo: 7,2 milhões, segundo notícia publicada na imprensa em 2013. Note-se que, além da escassez, a ampliação dos direitos dos trabalhadores domésticos em abril de 2013 – com limitação da jornada de trabalho, pagamento de hora extra, adicional noturno, entre outros benefícios –, avançava lentamente a civilização de costumes ferozes entre nós. O filme Que horas ela volta?, lançado em 2015 (quando o quadro já regredia), retrata o momento em que o lulismo começou a tocar nos nervos expostos do sistema.
O trabalho doméstico seria exemplo do processo maior e mais central em curso. O lulismo não pretendia produzir confronto com as classes dominantes, só que, ao diminuir a pobreza, o fazia sem querer. A superpopulação excedente, rebaixando o valor do trabalho, permite ao setor moderno funcionar. Existe a impressão intuitiva, mas falsa, de que o atraso segura o setor moderno, quando é o oposto: “o específico da revolução produtiva sem revolução burguesa era o caráter ‘produtivo’ do atraso”.6 A realidade é contraintuitiva: o limbo funciona como a atmosfera da qual o moderno retira o ar que respira – ou melhor, a mão de obra que o alimenta. Com a mão de obra superabundante, a camada “moderna” brasileira tem dinamismo e tamanho suficiente para mexer com o mercado imobiliário de Manhattan ou contar com a segunda maior comunidade de usuários de Facebook do mundo, atrás só dos Estados Unidos.
A consequência política é que o setor moderno é grande o suficiente para impor vetos sobre a mudança do sistema, pois, se parte da sociedade está no atraso, parte significativa está no moderno. Por mais paradoxal que pareça, o que paralisa o avanço não é o atraso, é o tamanho do setor modernizado. Em suma, o sucesso do ornitorrinco implica a existência de um partido de classe média influente, o qual pode ser liderado tanto por siglas como o PSDB, conforme se viu entre 1994 e 2014, como por lideranças meteóricas ao estilo da que se elevou à Presidência da República em 2018.
Notas
1 Este texto utiliza passagens de André Singer, O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016) (São Paulo, Companhia das Letras, 2018), p. 20-4.
2 Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/O ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 38, grifos meus.
3 Francisco de Oliveira e Cibele S. Rizek (org.), A era da indeterminação (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 258.
4 Idem.
5 Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/O ornitorrinco, cit., p. 132.
6 Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/O ornitorrinco, cit., p. 132.
Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco, de Chico de Oliveira
Um ensaio de 1972 tornou-se uma clássica reflexão sobre o país, redefinindo o pensamento sobre a economia brasileira e desafiando convenções. Atualizado décadas depois, introduz o ornitorrinco como uma metáfora que caracteriza o Brasil contemporâneo, uma intersecção entre política, economia e sociedade.
Brasil: Uma biografia não autorizada, de Chico de Oliveira
Antologia polêmica que desvenda o Brasil pós-“país do futuro”. O sociólogo e economista traça sua visão crítica, desde a Sudene até a decepção com governos amigos. Um mosaico de reflexões proféticas que destaca a “hegemonia às avessas” e revela um Brasil sem rumo claro.
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Pelas reminiscências do autor, um retrato íntimo e político do Recife, cenário de conflitos, memórias e revoluções. Um relato pessoal que desvenda a história do Nordeste, suas lutas e desafios, tudo entrelaçado com uma análise sociológica apaixonante.
A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado, de Chico de Oliveira
Artigos em homenagem a Celso Furtado, que ressaltam sua contribuição ao entendimento do subdesenvolvimento e à busca de estratégias transformadoras para o Brasil. Destaca o diálogo com o legado intelectual de Furtado e a importância de compreender e agir para superar a dependência e o atraso.
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André Singer é professor titular do DCP-USP. Autor de Os sentidos do lulismo (Companhia das Letras, 2012), O lulismo em crise (Companhia das Letras, 2018) e Estado e democracia: uma introdução ao estudo da política (Zahar, 2021, com Cicero Araujo e Leonardo Belinelli), entre outros livros.
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