Privatização das escolas públicas em São Paulo

À nossa geração cabe fazer o enfrentamento que começa no nível mais basal da realidade, desfascistizando as relações cotidianas e criando todas as barreiras necessárias para o avanço das políticas privatizantes.

Foto: Jonas Jacobsson (Unsplash)

Por Ricardo Normanha

O governo de São Paulo, sob a gestão do governador de extrema-direita Tarcísio de Freitas (Republicanos), está implementando o projeto “Novas Escolas” através de uma parceria público-privada (PPP) para construir e “modernizar” 33 unidades escolares, atendendo 35 mil estudantes dos ensinos fundamental e médio (São Paulo [2024?]).

O decreto publicado no último dia 11 de junho concretiza a iniciativa que já vinha sendo noticiada há tempos e faz parte do pacote de “desestatização”, um dos pilares da gestão de Tarcísio em São Paulo, junto com a política de segurança pública baseada no aval para a violência policial, no punitivismo e no populismo penal.

O tema das privatizações das escolas públicas ganha ainda mais os holofotes da imprensa em um momento propício em que a ofensiva ultraconservadora de extrema-direita pauta o debate público. No início de junho, projeto semelhante foi aprovado a toque de caixa na Assembleia Legislativa do Paraná, mesmo sob os protestos de professores e estudantes. Vale mencionar também que o plano de privatização das escolas públicas estaduais do Paraná foi gestado quando Renato Feder, atual secretário de educação do estado de São Paulo, ocupava a mesma pasta na gestão do governador Ratinho Júnior (PSD).

Ainda no campo da educação, outros ataques da extrema-direita vêm se efetivando em São Paulo na gestão Tarcísio/Feder: substituição de livros didáticos – avaliados e aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático – por materiais digitais (slides) de qualidade, no mínimo, duvidosa; utilização de Inteligência Artificial para a confecção dos materiais digitais; plataformização irrestrita da educação por meio do uso compulsório de inúmeros aplicativos e recursos digitais tanto para atividades administrativas quanto para as atividades pedagógicas, afetando profundamente – e negativamente – o processo de ensino-aprendizagem e o controle do trabalho docente; a aprovação do programa que institui as escolas cívico-militares no estado, transferindo para quadros da reserva da Polícia Militar as funções administrativas e disciplinares das escolas, sob o argumento de que o desempenho acadêmico dos estudantes das escolas cívico-militares é melhor em relação ao dos estudantes das escolas convencionais.1

Transferência direta de recursos públicos para a iniciativa privada

O plano de privatização das escolas públicas estaduais em São Paulo, que faz parte do Programa de Parcerias de Investimentos do Estado (PPI-SP), envolve um investimento de R$2,1 bilhões e prevê a construção, adequação e manutenção predial das novas escolas, com a promessa de que metade das unidades serão entregues em dois anos e o restante até janeiro de 2027. A licitação para a privatização da administração dessas escolas foi autorizada, com concessão prevista por 25 anos, segundo informações do portal G1.2

O projeto prevê que as empresas concessionárias serão responsáveis pela construção, manutenção, conservação, gestão e vigilância das unidades, além de outros serviços não pedagógicos, como limpeza, portaria, monitoramento de câmeras, controle de acesso, alimentação, jardinagem e controle de pragas. Ou seja, as empresas que vencerem a licitação receberão do governo do estado grandes montantes de recursos públicos para realizar a gestão das escolas. O critério de julgamento da licitação será o menor valor da contraprestação pública máxima a ser paga pelo governo, com o leilão previsto para o terceiro trimestre e a assinatura do contrato no final deste ano.

Em tempos de pós-verdade e de narrativas que suplantam a realidade concreta, faz-se necessário dizer o óbvio. Empresas privadas objetivam lucro e, como em toda atividade capitalista, buscam maximizar os seus ganhos. Tendo em vista que a gestão das escolas não se constitui, necessariamente, como uma atividade produtiva, isto é, não produz diretamente uma nova mercadoria, a possibilidade de maximização de lucros reside na redução dos custos de tal forma que o que elas irão receber do governo do estado seja sempre mais – e quanto mais, melhor – do que o montante que será investido na construção, manutenção e gestão administrativa e de zeladoria das escolas.

Em outras palavras, indiscutivelmente, serão realizados progressivos cortes de gastos em todas essas atividades de gestão: materiais de baixa qualidade, infraestrutura mínima, redução de gastos com salários e direitos.

Separação entre gestão e atividade pedagógica

O projeto de privatização das escolas tem como argumento principal centralizar a contratação para “otimizar” a gestão, reduzir custos e “melhorar a qualidade” dos gastos, o que permitiria que gestores e professores se concentrem nas atividades pedagógicas. A proposta é que as atividades pedagógicas continuem, do ponto de vista formal, sob a responsabilidade da Secretaria da Educação. Parte-se, portanto, da premissa da separação entre gestão e atividades pedagógicas, como se pertencentes a universos distintos e não diretamente relacionados.

Desde os anos de 1990, a onda neoliberal que assolou o mundo após o fim do bloco socialista articulada à reestruturação produtiva no mundo capitalista, de acordo com Reginaldo de Moraes (2002) consolidou uma narrativa que buscou descrever e explicar os supostos problemas do mundo social “politicamente regulado”. No que diz respeito à reforma dos serviços públicos, essa narrativa defende a supremacia do mercado como o melhor e mais eficiente mecanismo para alocar recursos, promovendo, portanto, justiça, igualdade e liberdade.

Nesse sentido, no âmbito da Nova Gestão Pública, paradigma administrativo que defende a aplicação direta de práticas de gestão do setor privado na Administração Pública e cujo objetivo é alcançar maior eficiência, reduzir custos e aumentar a eficácia na prestação de serviços, compreendendo os cidadãos como clientes e os servidores públicos como gestores, observamos ao longo dos anos de 1990 e primeira década de 2000, uma série de reformas do aparelho estatal que logrou consolidar um modelo de gestão executiva dos serviços públicos pensado de maneira separada e autônoma das atividades fins.

Assim, vimos ao longo das últimas décadas um processo acentuado de privatização da gestão dos serviços públicos, seja no sentido de uma transferência direta da gestão para a iniciativa privada, seja no sentido da adoção das práticas e valores do mercado na administração pública, visando uma aparente “profissionalização” da gestão. Na mesma direção, nota-se a emergência de novos atores que compõem e orientam as redes de governança pública, como as instituições, fundações e empresas privadas que não só pautam o debate público como incidem com o peso de fortes investimentos financeiros na formulação e implementação das políticas públicas.

No campo da educação, essa segmentação entre gestão escolar e gestão pedagógica vem se intensificando na medida em que diretores e diretoras de escolas assumem cada vez mais funções relacionadas à gestão de recursos humanos, verbas, insumos e materiais – vale dizer, recursos esses cada vez mais escassos – distanciando-os das reflexões e práticas pedagógicas das escolas (Souza, 2004). Nesse sentido, o projeto de privatização em curso nos estados de São Paulo e Paraná, reforça essa distinção, assumindo que a gestão administrativa das escolas se constitui como um fim em si mesmas.

Na educação, a “atividade fim” é a própria prática pedagógica. A administração é, portanto, uma “atividade meio”, necessária para o desenvolvimento da prática educacional. Desta forma, a gestão não pode ser separada, apartada e autonomizada em relação à atividade propriamente pedagógica. A condição para o desenvolvimento do modo de produção capitalista reside justamente na separação entre produtores diretos e os meios de produção, mas também na separação entre produtores e gestores da produção. A educação pública, ao sucumbir a essa lógica, dissipa sua dimensão pública e rende-se aos interesses privados de acumulação de capital.

Ultraliberalismo como expressão da ofensiva de extrema-direita

As transformações econômicas e políticas que atravessaram o mundo globalizado a partir do final da primeira década do século XXI apontam para um aprofundamento e radicalização da lógica neoliberal que regeu a economia global desde meados da década de 1980. Entende-se aqui que o termo neoliberalismo passa a ser insuficiente e anacrônico para dar conta das complexidades do mundo contemporâneo, sobretudo a partir da crise de 2008.

Além disso, o uso do termo neoliberalismo passou a ser usado de forma difusa e confusa incorrendo muitas vezes no esvaziamento do seu significado. Nesse sentido, é necessário acionarmos categorias e conceitos que apontem com precisão para o processo em curso na economia global. Desta forma, o argumento de Miranda (2020) defende que o uso do termo “ultraliberalismo” é mais adequado pois enquanto o prefixo “neo” sugere uma novidade temporal – e o neoliberalismo já está em voga há algumas décadas e já não se apresenta mais como novidade – o prefixo “ultra” destaca a radicalização dos preceitos do liberalismo clássico e do próprio neoliberalismo.

Assim, o ultraliberalismo não representa uma nova era, mas uma intensificação das práticas capitalistas de exploração e expropriação da classe trabalhadora e de aprofundamento da ideologia de redução do Estado e de transferência de toda a gestão pública para a iniciativa privada.

Nesse sentido, quando se observa o processo explícito e escancarado de privatização das escolas públicas, é nítido o aprofundamento e radicalização daquilo que já vinha sendo implementado desde o final do século XX. Enquanto a Nova Gestão Pública, instrumento ideológico do neoliberalismo dos anos 1990 e 2000, forçou a permeabilidade da lógica do mercado no coração da administração pública, do estado e dos serviços públicos, o momento atual aponta para uma transferência direta desta gestão para a iniciativa privada em setores, até então, relativamente protegidos dessa ofensiva.

Se a reforma gerencialista do Estado não hesitou em vender empresas estatais estratégicas, como as de telefonia, mineração e bancos, alguns serviços públicos, graças à resistência oferecida pelos movimentos sociais, especialmente no campo da saúde e da educação, não permitiram o entreguismo privatista às custas do sucateamento de tais serviços.

No entanto, o avanço da extrema-direita em todo o mundo e, em especial, no Brasil, sobretudo a partir do golpe contra Dilma Rousseff em 2016, impôs aos movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos e outras formas de organização da classe trabalhadora, um cenário defensivo e de baixa, ou quase nenhuma, capacidade de resistência.

Resta-nos, agora, analisar a conjuntura dessa quadra da história e compreender o papel das forças progressistas, democráticas e da esquerda radical no confronto direto a essa ofensiva ultraliberal da extrema-direita. Como convocou Franz Fanon: “cada geração tem que descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la” (Fanon, 2022, p. 207).

À nossa geração coube fazer esse enfrentamento que começa no nível mais basal da realidade, desfascistizando as relações cotidianas e criando todas as barreiras necessárias para o avanço das políticas privatizantes.

Notas
1 Argumento facilmente desmontado por inúmeros pesquisadores e pesquisadoras especializados. O suposto melhor desempenho dos estudantes das escolas cívico-militares está associados a outros fatores que não estão relacionados à gestão militarizada, como investimentos, valorização da profissão docente, infraestrutura e trajetórias e bagagens culturais familiares desses estudantes. Para entender mais sobre as falácias das escolas cívico-militares ver SAMORA, Frederico. A arte do golpe: cinco pontos para pensar as escolas cívico-militaresBrasil de Fato, São Paulo (SP), 24 de outubro de 2019. Disponível em 
2 Tarcísio autoriza licitação para privatizar gestão de 33 novas escolas estaduais de SP. G1. 12 jun. 2024.

Referências
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
G1. Tarcísio autoriza licitação para privatizar gestão de 33 novas escolas estaduais de SP. G1, 12 jun. 2024.
MORAES, Reginaldo C. Reformas neoliberais e políticas públicas: hegemonia ideológica e redefinição das relações Estado-sociedade. Educação & Sociedade, v. 23, p. 13–24, setembro de 2002.
MIRANDA, João Elter B. O ultraliberalismo enquanto categoria conceitualLavraPalavra, 2 de dezembro de 2020
NEVES, Ian. Greve no paraná, privatização e militarização das escolas | Cortes do Ian Neves. 2024. YouTube.
SÃO PAULO, Secretaria de Parcerias em Investimentos. Novas Escolas. [2024?].
SOUZA, Silvana Aparecida de. Os sentidos da separação entre gestão pedagógica e gestão escolar nas políticas públicas educacionais do Paraná. Ideação, v. 6, n. 6, p. 176-85, 2004.

Publicado originalmente no blog A Terra é redonda em 29 de junho de 2024.


Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar, de Fernando Cássio (org.)
Fernando Cássio, organizador da obra e especialista em políticas públicas de educação, convidou mais de vinte autores para propor um debate franco e corajoso sobre as principais ameaças à educação pública, gratuita e para todas e todos: o discurso empresarial, focado em atender seus próprios interesses; a perseguição à atividade docente e à auto-organização dos estudantes; e o conservadorismo que ameaça o caráter laico, livre e científico do ambiente escolar.

Dicas de leitura da Boitempo, para aprofundar a reflexão:
A escola não é uma empresa, de Christian Laval
A educação para além do capital, de István Mészários


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Ricardo Normanha é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Unicamp.

1 comentário em Privatização das escolas públicas em São Paulo

  1. Mauricio Gomes // 28/10/2024 às 12:36 pm // Responder

    Privatizar é desviar recurso público. Lobistas desqualificados, só podem ser impedidos pela parte da justiça fiel às leis e à constituição. Juízes que não são magistrados leais aos paradigmas da justiça séria, cedem às pressões do Lobista que só olha para o dinheiro que pode ganhar e do qual se servirá nas campanhas eleitorais vindouras.

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